As aldeias da Serra da Tramuntana

Para quem pensa que Maiorca é só praia e folia, aqui está a Serra da Tramuntana para mudar ideias feitas. Uma extensa área de montanha junto ao mar que irrompe pela ilha de sudoeste a noroeste, é uma paisagem natural de picos calcários e falésias abruptas, cheia de pontos de vista e aldeias tranquilas e charmosas. É, na verdade, uma bela parceria entre o homem e a natureza que desde há séculos vem moldando o território de uma forma tão bela que a Unesco resolveu distinguir a paisagem cultural da Serra da Tramuntana como património mundial.

Desde o extremo sudoeste, La Trapa, até ao Cabo Formentor, a noroeste, são cerca de 90 quilómetros para serem atravessados com a maior das demoras, para melhor se usufruir a serra lado a lado com o mar. Fizemo-lo em dois dias, de carro, mas quantos mais dias houvesse mais belezas adicionaríamos a uma lista que nunca estará completa. Comecemos pelo trio de aldeias Fornalutx, Biniarix e Sóller, instaladas no centro da cordilheira, por entre montes e vales, facilmente ligadas umas às outras por caminhos pedonais.

É aqui que se percebe na perfeição o porquê da distinção da Unesco. O intercâmbio entre as culturas muçulmana e cristã, típica do Mediterrâneo, criou uma paisagem única, resultado de uma excelente adaptação do homem a uma orografia e condições ambientais difíceis. Para tal, os habitantes desenvolveram técnicas que lhes têm permitido aqui viver, como a construção de terraços (marjades) de cultivo delimitados por muros de pedra seca – permitindo vencer o desnível -, uma tecnologia hidráulica complexa e uma grande rede de caminhos empedrados (muitos deles hoje parte da Rota de la Pedra en Sec, a denominada GR 221). Com isto, o homem interveio na paisagem sem a danificar, tendo até tornado-a melhor. E assim, estas terras do vale de Sóller acabaram por se revelar surpreendentemente férteis, próximas da costa e protegidas pelas montanhas.

Fornalutx foi a primeira das aldeias maiorquinas a constar da lista das povoações mais bonitas de Espanha e é uma das mais bem preservada aldeias de montanha. Ocupada pelos árabes que se instalaram nas terras do vale há cerca de um milénio, as suas casas são de pedra, tal como a calçada das ruas estreitas, e está rodeada de oliveiras centenárias – de lembrar que a produção de azeite já vem dos romanos e dos muçulmanos – e de laranjas e limões. Este é um passeio em que o olfacto não fica esquecido, sobretudo na Primavera.

A pequena praça principal de Fornalutx está ladeado por cafés e lojas, com a igreja acima. As ruas têm alguma pendente, mas é um prazer caminhar por elas e verificar como tudo está conservado e bem arranjado, com muitos vasos de flores às portas das casas. O edifício da câmara municipal é uma torre de defesa do século 17, uma das várias que desde há muito existiam na região. E não faltam testemunhos da presença da água, seja pelo lavadouro, seja pelas nascentes, fontes, moinhos de água (como o da vizinha Binibassi) e canais, água esta importante para lavar e para a rega das hortas.

Biniarix tem uma implantação tocante e à sua aproximação vamos vendo a torre da igreja a destacar-se do pequeno conjunto de casas (são apenas duas ruas), rodeado pela imensidão do vale logo abaixo de picos que impõem respeito. A igreja data do século 16, à semelhança da de Fornalutx, e a aldeia era ponto de paragem no caminho velho de Lluc, o mais famoso mosteiro da ilha, que o ligava às várias localidades vizinhas. Este caminho ainda é usado, agora pelos amantes das caminhadas e dos passeios na natureza, e este seu troço é um dos mais bonitos, precisamente na parte em que adentra no Barranco de Biniarix, o mais elaborado dos caminhos da serra, cheio dos tais terraços de pedra em socalcos. É uma incrível tranquilidade o que se sente no meio destas aldeias rodeadas por uma natureza inspiradora.

Sóller, por sua vez, embora não muito distante, é uma povoação maior e menos tranquila, carregada de turistas. Já existia quando os mouros aqui chegaram, mas foi desenvolvendo-se ao longo dos séculos até tornar-se no que é hoje, um lugar onde o passado e o presente, feito também de arquitectura modernista, convivem em harmonia. Na praça principal encontramos, lado a lado, a Igreja Parquial de Sant Bartomeu, o Banco de Sóller (obra modernista de Joan Rubió, discípulo de Gáudi) e a câmara municipal (a Casa de la Vila, com enorme escudo e pequeno relógio na fachada).

