Com início e final no Parque Florestal das Queimadas, em Santana, o PR 9 é a caminhada por levada mais bonita da Madeira. Ao longo de 6,5 kms que nos deixam face a face com o Caldeirão Verde, com possibilidade de extensão por mais 2,2 kms até ao Caldeirão do Inferno, adentramos o interior da ilha envolvidos na mais exuberante e pura das florestas, a Laurissilva.

O percurso com destino ao Caldeirão Verde é fácil, sempre em terreno plano, diríamos que acessível a quase todos. Na sua continuação até ao Caldeirão do Inferno enfrentamos o único desnível do trilho e aí pode ser mais extenuante, devendo ainda ter-se em conta que há que regressar pelos mesmos 8,7 quilómetros. De qualquer forma, o Parque Florestal das Queimadas é, só por si, de uma beleza tocante. Daqui sai o percurso designado “Um Caminho Para Todos” que quer dizer isso mesmo: são apenas 2 kms de imersão na natureza.

Vamos então com destino aos Caldeirões. A partida dá-se junto à Casa de Abrigo das Queimadas, um edifício mimoso como nenhum outro no nosso país, mas que, ao mesmo tempo, tem os telhados de colmo típicos das casinhas da região. Passados uns laguinhos com patinhos, logo entramos no trilho com a levada como enorme e inseparável companheira.


As primeiras levadas da Madeira foram construídas logo no século XV, aquando da povoação da ilha, confundindo-se, pois, com a história do homem na região. São um verdadeiro monumento erguido pelo esforço hercúleo de colonos e escravos e constituem uma obra de engenharia inacreditável – 1400 kms de extensão de levadas numa ilha com 756 kms2. Como foi possível há séculos rasgar tão fundo o interior da ilha, furando montanhas, para construir estes canais de água? Se a obra foi para lá de difícil, a explicação que motivou a sua execução acaba por ser mais simples: sobrevivência. A água existe em abundância na Madeira, desde logo pela presença das muitas ribeiras, mas não chegava onde era mais necessária. Assim, dada a orografia da ilha, pouco mais soluções havia que não a de desviar a água das ribeiras de forma a conduzi-la para a irrigação de terras, engenhos e moinhos. Mas, ao mesmo tempo, se a orografia da ilha era (é) um obstáculo para a condução da água, os seus declives acentuados acabavam (acabam) por ajudar no seu aproveitamento pela força da gravidade. Os canais tem um declive suave, para permitir o movimento lento da água, e são estreitos, para evitar a perda de água por evaporação. Chegou a pensar-se que as levadas seriam influência árabe, mas hoje crê-se que a ideia da sua construção tenha partido dos colonos que chegaram à ilha vindos do norte de Portugal, uma vez que em Terras de Basto há exemplos próximos.


As levadas foram, em grande parte, as responsáveis pela prosperidade da Madeira, ao permitirem o cultivo da cana de açúcar e da banana. No fundo, a agricultura e a indústria da ilha estiveram sempre muito dependentes da água. Dito isto, as levadas mais não são do que caminhos de água; mas também de pessoas e de bens. Hoje, para além da sua importância na vida quotidiana e económica dos madeirenses, é parte indelével da paisagem e um elemento cultural e recreativo que por si só leva muitos turistas à Madeira para passeios a pé ao longo delas.

Voltamos ao nosso percurso por esta levada construída no século XVIII, originalmente para fins agrícolas, sobretudo para o regadio dos terrenos da freguesia do Faial. Os primeiros metros fazem-se num caminho relativamente espaçoso, onde os veios das árvores impressionam.


E logo o caminho fica apertado, obrigando-nos mesmo a empoleirar na levada. A água corre gentil e o seu som é um hino à tranquilidade. Esta água é alimentada pela Ribeira do Caldeirão Verde, para o que foi necessário furar a montanha (literalmente, esta é a levada dos túneis) e raspar as paredes rochosas para que a levada aqui se encaixasse. Estamos no interior da ilha, a quase 900 metros de altitude, e Pico Ruivo não anda longe. O vale da Ribeira de São Jorge é tão profundo e encaixado nas enormes escarpas que custa a acreditar que esta paisagem seja real.



Vê-se não muito distante a água a jorrar pela montanha abaixo, mas neste momento já havíamos passado pela primeira de muitas cascatas deste percurso, a apenas 1,5 kms de distância da Casa de Abrigo.

Havia de se seguir mais uma e mais outra e outra e outra. Todas elas belas. Numa os fios de água rompem os fetos, noutra a água junta-se a uma lagoa de cor quase esmeralda, uma outra não chega a ser cascata, apenas um chuveirinho inevitável no caminho. É nesta que lembro as palavras de Ana Teresa Pereira e faço como a sua Karen, olho através da cascata, para lá da sua água, e aproveito as gotas que me salpicam o rosto para passar a língua nos lábios para a sentir. Só não escorrego ao atravessar a cascata porque não arrisco empoleirar-me nela, afinal, outras há ainda para conhecer.


A do Caldeirão Verde é a rainha. O acesso à poderosa queda de água que dá nome ao percurso por esta levada está interdito, por perigo de desabamento. Vista ao longe é magistral, mas ao perto é esmagadoramente assustadora, quer pelo som intenso, quer pelo vento que a torrente de água gera ao despenhar-se desde o alto do penhasco, a quase 100 metros. O ambiente arrefece num ápice e o desconforto instala-se. A deixa para seguirmos em direcção ao Cadeirão do Inferno.

