Plovdiv

Plovdiv foi escolhida para Capital Europeia da Cultura 2019, mas na altura não recordo ter prestado muita atenção ao feito, daí que desconhecesse o que me esperava na visita à segunda cidade búlgara. Anunciava-se como sendo senhora do título de mais antiga cidade continuamente habitada da Europa e uma das mais antigas do mundo, o que logo criou grandes expectativas. Como saldo final, não é exagero considerar esta cidade de história rica situada no centro da Bulgária como uma das mais vibrantes de toda a península balcânica.

A cidade das sete colinas (hoje apenas seis, uma vez que a colina Kamenitza foi destruída no princípio do século 20 para a construção da nova cidade) proporciona-nos uma autêntica viagem no tempo, desde os trácios e passando consecutivamente pelos romanos, bizantinos, otomanos, revivalismo búlgaro, soviéticos e, agora, modernidade. É naturalmente bonita, banhada pelo rio Maritsa, embora não se chegue a sentir este curso fluvial (a não ser pelos mosquitos a partir do fim de tarde). Navegável até ao início do século 20, certamente um dos motivos que levou ao povoamento do lugar, e no cruzamento das rotas comerciais entre o oriente e o ocidente e entre a cordilheira dos Bálcãs (Stara Planina) e as montanhas Rhodope, nas férteis terras da antiga Trácia – em 4000 a.C. já os trácios tinham aqui a sua Eumolpia. Ou seja, é mais antiga do que Atenas, Roma ou Constantinopla. Parte do império romano desde 45/46, entre os séculos 1 a 4 transformou-se na maior cidade da província da Trácia. Era então a Philippopolis, nome derivado de Filipe II, rei dos macedónios e pai de Alexandre, o Grande.

São muitos os monumentos e edifícios representativos da longa história de Plovdiv. Desde logo, o complexo arqueológico de Nebet Tepe, com vestígios de assentamento neolítico e da referida cidade trácia de Eumolpia. Infelizmente, o acesso à colina – “tepe” – Nebet estava encerrado em consequência de deslizamento de terras no Inverno anterior. Uma pena, uma vez que esta é a mais popular das três colinas da cidade antiga e também lugar de uma panorâmica sobre a cidade.

Mas o maior símbolo de Plovdiv é o seu Teatro Antigo. À semelhança das maiores cidades do império romano, também Philippopolis tinha o seu teatro. Construído no século 1 durante o reinado do imperador Domiciano, tinha capacidade para 6000 espectadores e uma notável acústica. De forma semi-circular, a arquitectura deste edifício romano possui igualmente influências helénicas e elementos típicos como auditório, orquestra e cena. A simetria do auditório ao ar livre é evidente, com 28 filas de lugares em mármore à volta da orquestra e orientados a sul para as montanhas Rhodopes. Tal como outros teatros do império romano, os lugares honorários possuíam inscrições e, em especial, estas mostraram que o espaço era também usado como assembleia provincial da cidade. A cena, essa, era decorada com frisas, cornijas e estátuas e colunas em estilo jónico e coríntio, ainda perceptíveis e distintas.

O teatro romano de Philippopolis foi usado até ao século 5 – palco tanto para performances de teatro como lutas de animais e gladiadores -, data em que terá sido destruído por um terramoto ou incêndio. E só com as escavações arqueológicas levadas a cabo entre 1968-79, na sequência de um deslizamento de terras, voltou a ser descoberto e, depois, restaurado nos anos 1980. A história deste “adormecimento” parece inacreditável, até porque sob o teatro antigo foi construído um túnel nos anos 1960, aparentemente sem que se tenha dado conta da preciosidade que estava por cima. Certo é que, hoje, localizado nas Três Colinas da antiga Plovdiv, entre os “tepes” Taksim e Dzhambaz, temos um dos mais bem preservados teatros romanos do mundo. Mais, é parte da vida cultural da cidade, aqui sendo celebrados ainda hoje eventos de ópera, música e teatro para 3000 espectadores.

Fora do centro histórico – a designada antiga Plovdiv ou Três Colinas -, mas às suas portas, está aquela que para nós foi a visita mais surpreendente na cidade, a Basílica do Bispo. O espaço museológico foi inaugurado apenas em 2021, já depois da Plovdiv Capital Europeia da Cultura, e é um enorme exemplo de como se pode contar a história das diversas camadas de uma cidade através de recursos modernos, mantendo in loco elementos seculares. No caso, a Basílica do Bispo foi um centro cheio de vida entre os séculos 2 e 14: os romanos instalaram aqui um templo dedicado ao imperador e no século 4 esse templo foi substituído por uma majestosa igreja (a Basílica do Bispo); abandonada no século 7 pelos tempos incertos que então se viviam, com incursões bárbaras na cidade, alguns instalaram-se nas suas ruínas fazendo delas suas casas, ao mesmo tempo que a maioria dos seus habitantes procuraram refúgio na área das Três Colinas, hoje centro histórico / cidade antiga; 300 anos depois o lugar foi transformado em cemitério, tendo sido aqui encontradas centenas de esqueletos.

