Das Lajes a Ponta Delgada pela costa

A ilha das Flores é a quarta mais pequena de todo o arquipélago, com 143 km2. Há lugares mais recônditos do que outros, mas nunca se estará a muito mais de 30 minutos de carro do centro da ilha a qualquer ponto. Neste périplo pela “floresta adormecida”, como lhe chamou Raul Brandão, propomos ir da costa sudeste à costa norte pelas estradas mais costeiras e orientais. Neste e nos próximos passeios, de carro ou a pé, levamos connosco o livro “Ilha das Flores – Açores: Roteiro Histórico e Pedestre”, de Pierluigi Bragaglia, o “italiano da fajã” recentemente malogrado.

O povoamento da ilha das Flores não foi fácil, tão isolada que estava – e continua a estar. É o território mais ocidental da Europa e o mais distante de Portugal continental. Após a sua descoberta em 1452 por Diogo de Teive, quando a sua frota voltava de uma viagem à Terra Nova, só por volta de 1506 é que o povoamento da ilha passou a ser efectivo. E dado o relevo acidentado e o clima agreste, em especial nas terras a maior altitude, a ocupação humana remeteu-se – até hoje – às terras planas junto à costa. A região entre Santa Cruz e Lajes, costa sudeste, foi a primeira a ser habitada.

As Lajes das Flores terá sido a primeira vila da ilha e durante muito tempo a mais habitada. Toda a ilha tem perdido população, a atestar que o seu isolamento não se esbateu ainda. Veja-se: no ano de 1900 eram 8127 os habitantes; nos últimos Censos do ano de 2011 eram já apenas 5630 e hoje estima-se que pouco passarão de 4000 habitantes, a sua esmagadora maioria assentes neste pedaço de costa que percorremos agora. Nisto tudo, o concelho das Lajes foi aquele que mais população perdeu em todos os Açores, muito por conta dos terrenos da sua costa ocidental, mas a própria vila das Lajes foi uma das povoações que não só perdeu mais habitantes como viu a sua importância regional diminuir. Nos seus tempos áureos, o seu porto era o mais concorrido, apesar de se manter até hoje em eterna construção, se bem que agora tristemente com motivo, vítima do implacável furacão Lorenzo que por ali passou de forma arrasadora em Outubro de 2019. No entanto, é junto ao Porto que encontramos a sua bonita praia de areia escura onde desagua uma das múltiplas ribeiras da ilha. Por aqui, junto às suas casas com fachadas revestidas tipicamente, olhamos para cima e admiramos ao longe a implantação da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário. Já lá em cima, apreciamo-la na sua esplendorosa simplicidade.

A vila está bem cuidada e muito florida. Há até lugar para um novo elemento arquitectónico, inaugurado em 2013 para servir de Museu Municipal, com ar de Zaha Hadid perdida entre a exuberância e o negrume do meio do Atlântico.

Foi nas Lajes que na década de 1890 laborou a primeira fábrica da baleia das Flores. E foi aqui que a partir da década de 1930 funcionou a Estação Rádio Naval, de que resta ainda o farol e as moradias dos antigos funcionários, tudo numa arquitectura muito Estado Novo, bem mais familiar para qualquer português, insular ou continental.

No que as Lajes são fortes é no seu enquadramento paisagístico. Para o interior, o seu incrível vale que há de ir dar às maravilhosas lagoas das Flores e onde a caminho se encontram facilmente umas quantas quedas de água – é só estar atento, elas andam por todo o lado. Não esquecemos a primeira imagem que tivemos das Flores, logo momentos antes de aterrar quando espreitámos para lá da janela esquerda do aviãozinho e descobrimos uma queda de água directamente para o mar. É por esta costa que seguiremos agora.

