De Corroios, concelho do Seixal, uma estrada de terra batida leva-nos até à Ponta dos Corvos, uma língua de areia no estuário do Tejo com uma área de sapal rica em avifauna e um património industrial testemunho de tempos antigos hoje em ruína. E vistas maravilhosas para o Seixal, Barreiro, Almada e Lisboa.


Apesar da estrada, decidimos seguir a caminhar desde o Moinho da Maré de Corroios, parte do Ecomuseu Municipal do Seixal. Edificado em 1403 por iniciativa do Santo Condestável Nuno Álvares Pereira, é um exemplo do aproveitamento da energia das marés, cuja aplicação à actividade moageira se generalizou entre os séculos XV a XIX no estuário do Tejo. Só aqui estão documentados 45 moinhos, 13 dos quais na área do concelho do Seixal, tendo desempenhado um papel importante na produção de farinhas que abastecia as populações locais e Lisboa. Estavam implantados em locais abrigados, como estuários, esteiros ou áreas de sapal, e os moinhos de maré permitiam um rendimento mais elevado relativamente às azenhas ou moinhos de vento. Com efeito, ao contrário destes, não dependiam nem da intensidade do vento nem do caudal dos cursos de água, conseguindo assim um funcionamento regular durante todo o ano, numa média de oito horas por dia, acompanhando o movimento cíclico das marés. A laboração do moinho estava, pois, dependente das marés, sendo a caldeira abastecida na enchente da maré através da comporta, que se fechava na vazante, retendo a água no interior do reservatório. A água era então direccionada para os rodízios, colocando-os em movimento. Depois, através de um sistema de engrenagens existente sob a bancada de moagem a energia hidráulica convertia-se em energia mecânica, accionando a mó superior de cada engenho de moagem e assim se procedendo à transformação do cereal em farinha.


Uma cruz no alto do telhado nas traseiras do edifício faz pensar que talvez houvesse aqui também uma capela; mas não, talvez fosse antes forma de procurar abençoar o processo de moagem, assim como a cruz no pão o procurava benzer. Mas não houve sorte nem benção que preparasse estes moinhos para a chegada das moagens industriais, a qual levou ao declínio dos sistemas tradicionais de moagem e, logo, ao abandono da maioria deles. O Moinho de Maré de Corroios, porém, manteve-se activo até à musealização do edifício pela Câmara Municipal do Seixal, em 1986, e a sua visita permite não apenas conhecer o processo do seu funcionamento como também enquadrá-lo historicamente.

Rodeado pelo Sapal de Corroios, logo no pátio diante deste moinho podemos observar algumas aves. Todavia, o posto de observação “oficial” do Sapal está mais adiante, logo após nos encontramos com o rio Tejo. Zona de grande diversidade de avifauna, são cerca de 100 as espécies aqui identificadas, a maioria migradora invernante, pelo que aumenta durante os meses de inverno. Garça-real, alfaiate, pernilongo, pato-real e flamingo são algumas das espécies que podem aqui ser avistadas, embora apesar de munidas com binóculos não termos conseguido identificar qualquer uma delas em especial, corria o mês de Novembro. Neste Sapal de Corroios há também muitos invertebrados e aqui, sim, a areia da praia da Ponta dos Corvos junto ao rio estava cheia de conchas de amêijoa.


Com cerca de 143 hectares de sapal salgado, esta zona húmida na parte ocidental da baía do Seixal é considerada a mais bem conservada do estuário do Tejo a sul de Alcochete. O seu ecossistema inclui vegetação halófita (plantas tolerantes à salinidade) – abunda a salicornia – e é o resultado da deposição de sedimentos, formando uma série de canais que se vão cruzando, dando uma imagem de ramos. A paisagem vai alterando conforme a variação da maré: na maré baixa a paisagem caracteriza-se por planícies de vazas lodosas e na maré alta o sapal é inundado parcialmente – e é nesta altura que aparecem os peixes.

