Por umas Aldeias de Oliveira do Hospital – Bobadela, Vila Pouca da Beira e Lourosa

Concelho extenso, Oliveira do Hospital é lugar de aldeias de xisto e de montanha, praias fluviais e ricas paisagens. Mas é, ao mesmo tempo, lugar de povoamento antigo onde a cultura dos diversos povos que por lá passaram se faz sentir na arquitectura. Em seguida, andaremos pelo centro e sudoeste do concelho, com passagens nas aldeias da Bobadela, Vila Pouca da Beira e Lourosa.

A aldeia da Bobadela, a dois passos da sede de concelho, guarda uma bem preservada antiga cidade romana, mais um testemunho da presença na região desta civilização, a par de vestígios de calçada romana aqui e ali em outras freguesias de Oliveira do Hospital. As Ruínas Romanas da Bobadela, apresentam como elementos mais evidentes um arco de volta perfeita, que terá constituído a entrada do fórum, e um anfiteatro. O Arco Monumental da Bobadela, em granito, está no largo principal da actual aldeia, diante da igreja local, e é acompanhado de troços de caixas murárias e de calçadas romanas. A importância da povoação é atestada por diversas lápides e uma delas refere que a antiga Bobadela foi civitas splendidissima. Não se sabe muito desta cidade romana, nem sequer o seu nome – Elbocoris? Velladis? Terá sido fundada no tempo de Augusto, o primeiro imperador de Roma, no século 1, e seria capital e parte de um extenso território entre as serras da Estrela, do Açor e do Caramulo.

Outro dos “mistérios” prende-se com a escultura em mármore branco que vemos por aqui, uma cabeça que será de um imperador romano – Tibério? Domiciano? -, achada em 1884 num pátio nas imediações do fórum.

O anfiteatro está situado perto desta praça principal, junto ao Centro Interpretativo da Bobadela Romana, e para além de ser considerado um dos mais bem preservados a nível nacional é surpreendentemente grande. Nele foram disputados jogos e lutas, entre o século 1 e 4, e tem agora a rodeá-lo a tranquilidade e verdura da paisagem relativamente plana da várzea da Bobadela, nada a ver com as terras mais a sul do concelho, muito mais acidentadas.

Ainda que de uma época posterior, Bobadela preserva ainda o pelourinho, ao lado do arco romano e em frente à Igreja. À aldeia havia sido conferido foral em 1256, por D. Afonso III, renovado em 1513, por D. Manuel, época da provável construção do pelourinho que, apesar de simples, tem alguns elementos decorativos manuelinos. E junto ao cemitério está a Ponte Romana da Bobadela, também uma construção do século 1. Sobre o rio de Cavalos, e ladeada por campos de cultivo, esta ponte é formada por arco único de volta perfeita, e o seu tabuleiro primitivo encontra-se completamente coberto por outro mais largo, escondendo a antiga estrutura, somente visível ao nível do leito do ribeiro, o que significará que não teria uma função de monumentalidade à época da sua construção.

Mais recente, mas retratando uma cultura ancestral que é parte da identidade local, em 2018 foi inaugurado na aldeia da Bobadela o Museu do Azeite. De gestão privada, a arquitectura do edifício do museu é original, tomando o formato de um ramo de oliveira, em que as suas salas expositivas se distribuem pelos equivalentes ao caule, folhas e azeitonas. Ao percorrê-las, viaja-se pela história da oliveira e do azeite, o “ouro líquido”, utilizados por diferentes povos há milhares de anos. O aparecimento da oliveira e do azeite no actual concelho de Oliveira do Hospital terá acontecido na época romana, onde esteve presente a anteriormente referida vila, e talvez o azeite aqui consumido tivesse passado a ser produzido localmente – trabalhos arqueológicos ao longo dos tempos, encontraram poucas ânforas por aqui, o que quererá dizer que a aldeia era produtora, uma vez que as ânforas serviam para transportar o azeite vindo de outras localidade (o que não quer dizer que não acontecesse, mas mais para determinadas elites que desejariam um azeite de melhor qualidade). As condições climatéricas na região eram, assim, favoráveis ao seu cultivo.

No Museu foi reconstituído um lagar romano e constata-se que a tecnologia tradicional é em grande medida idêntica às técnicas dos romanos, com mais de 2000 anos. E foi, igualmente, reconstituído um lagar de varas (onde se obtinha o azeite através da pressão exercida por troncos de madeira – as varas – sobre as seitas atestadas com pasta de azeitona) e está exposto um lagar de prensagem hidráulica (o “novo” sistema de produção do azeite). Noutra sala, veem-se exemplos de processos rudimentares domésticos e caseiros familiares para consumo próprio do azeite, como cavidades em rocha na Síria datados do séc 6 e 5 a.C. No corredor central do Museu é retratado o ecossistema onde a oliveira se inclui, bem como informação sobre o azeite como alimento integrante da dieta mediterrânea e tipos de oliveiras existentes. Revela-se, ainda, outras utilizações do azeite desde os tempos, seja no Antigo Egipto (iluminação e alimentação, perfumes e bálsamos medicamentos e cosméticos, sendo que as oliveiras e o azeite foram representaria amiúde na arte egípcia e em imagens nos túmulos associadas às oferendas aos deuses), na Grécia (também propriedades medicinais e usado em rituais), na Roma Antiga (produtos medicinais e beleza cosmética, iluminação e aquecimento), e na Idade Média (alimentação, iluminação, medicina e perfumaria).

