Quinta da Regaleira

A um vírus oportunista, uma resposta cheia de oportunidade. Não há turistas estrangeiros no nosso país e a maioria dos locais ainda se coíbe de passear? Então, toca de rumar a Sintra para aproveitar para ver a vila sem enchentes e, com sorte, ter um dos seus belos monumentos só para nós.

Foi isso que aconteceu na minha mais recente visita à Quinta da Regaleira, em Junho. Chegada logo à hora de abertura num dia de semana, andei pelos seus 4 hectares durante quase três horas cruzando-me apenas com meia dúzia de pessoas bem contadas. A beleza, o encanto e o misticismo da Regaleira só para mim foi um sonho tornado realidade.

A uma distância facilmente percorrida a pé desde o centro histórico de Sintra, é mesmo de sonho que se trata quando se menciona a palavra Regaleira. Quando em 1840 D. Ermelinda Allen Monteiro de Almeida, primeira Viscondessa da Regaleira, comprou os terrenos da quinta que existia já desde os finais do século XVII esta era conhecida como Quinta da Torre (pela torre hoje adossada à actual Casa da Renascença). Foi apenas no princípio do século XX que o lugar se transformou no Palácio e Quinta da Regaleira que hoje conhecemos. Tudo graças ao sonho do seu novo proprietário, António Augusto Carvalho Monteiro, o Monteiro Milhões, nascido no Brasil e com estudos em Coimbra, que com Luigi Manini, cenógrafo do Teatro São Carlos e arquitecto do Palácio do Buçaco, deram a Sintra uma obra-prima. A Regaleira conjuga natureza e arquitectura e condensa em si tudo o que Sintra é: romântica e artística, misteriosa e requintada. E daqui, imersos na vegetação intensa e luxuriante da Serra de Sintra, não faltam pontos de vista de excelência para os outros ex-libris de Sintra, o Castelo dos Mouros, o Palácio da Pena e o Palácio da Vila.

A entrada na Quinta da Regaleira é efectuada mais acima na estrada que nos há-de deixar no Palácio de Seteais. Até lá passamos por pormenores deliciosos no caminho, como uma fonte, uma estatueta em cima do muro e os contornos da Regaleira cheia de pináculos e merlões ao nosso lado esquerdo, claro.

Entramos pelo edifício que outrora serviu de Cocheiras e sem demora subimos em direcção ao Portal dos Guardiães, a primeira paragem numa viagem por jardins, grutas, lagos e edifícios majestosos. No amplo Terraço dos Mundos Celestes, as torres do Zigurate ganham destaque, apenas um dos muitos miradouros da Quinta. Ao elegante semi-circular Portal dos Guardiões não faltam igualmente as torres, mas nele há ainda os elementos decorativos da fonte na sua base central a chamar a atenção.

Ao lado fica o Poço Imperfeito, mas a nossa mente só tem espaço para pensar em chegar ao Poço Iniciático. Sem pressas, porém, adentrando pela floresta que nos cobre totalmente com a sua vegetação, um ambiente escuro e fresco, uma espécie de preparação para o que nos aguarda no Poço. A Regaleira está cheia de simbologia, diz-se que mitológica, alquímica, maçónica, esotérica, templária, enfim, tudo o que seja dado ao oculto encontrará aqui uma explicação. O Monteiro Milhões, para além de milionário, era um homem curioso e de vasta cultura e sensibilidade, atreito às questões científicas e filosóficas. No entanto, a simbologia que pretendeu expressar com a ajuda de Manini (relembremos, para além de arquitecto também cenógrafo) não é acessível a todos – a mim, por exemplo -, não sendo fácil perceber aqui uma visão cosmológica, referências ao binómio paraíso / inferno ou viagens iniciáticas. O que é fácil perceber, sim, é a aura de magia e mistério ao nosso redor.

E talvez em nenhum lugar da Regaleira como no Poço Iniciático se sinta esse poder. As rochas dispostas de forma quase artística não fazem prever o cenário que está para lá delas. Ou, melhor, abaixo delas. É um poço fundo, em espiral, com diversos patamares cénicamente preenchidos com janelas em arco. Este mundo é verde, estamos nas entranhas da terra, apenas uma nesga de luz natural acima de nós que se vai tornando cada vez mais ténue à medida que descemos. O silêncio apenas é perturbado pelas gotículas que teimam em cair num ritmo lento e cadenciado. Embora as muitas interpretações (ou até nenhuma), é aqui que melhor percebemos a presença de três mundos que se complementam: o céu, a terra e o mundo subterrâneo. Do Poço sai um percurso subterrâneo (encerrado) que o liga quer ao Portal dos Guardiões quer à Cascata (antes de deixarmos o Poço Iniciático há que referir que não existe qualquer prova de que este ou qualquer outro espaço da Regaleira tenha sido utilizado para práticas rituais).