A igreja é uma construção de diferentes épocas: a primitiva, de 1236, em estilo românico que aproveitava restos de uma fortificação amuralhada; a intermédia, após a destruição parcial da anterior, reconstruída em estilo barroco entre 1688-1733; a actual, projecto executado entre 1904 e 1947, obra do mesmo Joan Rubió, que resultou numa fachada modernista de inspiração neogótica em que foi utilizada a pedra calcária originária de Sóller, de cor acinzentada. O interior é muito bonito, com cúpula enorme e rosácea com vitral colorido por cima do órgão e várias capelas laterais.

À estação ferroviária chegam os comboios com carruagens de madeira vindos de Palma, naquela que será certamente uma bela viagem pelas montanhas e vales que surgem no caminho, em funcionamento desde 1921. E se não empreendemos essa viagem, nem assim deixámos escapar a estação, mas por um outro motivo: é o improvável lugar de exposição de dezenas de peças em cerâmica de Picasso e pinturas de Miró. Um grande consolo para o facto de termos encontrado encerrado o centro de arte contemporânea Ca’n Prunera.

O desenvolvimento de Sóller foi feito muito por conta do seu porto. Começámos por ver Port de Sóller desde o miradouro de Ses Barques e, depois, descemos até à povoação à beira mar com praia e marina em forma de concha. Muito movimentada para o nosso gosto, logo procurámos lugares mais tranquilos, tarefa fácil.

Junto ao antigo mosteiro de Son Marroig e debruçado na falésia, o miradouro de sa Foradada tem uma grandiosa vista para o Mediterrâneo, enquadrado num muito característico arco natural na rocha. Diz que é um dos melhores da ilha para se estar ao pôr-do-sol.

Com cenários naturais destes, não estranha que diversos artistas e viajantes tenham escolhido a região para buscar inspiração e viver. O escritor Robert Graves ficou ligado a Déia e o pianista Frédéric Chopin a Valdemossa, as duas aldeias que se seguem neste itinerário.

Déia é, ao mesmo tempo, mar e montanha, um recanto protegido por uma série de montes com vista para o Mediterrâneo. As casas de pedra mantém-se como elementos distintivos da identidade comum da Tramuntana.

Subimos até à Igreja de Sant Joan, apreciando os muitos oratórios no caminho, e no pequeno cemitério ao seu lado percebemos que o poder e encanto de Déia vão para lá das vidas daqueles que a escolheram. Aqui repousa, entre outros, Robert Graves, que tem um museu a si dedicado à entrada da povoação. A bonita e serena aldeia é lugar de alguns hotéis de luxo, entre eles o Hotel Belmond La Residencia que é o centro da sua vida social e cultural – o seu café Miró tem algumas obras do pintor que adoptou Maiorca para viver.

Antiga povoação agrícola e piscatória, a Cala Déia fica a menos de 3 kms do centro, por uma estrada exígua onde dificilmente cabem dois carros. O mar estava um pouco revolto à nossa visita, mas é fácil imaginar esta baía como um lugar idílico em dias de ausência de tormenta, enquanto se aprecia o cenário desde o seu restaurante instalado num dos cantos da encosta rochosa. Não há areia, antes seixos, e o mar há de ser azul cristalino. Os pequenos barcos tem acesso ao mar através de uma rampa, espécie de tobogã, junto a um edifício de apoio em pedra com portadas das janelas azuis, réplica da cor do Mediterrâne.

Valldemossa, a última paragem deste primeiro longo dia entre a serra e o mar, é a mais bonita das aldeias da Tramuntana que visitámos. De origem medieval e situada no meio de um vale, esta charmosa povoação funciona como que um dois em um, como se fossem duas aldeias em plataformas diferentes. Na “primeira” está instalada a Real Cartuxa com a sua inconfundível torre em azulejo verde, refúgio do casal Frederic Chopin, pianista, e George Sand, escritora, que aproveitaram esta aldeia da ilha para ganharem inspiração para as suas obras. Como já chegámos fora de horas, não nos foi possível visitar o mosteiro, lugar por onde passaram outros escritores, como Jorge Luis Borges, e que conserva o piano usado por Chopin durante a sua estada. Assim como já não conseguimos “apanhar” uma coqueta de patata na Ca’n Molinas, pastelaria fundada em 1920, tendo de nos contentar com mais uma ensaimada.

A “segunda” parte da aldeia, que começámos por avistar desde o miradouro Miranda des Lledoners, fica mais abaixo e lá destaca-se a torre da igreja Sant Bartomeu. As ruas de Valdemossa são muito pitorescas, com as costumeiras casas de pedra e cheias de flores. Entre elas está a casa natal de Santa Catalina Thomàs, única santa de Maiorca, que aqui nasceu em 1531. Como não haveria Valdemossa de ser a mais bela, carismática e inspiradora das aldeias da Tramuntana?

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