Do Cabo Raso a Santo Amaro de Oeiras (22 kms) – 5.° Acto

Numa caminhada em grande parte urbana, nesta jornada partimos à descoberta de uma costa que mistura paisagens agrestes, onde parece que o Homem não chegou a tocar, e paisagens onde a areia branca com chalets à sua beira nos levou a epitetar esta frente marítima de “riviera portuguesa”. Sempre com o mar ao lado, e o Tejo sob vista, Cascais e Estoril ficam a caminho, mas também a Boca do Inferno e campos de lápias. Como se escreveu no volume “Lisboa e Arredores” do Guia de Portugal, editado em 1924, as praias em si podem até ser “bastante insignificantes; mas o que nelas é magnífico é o panorama amplíssimo para o Tejo, a barra, a baía de Cascais, os montes e areais de além rio – tudo visto a uma luz prodigiosa, que dá uma fluidez incomparável ao céu azul e ao mar azul”.

Numa jornada repleta de fortes, nada como começar a caminhada mesmo diante de um. No Cabo Raso fica o antigo Forte de São Brás de Sanxete, transformado em farol em 1894. À semelhança da maioria das fortificações da região, foi construído após a Restauração da Independência (1640), como parte da linha defensiva da barra do Tejo.

Como o nome “raso” anuncia, por aqui as terras e as arribas têm pouca elevação e são planas e o receio de invasores levou a que se criasse uma rede de fortificações marítimas para protecção de Lisboa. Acontece que, após a Restauração, a paz chegou e estas fortificações perderam muito do seu sentido, embora a defesa da costa tenha vindo a colocar-se em momentos posteriores, como durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) e durante as Invasões Francesas (1807-1810). Em consequência, ao longo do século XIX, algumas foram reconvertidas para outros usos (faróis e serviços públicos, sim, mas também casa de chá e discoteca, como o Forte de São Pedro do Estoril, na Poça), outras destruídas e outras ainda abandonadas. E, claro, umas são mais simbólicas do que outras, como a Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, antiga residência real e hoje Cidadela de Cascais, ou o Forte de Santo António da Barra, onde António de Oliveira Salazar caiu da cadeira, hoje visitável aos fins de semana.

Saindo, então, do Cabo Raso passamos pelas ruínas de antigos viveiros de marisco e por algumas reentrâncias e enseadas na costa com baías estreitas pelo meio. O que mais surpreende, no entanto, é a rudeza da rocha e da laje escuras, formando interessantes plataformas calcárias, fendas, covas e grutas. A vegetação é rasteira, mas consegue ser algo florida. Aqui marcam presença o funcho marítimo, a raiz divina, a sabina e o zimbro da praia. O vento e ondulação fortes, elementos da casa, não deixam que haja vegetação de grande porte, embora aqui e ali um pinheiro ou outra árvore maior tente vingar, a custo de ver os seus troncos retorcidos.

Segue-se novo forte, desta vez o de São Jorge dos Oitavos. Construído entre 1642 e 1948, hoje é um museu onde se mostra a história e função desta estrutura ao longo dos tempos. Mas também o património natural da zona é de destacar. Pouco adentro na terra, o complexo dunar Guincho-Oitavos, parte do Parque Natural de Sintra-Cascais, é um sistema muito particular, uma vez que a areia vinda das praias do Guincho e da Cresmina vai até ao Cabo Raso e volta ao mar entre os Oitavos e a Guia. Tudo cortesia do vento forte local, que faz com que as partículas de areia rolem livremente por um caminho muito seu. É, pois, um lugar de dunas instáveis a preservar. Não obstante, paredes meias com a natureza encontramos a Quinta da Marinha e suas luxuosas moradias. A Mata da Marinha, que já foi certamente muito maior, foi descrita no referido volume “Lisboa e Arredores” como “uma linda mata de pinheiros” onde se “proporcionavam passeios agradáveis e realizavam corridas de cavalos muito concorridas pela melhor sociedade de Lisboa”. Nem tudo terá mudado.