As escavações do lugar são relativamente recentes, uma vez que apenas na década de 1980 foi dado com o sítio, tendo os trabalhos arqueológicos acontecido entre 2016-19 (ou seja, quando as vizinhas catedral católica St Ludwig e a ortodoxa St Petka, a Nova foram construídas no século 19 ninguém sabia da existência da Basílica do Bispo). E o que estes revelaram foi que as pedras das fundações do edifício que agora visitamos não pertenciam à basílica, antes a um templo pagão do século 2 que teria sido magnífico, com colunas de mármore e elegantes capitéis e inscrições comemorativas, combinando elementos do classicismo grego e da arquitectura romana – este era um templo de culto ao imperador, que era visto como divino, servindo o seu culto para legitimar o seu poder sobre um vasto território. Quando o cristianismo foi legalizado no império romano, em 313, Philippopolis tornou-se um importante centro da nova religião, acolhendo uma significativa comunidade de cristãos. Foi nessa época de transição do paganismo para o cristianismo que os romanos terão construído uma grande igreja no século 4, a qual durante 250 foi o centro da nova fé. Com a nova basílica, construída sobre o anterior templo, os cristãos enviavam uma mensagem de continuidade, mas agora com o novo Deus Jesus Cristo a tomar o lugar do divino imperador. Em resultado, a Basílica do Bispo – a maior igreja do início do cristianismo preservada da Bulgária – era grandiosa, com 83 metros comprimento e 36 largura, uma prova irrefutável de Plovdiv como um dos primeiros centros religiosos da Europa, para além de sede do bispado.

Mas a maior maravilha que podemos observar, tantos séculos depois, está nos gloriosos mosaicos que outrora revestiam o chão da Basílica. A sua enorme variedade mostra como a arte cristã foi evoluindo, inicialmente tomando emprestados símbolos e estilos pagãos para depois os transformar. É uma grandiosa colecção de ornamentos, com diversas composições geométricas, símbolos e pássaros. Os primeiros mosaicos, do século 4 e início do 5, são os mais simples em desenho, sobretudo formas geométricas e poucas cores, como o preto, branco e ocre. Posteriormente, passaram a ser utilizadas cores mais diversas e formas geométricas mais ricas e intrincadas (fitas entrelaçadas, rosetas, escudos decorativos e a imortal hera) e desenhos mais figurativos, como maior variedade de pássaros (com o pavão como o mais impressionante, símbolo da imortalidade), flores e frutos, numa representação visual do jardim do Éden. Não é à toa que Philippopolis era conhecida como a cidade dos mosaicos e que esta arte tenha aqui florescido, usada para decorar desde a basílica a banhos públicos e vilas privadas. Tinham até uma palavra própria, “musóo”, de significado “fazer mosaicos”.

Mas há muitos mais vestígios romanos em Plovdiv para além do Antigo Teatro e da Basílica do Bispo, e ao olhar para eles é-nos igualmente fácil recriar a história. Como o Fórum e o Odeon e o Estádio, havendo ainda restos dos banhos públicos e do aqueduto com 30 kms que servia a cidade de água de nascentes vindas das montanha Rhodope. Isto faz da Bulgária (em especial, Plovdiv) um dos países fora Itália ou Grécia com ruínas romanas mais bem preservadas. São tantas que é impossível dar conta de tudo. Por exemplo, conta-se que quando no princípio do século 20 se projectou desenvolver a cidade, abrindo um longo boulevard – hoje a rua principal de Plovdiv, uma das mais longas ruas pedestres da Europa, com 1750 metros -, os trabalhos revelaram parte de uma estrutura que, veio a saber-se, correspondia ao antigo Estádio romano. Como não interessava prejudicar os planos de expansão da cidade que se queria moderna, ignorou-se. Só mais tarde, com a fundação da Unesco e novas preocupações e, sobretudo, fundos para a protecção do património cultural, julgou-se pertinente o estudo e divulgação da descoberta.

Construído no início do século 2, durante o reinado do imperador Adriano, o Estádio Romano de Plovdiv estava localizado na parte norte da cidade fortificada, entre as colinas Taksim e Sahat. Tinha 240 metros comprimento e 50 de largura e levava até 30 mil espectadores, sendo aqui realizados vários desportos e outras competições. Hoje está situado no início da rua principal da cidade e é mostrada in situ parte da estrutura antiga. Mais uma surpresa.

Entremos, então, na chamada Três Colinas, centro histórico de Plovdiv feito de ruas de pedra, bem sabendo que o seu Nebet Tepe está encerrado. Percebem-se aqui e ali muros da antiga fortaleza bizantina de Philipopolis, séculos 5 e 6, evidentes no piso inferior do hotel Hill House (que mantém ainda os muros parcialmente expostos) e atrás da Igreja dos Santos Constantino e Helena, para lá da porta em arco.