Outra da riqueza desta zona é o seu património arqueológico industrial ligado à secagem do bacalhau. O rio Tejo proporcionava a pesca e a instalação nas suas margens de actividades transformadoras de pescado. No entanto, não era aqui que se pescava o bacalhau, tão presente nas mesas portuguesas. Na verdade, era bem longe das nossas costas que se ia buscar o “fiel amigo”. Os bacalhoeiros saiam em meados de Maio para chegarem aos bancos da Terra Nova antes do Verão, época da desova do bacalhau e de melhores condições climatéricas, voltando quando os porões estivessem cheios ou se instalassem as tempestades de Inverno no Atlântico Norte. Depois havia que secar o bacalhau, sendo que, como não podia ser feita com temperaturas muito elevadas, este processo terminava no fim de Março ou início de Abril. É aqui que a Ponta dos Corvos entra na história desta actividade, uma zona com condições ideais para a seca do pescado, com boa exposição solar e ventos dominantes favoráveis, bem como abundância de água captada das nascentes e poços artesianos.

E assim o início do século XX assistiu à vinda de empresas de pesca e secagem do bacalhau para a Ponta dos Corvos, que aqui passaram a descarregar o bacalhau e secá-lo, beneficiando ainda da possibilidade de reparação das embarcações nos estaleiros navais locais. A primeira a chegar foi a Companhia Lisbonense, em 1910, que aqui instalou a sua unidade industrial de preparação e secagem do bacalhau designada por Sociedade Lisbonense de Pesca do Bacalhau. Seguiu-se-lhe a Companhia Bensaúde, açoriana, que desde o século XIX armava embarcações para a Terra Nova e sob o nome Parceria Geral das Pescarias instalou-se no vizinho Barreiro em 1914 e estabeleceu na Ponta dos Corvos terrenos para secagem do bacalhau ao ar livre. Em 1947 veio a Fábrica de Seca de Bacalhau da Companhia Atlântica e na década de 1950 esta tinha a companhia de mais 3 empresas – para além das citadas havia ainda a Luso-Brasileira.




O complexo de edifícios da Companhia Atlântica é o que mais impressiona. A maior de todas as empresas, tendo chegado a empregar 600 pessoas, encerrou no princípio dos anos 1990, tem hoje as estruturas da sua antiga fábrica votadas ao abandono e em ruína, tendo sido tomada pelos graffitis. É, porém, um enorme testemunho de património arqueológico industrial de uma época que já lá vai. Vê-se a torre / tanque, as estacas nos campos onde se deixava o bacalhau a secar ao sol e dentro dos pavilhões esventrados encontramos ainda alguns tanques de lavagem do bacalhau (onde eram esfregados com escova para se retirar as impurezas e o sal a mais) e até um ou outro azulejo antigo com cenas típicas tradicionais portuguesas. Tudo isto acompanhado de uma implantação geográfica incrível, com o sapal e o Tejo por vizinhos. Um lugar obrigatório para quem gosta de espaços abandonados com história e qualidade paisagística.


O edifício da Companhia Atlântica tem um género de praia privativa à sua beira e o belo Seixal mesmo diante si. E está rodeado de moinhos de maré, o Moinho do Capitão à direita e o Moinho da Passagem à esquerda, este último de acesso difícil pelo muito lodo. E ainda anda por aqui perdido algures o Moinho do Galvão.

Mais adiante, já junto ao Parque de Merendas da Ponta dos Corvos, está o edifício da Sociedade Lisbonense da Pesca do Bacalhau, também em ruína e com mais um punhado de grafittis que lhe conferem um novo ambiente. Daqui vê-se o Moinho da Torre mais ao longe, também nos parecendo inacessível.



Deixado o património industrial para trás, abre-se agora a porta às vistas grandiosas. Desde logo o Seixal e sua baía, sempre belo sob que perspectiva for.

E, depois, o Barreiro, separado daqui por uma língua do Tejo.



A Praia da Ponta dos Corvos, também conhecida como Ponta do Mato, tem um longo areal com o Mar da Palha diante si. Lisboa está ao longe e não é nada fácil perceber-se com exactidão as voltas do Tejo. Certo, certo e passatempo delicioso é identificar-se diversos edifícios icónicos da nossa capital, sim, mas sobretudo os almadenses Cristo-Rei, Ponte 25 de Abril e o Pórtico da Lisnave. Haverá melhor panorâmica do Estuário do Tejo?