É por isto que viajamos, aliar evasão, natureza e cultura. Mais, sítios como estes dão esperança de as hipóteses de descobrir novos lugares não terem fim. Senão, vejamos: a 20 minutos de um lugar que frequentamos há quase cinco décadas, só na última soubemos da existência dos Poços da Broca do rio Alvoco, em Seia.

Entre a Serra do Açor e a Serra da Estrela, o rio Alvoco nasce a 1990 metros de altitude pouco para lá de Alvoco da Serra e percorre cerca de 30 kms até se juntar ao rio Alva na Ponte das Três Entradas. É considerado um dos rios mais limpos da Europa e a sua água é fresca durante todo o ano. Mais habituadas a mergulhos durante o Verão, tivemos a oportunidade de banhar-nos num dia de canícula num determinado Maio, com o pequeno detalhe de ter nevado na região na semana anterior. Resultado, a habitual água fresca passou a gelada e a experiência revelou a sensação incrível de quase impossibilidade de a tolerar à imersão do peito. Não é à toa que este é um rio de montanha. E corre num vale encaixado, pleno de paisagens incríveis e lugares de interesse natural, histórico e cultural, com inúmeros açudes, levadas e cascatas criadas pelo homem. Como assim, cascatas criadas pelo homem? Para além do cenário, este é o grande interesse dos poços da broca.

Poço Fundeiro (Muro), Barriosa, Frádigas e Aguincho, eis as cascatas do rio Alvoco, criadas em consequência do desvio do seu leito (a de Muro está, na verdade, na ribeira de Loriga, a poucos metros de encontrar o rio Alvoco, e para Loriga existe ainda o Poço da Broca do Serapitel, na mesma ribeira). Algumas palavras-chave nesta história: rio e seu vale, xisto, agricultura, cultivo difícil, broca; e estas palavras deram origem a novas palavras-chave após o desvio do rio: meandro abandonado, poço, cascata. Mantém-se o incrível vale.

O Vale Fluvial de Alvoco é um geosítio que, à semelhança dos principais vales da Serra da Estrela, teve origem apenas nos últimos 10 milhões de anos, em consequência da compressão provocada pela colisão entre a placa africana e a placa euro-asiática, levando ao levantamento da montanha ao longo de um complexo sistema de falhas. Foi ao longo destas falhas que os principais cursos de água se instalaram e o facto de serem terrenos xistosos, logo rochas de fácil erosão, influenciou o percurso da ribeira, dando origem a um curso sinuoso e meandrizado (curvilíneo) nesta região entre Alvoco da Serra e a Vide. Eis a descrição da paisagem natural que a intervenção do homem ao longo dos últimos dois séculos tornou paisagem cultural. A escassez de água subterrânea, os declives acentuados e a falta de terrenos planos para a agricultura (daí verem-se amiúde diversos socalcos na paisagem, outra forma de adaptar e de contornar as vicissitudes do terreno), levou à construção dos poços da broca, uma obra curiosa e peculiar. Assim, nos lugares acima mencionados, foi escavado um novo canal para desviar o rio do seu percurso original – literalmente usada uma broca para partir a rocha – e o antigo leito tornou-se um meandro abandonado que, dada a sua localização junto à ribeira o tornar facilmente irrigável e fértil, foi aproveitado para a agricultura. Igualmente, foram criados açudes e minas de água, no sentido de armazenar a água que, depois, permitia a irrigação dos terrenos cultivados, e também levadas, que transportavam a água até aos terrenos de cultivo mais afastados do rio.

Como bónus, o desnível criado pelo desvio da água deu origem à criação de uma série de quedas de água e à formação de poços mais ou menos profundos, os ditos poços de broca, também conhecidos como obras do Caratão. É, em resumo, uma enorme obra de engenharia que hoje, à falta de gente para cultivar a terra ou tão somente para habitar as aldeias, deu origem a novos espaços de lazer.



Comecemos por Muro e o seu Poço Fundeiro, freguesia da Vide. A estrada que nos transporta até lá dá-nos grandes vistas serranas. Estacionado o carro antes da entrada na aldeia, um pequeno trilho que passa por uma levada que já viu melhores dias de conservação e uma breve zona de pinhal deixa-nos diante do primeiro poço da broca desta viagem. Selvagem, a água jorrava em abundância no espaço cortado na rocha, tendo imediatamente a seu lado uma casinha de xisto e telhado de ardósia que terá funcionado como moinho. Não era nossa intenção, mas não vimos forma de entrar no poço e, dada a chuva que caia, deixámos para uma próxima visita a aproximação à cascata desde o centro da aldeia.


E essa visita aconteceu. Num dia ainda de Verão, mas que havia amanhecido chocho e com nuvens, estacionámos ao lado da pequena igreja da aldeia de Muro, na expectativa de que pudéssemos fazer um piquenique frente à cascata e, quem sabe, até mergulhar diante dela. E não é que o céu abriu? Maravilha das maravilhas, um almoço entrecortado com um mergulho numa paisagem de sonho só para nós. O caminho até ao topo do Poço é fácil e agradável, mas se a água jorrar com mais abundância, em especial no Inverno, não dará para passar pelo corte na rocha feito pelo Homem e que permite esta beleza.



Segue-se a Barriosa, o mais famoso de todos os poços da broca. De acesso mais fácil, com um bom restaurante num edifício de xisto (o Guarda-Rios), um largo poço e espaço até para estender a toalha, o Poço da Broca da Barriosa tem a maior sucessão de cascatas. É um lugar encantado. Impõe-se a descoberta do sítio para lá da base do poço e da fileira de cascatas, para melhor se perceber a sua envolvente, nomeadamente nova queda de água no topo e a tranquilidade e beleza do rio Alvoco para lá dela, bem como a generosa área agrícola entretanto criada.



Frádigas está a pouca distância, na continuação da estrada. O topónimo terá origem na palavra fragas, o que faz todo o sentido. Uns breves passadiços permitem-nos aceder até perto da cascata, talvez a mais alta de todos estes poços da broca. Mais uma vez, um antigo moinho junta-se ao cenário neste poço, onde marca igualmente presença uma ponte que serve de miradouro para o belíssimo vale do rio Alvoco e montes ao redor.

Bem perto, mas já freguesia de Alvoco da Serra, fica o Poço da Broca de Aguincho, o único a que não chegámos à sua beira. Lugar de um viveiro de trutas e restaurante que serve as trutas pescadas ali mesmo, um ponto elevado na estrada deixa-nos perceber na perfeição a nova paisagem criada pela engenharia humana. Está lá tudo, a cascata, o poço e o meandro abandonado e pronto a servir de área de cultivo.
(Nota: o percurso pedestre linear, PR13 SEI – Rota da Ribeira de Alvoco, que liga Alvoco da Serra e Vide, permite-nos visitar todos estes lugares, caminhado em muitos momentos pelas levadas)