Saindo desta viagem subterrânea quase transcendente, continuamos a subir, agora já na superfície a céu aberto, mas com a vegetação como protectora. Passamos pela Gruta da Virgem, uma de muitas, mas todas especiais. Seguimos junto ao muro, com o Castelo dos Mouros a deixar-se ver, sem mistério, no cimo da Serra.

O Lago da Cascata, o tal com ligação subterrânea ao Poço Iniciático, bem como ao Poço Imperfeito e a diversas grutas, é um dos momentos altos da decoração natural da Regaleira. Desenvolve-se por vários níveis ligados por escadas, permitindo-nos uma vez mais uma imersão na abundante vegetação. E faz-nos recordar como a água sempre foi importante deste os primórdios da Quinta, ainda ela não levava o nome actual. A água entrava aqui a partir dos aquedutos dos Anjos e da Serra e o actual sistema hidráulico é distribuído por uma série de minas, depósitos e diferentes espaços de água, como lagos, cascatas, fontes e charcas, para além de uma cisterna.

A água é, sabe-mo-lo, um elemento que confere romantismo ao cenário. E as fontes adensam-no. A Fonte da Abundância, por exemplo, está decorada com embrechados e figuras escultóricas. Igualmente, no espaço de recato que a envolve, com um banco e mesa, vêem-se elementos decorativos como uns vasos com a figura de veados. Mais uma vez, deste espaço pode retirar-se uma série de interpretações da simbologia que apresenta, como as letras inscritas, o altar e a figura da concha e do peixe. Não o querendo interpretar, aprecie-mo-lo, que já enche bem as medidas.

Também a Gruta da Leda, abaixo da Torre da Regaleira e sua varanda-galeria miradouro, tem um ambiente único. Este espaço interior com uma acústica e ambiente incríveis (parece que ainda estou a ouvir e sentir a água a cair) não é bem uma fonte, antes um tanque para onde cai uma cascata adornada pela figura de uma dama com cisne ao lado e pomba na mão – mais uma dose de simbologia para ser interpretada.

Aproximamo-nos cada vez mais do coração da Regaleira. Passamos a estufa com o painel de azulejos azul e branco na sua fachada e eis-nos logo acima da Capela da Santíssima Trindade e do Palácio da Regaleira.

É aqui, com estes dois edifícios, que o estilos manuelino e romântico revivalista atingem o seu apogeu, mas também os estilos gótico e renascentista. Ambos foram construídos com o recurso a materiais nobres, como o calcário, ao contrário dos demais edifícios da Quinta que empregam o granito local, incluindo a vizinha Casa da Renascença, sede da Fundação CulturSintra (a Câmara Municipal de Sintra é a proprietária da Quinta da Regaleira, que após obras de restauro abriu as portas aos visitantes em 1997).

A Capela da Santíssima Trindade é exuberante na sua fachada. As portas e janelas são super decoradas e os merlões e pináculos inundam a cobertura, incluindo a torre alta e esguia. Mas o espaço do seu “adro” é tão exíguo que não cabe na minha foto. Segue este banco como exemplo da sua hiper-decoração.

Estes elementos decoram igualmente a cobertura do Palácio. E aqui vemos a profusão dos estilos arquitectónicos referidos anteriormente – neo-românico, neo-manuelino, neo-renascentista e neo-gótico – em alegre comunhão, num equilíbrio perfeito. O que António Augusto Carvalho Monteiro pretendeu e Luigi Manini e sua equipa executaram foi uma mescla dos mais representativos estilos em território nacional, uma homenagem à história e à epopeia vivida pelos portugueses, daí o revivalismo arquitectónico. No interior do palácio visitamos diversas das suas salas. Bem decoradas, o que mais impressiona, todavia, são os estratégicos pontos de vista para desde o interior se contemplar as panorâmicas majestáticas da Serra de Sintra no exterior, incluindo o Castelo dos Mouros e o Palácio da Pena.

Ao redor da Capela e do Palácio apreciamos um jardim formal carregado de deliciosas espécies arbóreas, sendo que na altura da minha visita eram as hortênsias que tomavam todo o protagonismo.

Não deixamos a Regaleira sem conhecer mais umas grutas e lago, sendo que a Gruta do Labirinto é os dois na mesma medida. Tempo ainda para visitar a Loggia dos Pisões, a qual se vê da estrada que passa junto aos muros da Regaleira. Mas agora, cá dentro, podemos apreciar em detalhe os seus painéis de azulejo ao longo e ao fundo da escada que dá para o pequeno portão lateral da Quinta.

Em direcção à saída da Quinta percorremos, então, o Patamar dos Deuses, uma longa alameda ladeada por espécies exóticas e nove estátuas representando deuses mitológicos que desembocam no jardim e Palácio da Regaleira.

Nesta visita não houve nevoeiro que adensasse o ambiente de mistério da Regaleira e de Sintra. Não foi necessário para que o percebêssemos, e o céu azul e os jardins floridos realçaram ainda mais o esplendor de todos os elementos da Quinta.

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