Estamos ainda junto à Estrada do Guincho, onde passamos pelo Furnas do Guincho, restaurante de marisco mesmo sobre o Atlântico, com viveiros próprios e uma laje cénica. O Farol da Guia vai-se avistando ao longe e é já à sua porta que vemos que é mais uma fortificação com novo uso. O antigo Forte de Nossa Senhora da Guia, também construído em 1642 – conforme inscrito na lápide que encima o seu portal e por baixo da coroa -, está hoje entregue ao Laboratório Marítimo, pólo da Faculdade de Ciências de Lisboa. Em 1580 havia por aqui a Ermida de Nossa Senhora da Guia e terá sido junto a ela que as forças invasoras espanholas comandadas pelo duque de Alba desembarcaram, acabando por levar à ocupação Filipina em Portugal.

Por altura da Guia as falésias vão crescendo e vê-se até um grupo em exercícios de escalada. Pouco mais adiante, entramos na Casa da Guia, sendo recebidos pelo muito amarelo palacete oitocentista da antiga Quinta dos Condes de Alcáçovas. Espaço com lojas, restaurantes e cafés, nem o ambiente e olor de pinhal nos faz esquecer que estamos em Cascais: sopa a 13 euros?

E com pouca demora chegamos à Boca do Inferno, um dos locais mais emblemáticos e visitados desta frente marítima. O mar e o vento não estavam típicos, daqueles que tornam o cenário dramático, vezes demais até literalmente. Pelo contrário, sem ondas e sem vento, deu para chegar perto da água e perceber quase na perfeição esta grande cova aberta na rocha escarpada com cerca de 20 metros de altura, esculpida pelo mar ao longo de milhões de anos.

Junto à Boca do Inferno há um outro fenómeno curioso, um campo de lápias. Não é caso único na zona, mas na Pedra da Nau entende-se melhor as formas rugosas e escavadas da rocha, consequência do processo de erosão da água do mar na rocha calcária, acção de resultado idêntico ao das grutas. Para além de ser um lugar privilegiado para a observação de corvos marinhos e outras aves marinhas.

Imediatamente antes do Farol Hotel, uma língua de areia estreitíssima anuncia-nos o Farol de Santa Marta (antigo forte de mesmo nome) e sua bela prainha. Este é talvez um dos lugares mais bonitos de Cascais, um conjunto formado por um farol, uma praia e um palacete, com a marina e a vila logo à espreita. Cá de baixo já o sentimos, mas a subida ao topo do Farol e a vista fantástica desde o seu varandim-miradouro só confirma o sentimento.

O palacete é hoje Museu Condes de Castro Guimarães e a sua entrada está logo depois da ponte mais pequena sobre o Atlântico. Instalado na antiga Torre de São Sebastião, construída entre 1897 e 1900 na enseada de Santa Marta por iniciativa de Jorge O’Neill, um aristocrata e financeiro de ascendência irlandesa, este é um dos exemplos maiores da arquitectura de veraneio de Cascais. Bonito por fora, não o é menos no interior, valendo muito a pena a visita a esta casa-museu inaugurada em 1931 e que leva o nome do seu segundo proprietário, Manuel Inácio de Castro Guimarães (1858-1927) – foi ele que legou em testamento à vila de Cascais a casa e todo o seu recheio. Destaque para a decoração dos tectos e o revestimento azulejar, entre muito mobiliário delicioso.

Contíguo ao palacete dos Condes de Guimarães temos a Ermida de São Sebastião, de 1594, e o Parque Marechal Carmona (ou da Gandarinha), zona verde de excelência da vila.

Cascais não tem falta do que visitar: o Centro Cultural de Cascais, a Casa das Histórias – Paula Rego, as ruas estreitas do centro histórico, a praça dos paços do concelho com a estátua de D. Pedro I (rei que, em 1364 elevou a então aldeia de pescadores a vila, autonomizando-a de Sintra) e a Cidadela são apenas alguns exemplos. Um gelado rápido (tirando a espera na fila) no Santini cai sempre bem e uma refeição mais demorada quer-se num dos restaurantes da moda entre as ruas Alexandre Herculano, Nova da Alfarrobeira e Afonso Sanches, envolvidos pelos graffitis no piso de asfalto e nas fachadas dos edifícios.