Terrenos acidentados de montanha nas costas, nada a não ser mar por diante, terras férteis boas para trigo, milho, inhame, batata e laranja, Fazenda das Lajes, Lomba e Caveira são lugares com nomes sugestivos. Raul Brandão, quando passou pela ilha foi à Lomba de barco por não haver estrada e descreveu-a assim: “duas vezes perdida do mundo, perdida no mar e perdida nos montes”, “aqui nem o eco do mundo chega”. Depende das sensibilidades e do motivo pelo qual aqui se vem, mas no que nos toca, apenas “Caveira” poderia trazer alguma inquietação. Mas não, é uma povoação de paisagem tranquila como as demais. A origem do seu topónimo não é certa, mas há uma lenda para nos ajudar. Conta-se que depois do falecimento do náufrago Demétrio, começou a brilhar no cimo de um monte uma caveira incandescente que pedia que rezassem pela sua alma – os habitantes terão rezado e a pavorosa caveira desapareceu. A Ponta da Caveira, onde se acede por uma estrada sempre a descer, é um promontório alto, com cerca de 300 metros. Por aqui fica a Furna ou Gruta dos Encharéus, a maior e mais famosa das Flores onde se diz que se esconde uma embarcação corsária (é visitável de barco, mas não o fizemos). Por entre densa vegetação costeira, daqui percebemos como Santa Cruz já vem perto.

Antes porém, continuamos a apreciar esta costa cheia de falésias cortadas por diversos vales por onde rompem ribeiras. Paramos no miradouro da Fajã do Conde e espreitamos a Ponta da Caveira à nossa direita e a dita fajã em baixo.

Antes de entrarmos em Santa Cruz resolvemos vê-la de cima, do miradouro do Monte das Cruzes. Primeiro damos mais uma olhada à costa mais a sul, com a bela povoação da Ribeira dos Barqueiros em queda sobre o Atlântico, e só depois nos debruçamos, literalmente, sobre Santa Cruz. É muito curiosa a sua implantação e desenvolvimento, no regaço de um monte verde preenchido por vaquinhas a pastar – um incontornável postal dos Açores logo na porta de entrada da ilha das Flores -, a pista do aeroporto rasga esta terra plana de norte a sul, de forma a que a vila fique toda apertada entre ela e o mar.

Gaspar Frutuoso, historiador e cronista das ilhas do século XVI, já escrevia então ser Santa Cruz “vila muito chã e bem arrumada”, ainda que as suas casas fossem cobertas de palha. O edifício mais bonito é, sem dúvida, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, “virada de costas” para o Corvo, como se só aos florentinos fosse permitido o prazer de contemplar a sua fachada. Construída em 1859, é uma das mais surpreendentes e cativantes de todos os Açores, quer pela escala quer pela harmonia.

Mais antigo, e de fachada bem mais discreta, não muito longe está o Convento e Igreja de São Boaventura, fundado em 1641 e onde foi rezada a primeira missa na ilha. A igreja é bem bonita, com retábulo exuberante em talha dourada de madeira de cedro e um tecto revestido da mesma madeira e decorado vivamente com motivos vegetalistas e índios, uma clara influência hispano-americana. O Convento acolhe hoje o Museu das Flores, paragem obrigatória para quem queira conhecer mais da ilha, sua história, geografia, condição humana, modos de vida e até ponto de escala e de ataques de piratas e corsários, que por aqui aguardavam as frotas carregadas de especiarias para as roubar – e com esta explicação já não será tanta a surpresa da informação de que o fundo do mar das Flores (e do Corvo) constituem um santuário da arqueologia naval internacional.

O que é surpresa, sim, por ser facto menos falado do que a presença americana nas ilhas Terceira e Santa Maria, é conhecer a história dos militares franceses nas Flores. Chegaram em 1964 e instalaram a Estação de Telemetria e por aqui construíram as suas residências, um hotel, um aeródromo e até uma estrada para o norte da ilha. Foram embora em 1993 e deixaram o Bairro dos Franceses (com simpáticas moradias modernistas hoje ocupadas por habitantes comuns), o Hotel Servi-Flor (mais conhecido como “hotel dos franceses”), um aeroporto (que entretanto cresceu e passou a receber aviões maiores) e a estrada Cedros – Ponta Delgada (pela qual havemos de conduzir sobre um asfalto tranquilo).