Antes, porém, ainda passamos por mais duas quedas de água. E por mais 8 túneis, que acrescem aos 4 que já havíamos percorrido, num incrível total de 12 (!). Se a construção da levada já constituía uma obra impossível, que dizer deste esventrar da montanha? Uns mais longos do que outros, em todos eles continuamos com o canal de água por companhia e um deles tem até uma janela com vista para um apertadíssimo desfiladeiro. Atenção à cabeça, porque alguns túneis são mesmo muito baixos. E escorregadios.
O Caldeirão do Inferno estava praticamente sem água. Havia chovido muito nos dias anteriores, pelo que as autoridades madeirenses sentiram necessidade em desviar o curso da ribeira lá bem acima na montanha. Ainda assim, o ponto final do nosso percurso tem um excelente ambiente para uma mais demorada paragem para um piquenique.



Esta exuberância de cascatas é parte da graça e da grandiosidade da floresta Laurissilva, mas não são elas as grandes definidoras da floresta natural da Madeira. Classificada como Património da Humanidade pela Unesco, é na ilha da Madeira que encontramos a maior e mais bem conservada floresta húmida subtropical deste género no mundo. Primitivamente, a ilha estaria toda coberta por esta floresta, mas hoje é precisamente a norte, onde encontramos a Levada do Caldeirão Verde, que ela resiste e está melhor preservada, graças à maior precipitação e humidade. Os frequentes nevoeiros e chuvas têm o condão de reter a água. Já Gaspar Frutuoso, historiador do século XVI, registava que a Gonçalves Zarco lhe tinham dito que o imenso arvoredo da ilha não chegava a “nunca se enxugar de humidade, com que estava toda coberta de um nevoeiro muito negro” e que “toda ela se rega com grande abundância das águas que tem, que, como veias em corpo humano, a estão humedecendo e engrossando e mantendo, com que se faz rica, fresca, formosa e lustrosa”. A Laurissilva aproveita estes factores naturais para nos seduzir por completo. É composta na sua maioria por árvores da família das lauráceas, como o loureiro, o til e o vinhático, para além do cedro da Madeira e espécies exóticas como a criptoméria elegante.

Elegância é o que não falta a esta floresta. Algumas das árvores são enormes, com troncos grossos e vigorosos. Outras mais pequenas e delicadas, mas sempre luxuriantes, sendo os singelos fetos um exemplo disso mesmo. A integridade desta floresta, que se crê que seja 90% de floresta primária, foi um dos critérios para que a Unesco avançasse com a sua distinção, ou seja, quase toda a sua vegetação terá perto de 700 anos. Tudo é tão verde e tão cerrado, praticamente impenetrável; e, aqui, só temos a agradecer aos primeiros povoadores o seu inacreditável trabalho em esventrar o centro da ilha para que hoje nele possamos caminhar à descoberta de um mundo fantástico e único. Isto é Madeira pura, um mundo desconhecido até para aqueles que ali sempre habitaram, como a senhora do nosso alojamento na vizinha Santana que nos dizia que a levada do “Caldeirão Verde” nem parece Madeira. É Madeira, é; a Madeira mais deslumbrante.
Realmente maravilhoso!
Depois de tantos trilhos pela Madeira, este seria um dos que aconselhariam a quem lá pretenda ir conhecer um pouco da ilha a pé?
E, com a vossa experiência, que outros não perigosos nem arriscados consideram também imperdíveis?
Obrigada.
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A Madeira tem um sem número de trilhos, mas a Levada do Caldeirão Verde é de todos os trilhos relativamente fáceis o mais fantástico e maior exemplo da luxúria da ilha – floresta Laurissilva em todo o seu esplendor, diversas cascatas e, claro, levada e túneis que nos mostram a sua história e cultura. Definitivamente, é o trilho a considerar em primeiro lugar para quem quer conhecer a ilha numa só caminhada.
O dos Balcões é ainda mais fácil, bem mais curto e com vistas esmagadoras – mas como é muito popular há que chegar cedo para conseguir estacionar e andar mais à larga.
E, depois, há os do Rabaçal, também levadas fáceis com cascatas e vistas do interior da ilha (são vários, uns muito concorridos – como a incontornável 25 Fontes – e outros menos – como a Levada do Alecrim, de que falaremos em próximo post).
E no Fanal há também trilhos fáceis e seguros (cuidado apenas com o nevoeiro e uma ou outra vaca transviada) para se admirar a Laurissilva com as suas árvores incríveis.
Um pouco mais difícil, mas nunca perigoso ou sequer arriscado, vale a pena tentar subir ao Pico Ruivo desde a Achadas do Teixeira – são menos de 3 kms de subida com uma paisagem de montanha como poucas no nosso país. Mesmo que se fique pela Casa de Abrigo, um pouco abaixo do Pico Ruivo, já vale a pena o cenário.
Para uma experiência diferente, embora não a tivéssemos conseguido fazer, não há de ser difícil a descida pelo trilho à Fajã da Rocha do Navio e a subida, depois, pelo teleférico.
Bons passeios.
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Muito obrigada pelas dicas. Já fico com umas boas referências!💐
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