A primeira terra para quem vinha do oceano Atlântico, no final do século XV D. João II mandou levantar em Cascais a Torre de Santo António, a qual fazia parte da defesa de Lisboa a par das torres de Belém e da Trafaria. Protegida pelos ventos, nesses tempos aqui paravam as naus e caravelas antes de entrarem na hostil barra do Tejo e Lisboa. Pouco resta da Torre de Santo António, mais tarde envolvida pela Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, com uma arquitectura que marca uma transição do castelo medieval para a fortaleza moderna. Construída em 1590, depois da Restauração esta fortaleza foi reforçada pela Cidadela e em 1870 D. Luís fez da antiga casa do governador sua residência de Verão. Hoje, o Palácio da Cidadela está afecto à Presidência da República e os espaços que o rodeiam foram transformados em hotel, restaurantes, livrarias e lojas de arte, sendo um dos lugares de visita obrigatória na vila.

E, claro, a vila de Cascais é também as suas praias. A partir da Baía de Cascais sucede-se uma série de praias urbanas, quase todas elas com um elemento apalaçado que as torna mais distintas. Foi a construção da estrada, primeiro para Oeiras e depois para Sintra, na década de 1860 – e, depois, o comboio -, que levou à descoberta das praias da Linha de Cascais. Foi uma elite que a começou por frequentar, seguindo a família real portuguesa, e construíram-se novas habitações de veraneio. A II Grande Guerra Mundial trouxe a Cascais e ao Estoril diversos exilados de famílias reais estrangeiras, para além de muito outro “beautiful people”. A fama “in” destas povoações nunca mais as largou.

A Praia da Ribeira mantém num canto as redes e artefactos de pesca – não estranha, pois, que seja também conhecida como a Praia dos Pescadores -, enquanto no outro é fechada pelo Palácio Seixas, um chalet do século XX, mas com ar medieval, implantado sobre o antigo Forte de Santa Catarina.

Já a Praia da Rainha é uma pequena enseada com uma rocha a dividir o curto areal.

A Praia da Duquesa é maior e novo chalet se apresenta para a embelezar, a Casa Palmela. Construída em 1870 pelos duques de mesmo nome sobre o antigo baluarte de Nossa Senhora da Conceição, é um dos símbolos da riviera de Cascais, conhecida como a “Abadia” pela sua arquitectura revivalista e neogótica.

E depois de mais umas prainhas, sempre para cá da Avenida Marginal e da linha do comboio, segue-se o Tamariz, já no Estoril. Conhecida pela sua piscina oceânica, o chalet Barros marca a paisagem. Também construído sobre uma fortificação, no caso o Forte Santo António da Assubida (também conhecido por Forte da Cruz), o Palacete Barros surgiu em 1886 por iniciativa de um rico lisboeta de nome João Martins de Barros.

Não atravessamos a rua para ver os Jardins e o Casino do Estoril, seguindo, ao invés, pelo Paredão. Passamos pela Praia da Poça, famosa nos séculos XIX e XX pelos seus banhos, com a muralha do Forte de São Teodósio da Cadaveira graffitada.

E depois da Praia da Azarujinha como que a frente de mar se fecha ao caminhante e somos forçados a ir breve pelo interior, voltando por altura do Forte Santo António da Barra, o tal da cadeira de Salazar. É pouco adiante que vemos a Ribeira de Caparide, que nasce na Serra de Sintra, ir desaguar no mar, passando sob a Ponte Filipina, muito escondida pela nova ponte. Foi construída em 1604 no lugar então conhecido por Cai-Água – esse o antigo nome de São Pedro do Estoril -, precisamente por a ribeira cair em cascata até ao mar.

Segue-se a Pedra do Sal e o seu Centro de Interpretação Ambiental, um anfiteatro natural com vista para o Atlântico. É outro campo de lápias à beira mar, tendo este nome por na maré baixa, quando a água vai, o sal ficar acumulado nas fendas na rocha. Mas para além da importância geológica deste lugar, é também relevante pela descoberta de necrópoles e respectivos artefactos nas grutas que aqui foram escavadas na rocha.

São Pedro do Estoril é ainda conhecido pela colónia balnear infantil da Fundação O Século, instalada junto à praia em 1927, obra social do antigo jornal de mesmo nome – o jornal acabou, mas a colónia permanece. A praia é mais uma da Linha, mas vem decorada por uns curiosos agaves. Após a Bafureira vem a Praia das Avencas, recolhida e tranquila, mais bonita na maré-baixa, quando a laje fica a descoberto e se forma uma piscina natural.