Mas o que mais nos encantou em Santa Cruz foram as suas poças. Graças à origem vulcânica, a capital das Flores tem uma série de piscinas naturais na sua costa negra onde é imperdível mergulhar. As nossas favoritas são as Piscinas Naturais abaixo do café Buenavista, ideais para se boiar tranquilamente com vista para o Corvo, e as do Boqueirão (também conhecida como Poça das Mulheres). Todas elas com água cristalina, num incrível contraste do azul do mar com o negro da rocha muitas das vezes coberto de tufos verdes.

Mas as do Boqueirão aliam a tranquilidade à espetacularidade das formas das suas rochas. E são uma verdadeira janela aberta para a costa nordeste, para onde seguiremos depois de visitarmos o Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão e o Centro de Interpretação Ambiental.

No Porto do Boqueirão, o edifício da Fábrica é inconfundível pela sua chaminé alta. Lá dentro aprendemos sobre a epopeia da baleia – os florentinos terão tido a primeira armação costeira dos Açores, por volta de 1856-57, o que não surpreende se realizarmos que é a ilha mais próxima dos baleeiros americanos, que introduziram a caça à baleia no arquipélago. Em Moby Dick, obra prima intemporal de Herman Melville, vem lá escrito, para não deixar dúvidas: “Um não pequeno número de baleeiros provém dos Açores, onde os navios de Nantucket lançam ferro frequentemente para completar as suas equipagens com os sólidos camponeses dessas ilhas rochosas. Não se sabe porquê, mas é dos ilhéus que saem os melhores baleeiros”. Nos últimos anos do século XIX, os corajosos baleeiros açorianos – e também cabo-verdianos – chegaram a representar 60% da mão de obra das barcas baleeiras americanas. Como não podia deixar de ser, a brava temática baleeira influenciou não apenas Melville mas igualmente vários autores açorianos, incluindo Vitorino Nemésio. Todavia, é de Roberto de Mesquita, poeta florentino, que encontramos as melhores descrições da baleia, “um recife a negrejar nas águas”, uma “rocha viva”. Era desde a vigia, colocada em pontos estratégicos da costa, que se detectava à distância de várias milhas o bufo dos cachalotes, o paradigma da baleia / cetáceo caçado nestes mares. Dado o alerta, os baleeiros metiam-se num bote e iam arriar à baleia. Aproximavam-se do animal, trancavam-no, perseguiam-no e disparavam lançadas até à sua morte, rebocando-o depois para o cais, onde era varado.

Neste Museu encontramos também uma cronologia da história da baleação no mundo. Nos Açores, porém, foi em meados do século XIX que se deu início à captura regular do cachalote. Impressionante perceber que a par da coragem e bravura dos baleeiros florentinos (e dos baleeiros açorianos em geral), a sua vida na ilha era tão desoladora e pobre que seguiam nas barcas baleeiras americanas às vezes a troco de roupas e pouco mais. As fábricas para processamento dos produtos extraídos do cachalote vieram depois, nas décadas de 30 e 40 do século XX. A Fábrica da Baleia do Boqueirão abriu em 1937, neste porto natural abrigado pelos ventos, e na década de 1970 entrou em declínio até encerrar definitivamente em 1984 – em 1981 havia sido apanhada e transformada a última baleia. Aqui se fazia o aproveitamento integral dos produtos da baleia e vemos ainda toda a maquinaria. O óleo da baleia era um produto muito desejado por ser de excelência em diversas aplicações desde a iluminação doméstica e pública ao sabão e cosmética, num quase sem fim de utilidades. Acabou-se. Resta a história de uma era distante.

Seguimos, então, pela costa nordeste, numa estrada cheia de belas vistas, quer para os montes ondulados e verdíssimos no interior quer para o mar largo onde é uma emoção descobrir o Corvo ao fundo. As falésias altas dominam, chegam a atingir os 600 metros, e a costa é recortada por baías e enseadas. E o mar está carregado de ilhéus.

Um dos lugares mais bonitos e incríveis da ilha fica por aqui: a baía de Alagoa. Antes de chegar aos Cedros, um desvio pelo vale abaixo deixa-nos face a uma praia de calhau com 5 ilhéus diante si, com um destaque absoluto para a composição perfeita de 3 deles, um em pé, um sentado e outro deitado.

