Cinco Voltas na Bahia e Um Beijo para Caetano Veloso, de Alexandra Lucas Coelho

O livro “Cinco Voltas na Bahia e Um Beijo para Caetano Veloso”, de Alexandra Lucas Coelho, editado em 2019, foi escrito em consequência de um comentário de Caetano Veloso a propósito de um seu outro livro, “Deus-dará”. Lucas havia editado “Deus-dará” em 2016 e “Vai, Brasil” em 2013 e com eles pensava ter fechado o ciclo de livros brasileiros, após ter vivido no Brasil durante uns anos no início da década passada.

Mas o tal comentário de Caetano, “falta Bahia no seu livro”, fê-la voltar à carga e criar uma trilogia brasileira na sua obra literária.

A Bahia é a protagonista deste novo livro, mas Caetano é central e a ele se volta sempre durante todo o texto. Dividido em 5 voltas, a última por fazer, a autora, “filha de Oxum”, discorre pelos imensos símbolos deste estado brasileiro sem nunca recorrer ao clichê, sempre com a inteligência de aí se partir para outros motivos, outras personagens, outras histórias, como se fosse tirando as baianas umas de dentro das outras. Palavras e imagem sua, claro.

“Assim do céu é que pela primeira vez vi o recorte daquela costa onde ao poente de 23 de Abril de 1500 um homem branco, de pé num batel, se achou diante de indígenas com água pelo peito. Ou vice-versa: indígenas com água pelo peito se acharam diante de um homem branco, de pé num batel. Porque se a novidade era mútua, para o branco não foi inesperada.”.

Através das suas frases vamos viajando pelas paisagens e povoações, com início em Porto Seguro, onde para nós, portugueses, tudo começou. Nomes como Belmonte e Trancoso, denunciadoras da vizinhança original de Pedro Álvares Cabral, o descobridor (ou achador) do Brasil. Os descobrimentos e a escravatura, temas caros à autora, não passam isentos de abordagem insatisfeita com a doutrina oficial.

“A Bahia é assim o único lugar do mundo onde desde criança convivo com toda a família de um artista só de o escutar, de cantar com ele seus ascendentes, descendentes, parentes, heróicos e genéticos, sua casa, sua porta, sua Ítaca: Santo Amaro da Purificação, de onde tudo irradia”.

Para além das paisagens e povoações, este “Cinco Voltas Pela Bahia e Um Beijo para Caetano Veloso” está cheio de referências culturais. Caetano e toda a sua família, com Maria Bethânia à cabeça acompanhada de Santo Amaro da Purificação e Recôncavo, sim. Mas também Dorival Caymmi, Gil, João Gilberto, Tropicalistas, terreiros de candomblé, mães de santo, orixás. Jorge Amado e seu iniciático “Capitães da Areia”, com Pedro Bala e seu lanho na cara, que a autora confessa ter sido “um dos meus primeiros amores de papel”. Não esquecendo Gabriela.

As inúmeras igrejas de Salvador, tantas igrejas que “uma vida não chega” para as conhecer todas. E o Pelourinho, lugar onde anteriormente se castigavam os escravizados, hoje simplesmente Pelô, o bairro mítico de Salvador e do Brasil. Não faltam referências ao Olodum e às fitinhas de Nossa Senhora do Bonfim. Nem à comida: acarajé não é um mero bolinho ou pastel; é “1) uma religião 2) uma cultura 3) uma economia”.

Ao longo deste livro damos por nós a cantarolar Caetano, ajudados pelos trechos de letras lá incluídos. Confirmamos a ideia do poderoso sincretismo da Bahia – “se há cidade misturada que mais se vista de branco do que São Salvador da Bahia de Todos-os-Santos (também conhecida apenas como Bahia), não conheço”. E somos levados a olhar o Atlântico de forma diferente quando nos sentamos, livro na mão, junto de Alexandra para os lados da praia Buracão, no Rio Vermelho: “Aí, ao longo das semanas seguintes, é que entrei na intimidade do mar de Salvador, e ele na minha, até às profundezas do último sono. O Atlântico explodia na minha frente sem metáfora, desfazia-se em espuma contra as rochas, dias e noites sempre juntos, lembrando a temeridade que é qualquer humano fazer-se a ele. Impossível não pensar que do outro lado estava Angola, e que dessa costa para cima tinha vindo gente viva, acorrentada entre ratos, em navios de nomes como Feliz Dia a Pobrezinhos, Brinquedo dos Meninos, Amável Donzela ou Caridade. Ancestrais de quem me acolhia ali, na cidade mais africana da América do Sul.”

A cidade mais africana da América do Sul, “reino de vários reinos”, lugar de todos os encontros.

Mas, Alexandra, falta Ubaldo no seu livro.

2 Comments Add yours

  1. Blasco Alfonso diz:

    (…) Olá, a apresentação neste blog deste livro que, percebi, depois de ouvir uma entrevista com a autora, que não é (só) de uma viagem à Baía. Nem tem na origem (só) a resposta por impulso – á “provocação” de Caetano Veloso, quando numa apreciação sobre outros livros da autora centrados no Brasil, diz que falta Baía.

    Percebi tb nesta entrevista que o livro, nos confronta, com a visão do colonizado. Aporte que de algum modo desconstrói, segundo a autora, o “mito” da branda colonização que a historiografia oficial consolidou. Tb para o Brasil.

    Não sendo, desta vez, a partilha de uma viagem da autora deste blog,não deixa de ser uma experiência, de outra viagem, pela narrativa de um olhara da escritora Alexandra Lucas. E, por isso, não desvirtua a identidade deste espaço virtual onde ancoram narradas viagens que procuramos.

    Deixo uma das entrevistas com autora do livro que é partilhado neste blog. E sublinho o “convite”, para a leitura, que esta partilhada crónica sobre o livro estimula.

    https://www.rtp.pt/play/p5487/e446530/filhos-da-nacao

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  2. Obrigada pela partilha desta entrevista. Possa este post, juntamente com ela, despertar nos leitores o interesse por este livro e pela cultura da Bahia e história que nos é comum.

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