A Parede traz-nos mais um pouco de história, com a presença do edifício do antigo Sanatório de Sant’Anna (actual Hospital Ortopédico de Sant’Ana), fundado em 1904. O clima da Linha era então considerado indicado para o tratamento de doenças como a tuberculose, daí a ideia do abastado casal Frederico e Amélia Biester (que acabaram, ambos, por morrer da doença) que o médico Sousa Martins acabou por levar adiante. A Parede daquela época já possuía alguma importância enquanto núcleo populacional, sendo sobretudo uma povoação piscatória e agrícola, mas onde também a economia da cantaria, com a extracção e preparação de pedra, tinha destaque.

E assim chegamos a Carcavelos, o maior areal da Linha de Cascais e uma das praias mais concorridas da região de Lisboa. As suas ondas são frequentemente disputadas por surfistas e as suas areias por veraneantes e amantes de exercício físico. Historicamente, a cultura da vinha fez com que esta economia tivesse sido uma das principais e mais importantes de Cascais. Todavia, as pragas da filoxera, míldio e oídio do século XIX arrasaram as vinhas e a produção caiu dramaticamente. O vinho de Carcavelos resiste, porém, embora numa ínfima parte. E, mais uma curiosidade, em 1870 entrou em funcionamento o primeiro cabo telegráfico submarino, ligando Portugal ao Reino Unido desde a Quinta Nova de Santo António, em Carcavelos. Também conhecida por Quinta dos Ingleses, a instalação do cabo submarino e consequente vinda de técnicos britânicos e sua família trouxe a influência da cultura britânica, tornando-se populares desportos como o futebol, o ténis, o cricket e o rugby. A Quinta dos Ingleses, em cujo palácio funciona hoje a St Julian’s School, é uma das marcas de Carcavelos, agora acompanhada pelo recente campus da Nova School of Business and Economics.

E com a chegada à Fortaleza de São Julião da Barra entramos no concelho de Oeiras. Uma das maiores fortificações marítimas do nosso país, considerada o “Escudo do Reino”, foi construída entre 1562-1580, foi reforçada pelos Filipes com o acrescento de mais baluartes e novamente alterada após a destruição causada pelo grande Terramoto de 1755, à semelhança de outros fortes e edifícios da zona. Foi parte das Linhas de Torres, rede defensiva montada para reagir às Invasões Francesas e, depois, acabou utilizada como prisão política no tempo de D. Miguel. Hoje é residência oficial do Ministro da Defesa Nacional.

A Praia da Torre está logo do outro lado da ponta de São Gião, logo seguida da Marina e da Piscina Oceânica de Oeiras, com o Bugio à espreita.

O Bugio, ou Forte de São Lourenço da Cabeça Seca, foi construído entre 1643-1657, mais tarde restaurado em consequência de constantes danos pela ondulação e pelo Grande Terramoto, e depois transformado em farol. Fazia par com a Fortaleza de São Julião da Barra na defesa do Tejo e de Lisboa, fechando a barra. Instalado num banco de areia – a Cabeça Seca – no meio do rio a tornar-se mar, a sua torre sobre plataforma cilíndrica é muito pitoresca e simbólica, mais parecendo uma vela sobre um castiçal. É um exemplo de fortaleza renascentista de planta redonda, havendo quem entenda que foi inspirada no Castel Sant’Angelo de Roma. Os faroleiros do Bugio viviam num duro isolamento e apenas pisavam terra firme uma vez por mês para se abastecerem de mantimentos. No entanto, nos finais do século XIX e princípios do XX o assoreamento de parte do Tejo tornou possível durante esse período de anos a passagem a pé desde a Trafaria, pelo que esse isolamento foi de certo modo quebrado, uma vez que os pescadores das comunidades locais costumavam ir até ao Bugio para assistir à missa na capela do forte, sempre que a maré baixa o permitia.

É depois de passarmos por um dos mais recentes fortes da Linha, o Forte de Nossa Senhora das Mercês de Catalezete (Forte de Santo Amaro), acrescentado apenas em 1762, que nos despedimos deste percurso em Santo Amaro de Oeiras, já com Lisboa ao fundo e ainda com a icónica imagem do misterioso Bugio na mente e no coração.

Trilho no Wikiloc:

https://pt.wikiloc.com/trilhas-trekking/cabo-raso-santo-amaro-de-oeiras-98639810

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