Cá de cima nem se percebe que são 3, tão colados que estão, mas descendo até à beira mar distinguem-se na perfeição, bem como os outros 2 mais ao lado. Os nomes destes ilhéus são da Terra, Comprido, Soldado, Redondo e Furado e Gaspar Frutuoso já havia constatado da sua existência: “há muitos ilhéus no mar, afastados da terra um tiro de besta, e mais e menos, onde vão da vila de Santa Cruz pescar em batéis e matam salemas, sargos, pargos, enxovas, garoupas e palombetas e tomam algum marisco; em um dos quais, de grandura de meio alqueire de terra, nasce uma fonte de água doce; e outro é furado e por baixo passa um batel de uma parte para a outra; na entrada da banda do sul é mais largo e alto, onde já se meteu uma caravela com medo dos franceses.” Passe o exagero de por eles caberem batéis e caravelas, custa igualmente a acreditar que aqui na baía de Alagoa já terá existido uma lagoa (daí o nome) entre o calhau e a rocha, entretanto desaparecida no final do século XIX por derrocadas na rocha; mas assim foi. Todo o lugar possui um ambiente mágico e acima da baía existe uma área de lazer bem cuidada ideal para um piquenique e uma paragem demorada para nos mentalizarmos de que sítios como este existem de verdade.

Depois do vale abaixo, agora há que subi-lo, imaginando que já foi famoso pelas laranjas que aqui nasciam e onde, diz-se, chegou a haver 12 quintas. Seguem-se os Cedros, assim nomeados por ter aqui havido muita madeira de cedro. As vistas continuam grandiosas. Infelizmente, e para contrariar ideias feitas de que a ilha das Flores se vê em 20 minutos, não tivemos tempo de desviar para a Ponta Ruiva, o último lugar da ilha a receber luz eléctrica, apenas no princípio dos anos 80.

Continuamos na estrada que liga os Cedros a Ponta Delgada, a tal construída pelos franceses e que permitiu que a esta se acedesse sem ser exclusivamente de barco ou a pé. Hoje seguimos comodamente de carro, mas somos forçados constantemente a parar para admirar as vistas fabulosas. A própria implantação e formação geográfica de Ponta Delgada é uma beleza, uma “chã de óptima terra negra, terminando em aguçada ponta de rochas cor de cinza, contra as quais se desfaziam as espumantes e amplas vagas do oceano”, na descrição dos irmãos ingleses Joseph e Henry Bullar que por aqui passaram em 1838 e de cuja viagem pelo arquipélago resultou a obra “A Winter in the Azores and a Summer at the Baths of the Furnas”.

Ponta Delgada é a terceira mais antiga paróquia das Flores, depois das Lajes e Santa Cruz, e foi povoada por volta da mesma época. Mas é longe, longe. Pouco mais adiante fica a Ponta do Albarnaz e o seu farol, construído em 1925, “a primeira luz da Europa”, um aconchego simbólico da lonjura. É um marco na paisagem e, de imediato, um sentimento profundo de remotidão invade-nos. Esta costa é agreste, despovoada, quase um fim do mundo. O possante ilhéu Maria Vaz está aqui perto, ao esticar de um braço, e o ilhéu de Monchique, mais discreto e afastado da costa, representa o fim da Europa. Ou o começo dela? O mar torna-nos melancólicos, enche-nos de dúvidas, faz-nos sonhar. É o princípio e o fim de tudo.

3 Comments Add yours

  1. Gostei muito de saber um pouco mais sobre as Lajes das Flores. Agradeço os belos textos e fotos. Visitar a Ilha das Flores é um sonho antigo, e seus posts, trazem bons sentimentos e uma espécie de ‘saudades’ de um lugar onde nunca estive.
    Rosana

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    1. Cumpra o seu sonho e vá até às Flores. Sem pressas, deixe-se estar na ilha e aproveite as grandiosas paisagens. Depois o sonho passará a ser o de querer voltar 🙂

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      1. Estou muito … muito longe das Flores, mas vou usar essa ideia maravilhosa em sua mensagem – visitar a Ilha ‘sem pressas, deixar-se estar’ – como motivação e me esforçar mais para cumprir o sonho.

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