A Igreja dos Santos Constantino e Helena, ortodoxa, foi construída sobre um antigo templo romano e dedicada ao imperador Constantino, o Grande e à sua mãe. É a mais antiga em funcionamento na cidade e é um complexo com edifícios de diferentes propósitos, para além da igreja com pinturas decorativas na entrada e torre sineira, possuindo ainda fonte e escola.

Mas há mais igrejas neste centro histórico, como a Sveta Bogoroditsa, também construída no sítio de um templo anterior, mais imponente nos dias de hoje, no alto de uma escadaria à entrada das Três Colinas.

Plovdiv, não é, todavia, uma cidade que vive à conta do seu passado romano. Pelo contrário, marca igualmente fortíssima são os inúmeros exemplos de arquitectura nacional-revivalista búlgara. Explicando, no século 19, era então Plovdiv ainda otomana, começou a viver-se tempos de prosperidade e elevação do espírito político e cultural, em que a identidade nacional era galvanizada. Os mais ricos comerciantes da cidade, que se moviam por toda a Europa, começaram a importar o gosto francês, misturando-o com o turco-oriental. Em resultado, acabaram por criar uma arquitectura nacional muito própria, inconfundível e esplendorosa, que podemos hoje admirar pela série de casas na cidade antiga. Construídas em madeira e de fachadas coloridas, quase todas elas simétricas e com motivos barrocos, os seus interiores são dignos de artistas, combinando as funções de conforto e de impressionar os convidados.

O centro mais novo de Plovdiv, aquele que se foi desenvolvendo ao redor da tal avenida que é hoje uma das maiores ruas pedestres da Europa, é também ele agradável de calcorrear. Por entre a vida urbana, passamos por Milyo, o local que costumava perambular pela cidade, hoje imortalizado em estátua e a quem dizemos olá, e aproveitamos para buscar uma sombra no Jardim Tsar George, um recanto com árvores, flores e lagos.

E para provar que Plovdiv não é apenas história que já lá vai, o bairro de Kapana aí está para mostrar a faceta moderna da cidade. Distrito iminentemente de artesãos e comerciantes na Idade Média, era conhecido pelo nome Charshiya (mercado), mas dado o intrincado das suas ruas e ruelas tipicamente medievais, o nome evoluiu para Kapan (armadilha). No início do século 20 um grande incêndio destruiu muito do bairro e o necessário restauro que se lhe seguiu retirou algumas das suas características originais. Apesar de se ter mantido vivido, os novos tempos de uma economia planeada e a prevalência da propriedade pública fizeram com que o bairro fosse perdendo população e entrasse em decadência. Mas a partir da década de 1980, um novo processo de recuperação foi colocado em marcha e a preservação das ruas e o restauro dos edifícios tornou-se um objectivo como forma de proteger a identidade do bairro. O projecto não foi logo implementado, a queda do regime comunista em 1989 trouxe outras prioridades, mas à boleia da escolha de Plovdiv como Capital Europeia da Cultura 2019 foi, finalmente, executado. A maior parte das ruas de Kapana foram transformadas em zonas exclusivamente pedestres e o bairro tornou-se um centro de indústrias criativas, sendo tomado por galerias, estúdios, ateliers, restaurantes e lojas da moda. É hoje um lugar vibrante, colorido e cheio de energia, ideal para um jantar al fresco.

E, bom, com tudo isto ainda não referimos a arquitectura otomana na cidade, que forçosamente teria de marcar presença, até porque Plovdiv foi das últimas regiões da Bulgária a serem deixadas pelos turcos. Numa das entradas de Kapana, e logo paredes meias com o Estádio Romano, fica a Mesquita Djumaya. Construída no século 14, logo após a tomada da cidade pelos otomanos, é um dos maiores e mais antigos edifícios religiosos otomanos nos Bálcãs, percebendo-se nele influências bizantinas. O seu imponente e formoso minarete e as suas múltiplas cúpulas revestidas de chumbo destacam-se no conjuntos e são bem apreciados mesmo ao longe, enquanto se admira Plovdiv e a paisagem envolvente desde o alto do Sahat Tepe. Nesta colina descobre-se ainda uma torre do relógio em estilo minarete, do século 16, uma das mais antigas da Europa do Leste e a mais antiga do império otomano.

Já a arquitectura soviética em Plovdiv tem o seu momento mais alto – e com controvérsia à medida – na Bunardzhik Tepe, colina mais afastada do centro da cidade, que é lugar do monumento Alyosha, uma enorme estátua em homenagem ao soldado soviético, que não visitámos. De qualquer forma, a imagem desta colina ao fundo, uma das seis que já foram sete, é bem representativa da bela implantação natural de Plovdiv, à entrada das montanhas Rhodope, as maiores da Bulgária, no distante sul. Eumolpia, Philippopolis, Trimontium, Pulpudeva, Puldin e Plovdiv são os muitos nomes desta cidade de muita história e histórias.

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