Para terminar a visita, nada como uma refeição no Restaurante Olea, nome da espécie de oliveira mais comum no nosso país, experimentando-se à mesa iguarias elevadas com o produto sob exposição enquanto, da janela, se espreita a tranquila paisagem serrana envolvente.

Vila da Pouca da Beira é a aldeia que tínhamos obrigatoriamente de passar para chegar à nossa Aldeia das Dez. Depois das Vendas de Galizes o ambiente mudava por completo, a ansiedade subia a pique e Vila Pouca anunciava um cheirinho de Aldeia, com a passagem do carro na rua principal a ser recebida pelos olhares dos seus habitantes sentados à soleira das portas de suas casas à beira da estrada – igual à entrada em Aldeia das Dez, onde quem estava na rua não tinha mais do que fazer a não ser sentir curiosidade por quem estava a passar. Mas a passagem a direito, rumo a outras povoações, não mostra o melhor de Vila Pouca da Beira, o Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento. Fundado na segunda metade do século 18, o lugar tinha já tradição religiosa, aí estando situada uma pequena capela dedicada a São José. A tradição diz que o Convento foi obra de “uma pobre pastorinha”, de nome Genoveva Maria do Espírito Santo, inspirada na devoção e num acontecimento passado em 1743, quando tinha 11 anos. Então, terá visto um ladrão roubar o sacrário da igreja matriz de São Sebastião de Vila Pouca, motivo semelhante ao da fundação do Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento da vila do Louriçal, em Pombal. A mesma tradição diz que a dita pastorinha, “analfabeta, rústica e boçal”, mas inflamada de amor a Deus, esmolou em Portugal e no Brasil, a fim de juntar provisões para a construção do Convento. Pouco credível, esta crença. Seria uma pastora, sim, na época comum às crianças e adolescentes de todas as classes sociais, mas não seria analfabeta, antes terá aprendido a ler e escrever com os franciscanos do vizinho Convento de Vila Cova Sub-Avô (hoje Vila Cova do Alva, já concelho de Arganil). E não seria pobre, pertencendo antes à família dos Abranches e Viegas de Vila Pouca da Beira, grandes proprietários e com alguns dos seus membros tornados clérigos, juizes e administradores de concelho.

O certo é que a Rainha D. Maria deu provisão para a fundação do Convento de Vila Pouca, a sua construção começou em 1780, primeiro com o hospício, e concluído o edifício conventual em 1801 chegaram, nem de propósito, as religiosas clarissas do Louriçal para o habitar. Pouco tempo depois, porém, em 1834 as ordens religiosas foram extintas e o Convento seria encerrado em 1889, data da morte da última freira. Primeiro adaptado a hospital civil, à semelhança de outros edifícios conventuais acabou ocupado por diversos serviços públicos ao longo dos tempos e, na década de 1930 arrendado às Religiosas Doroteias para instalação do seu colégio, frequentado, aliás, por duas das minhas tias-avó. Foi, depois, colónia de férias e recebeu retornados. Decisiva para o tempo que vivemos foi a intervenção efectuada no espaço do Convento pela Fundação Bissaya-Barreto a partir da década de 1960 e, já neste século, sua adaptação a unidade hoteleira, tendo sido parte das Pousadas de Portugal. A estadia no Hotel Convento do Desagravo é, pois, um excelente pretexto para melhor se conhecer o Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento de Vila Pouca da Beira.

Desde logo, a sua implantação é brutal, com uma paisagem linda para a Serra do Açor, onde vislumbramos na perfeição o Monte do Colcurinho, ponto mais elevado do concelho, com 1244 metros de altitude. O conjunto é formado por uma quinta, com algumas vinhas, e igreja, hospedaria e dependências conventuais. Um sossego. Destaque para o claustro, de dois pisos e envolvido por arcarias e coberto por uma abóbada, e para a igreja e para a capela-mor, esta última com tribuna. Nos espaços comuns do agora hotel, correspondentes aos antigos espaços conventuais, destaque para o antigo refeitório, actualmente sala de refeições contígua à cozinha com chaminé de grandes dimensões, e aos diversos apontamentos escultóricos e artísticos pelos corredores e salas, vindos da colecção da Fundação Bissaya-Barreto.

Vila Pouca da Beira, situada na margem direita do Alva, tem origens incertas. No século 19 foram descobertas moedas romanas numa quinta, bem como uma calçada romana, e documentos medievais referiam-se ao lugar como “Villa”, o que permite aventar uma eventual ocupação romana da povoação. Em 1258 já seria um concelho; teve câmara, cadeia e pelourinho, e foi-lhe outorgado foral em 1519, por D. Manuel. A povoação havia sido dos Condes do Redondo, depois do rei e chegou a integrar o concelho de Avô, tendo passado para o de Oliveira do Hospital a partir de 1855.

Depois de tantos anos a passar perto do desvio para Lourosa, um dia lá nos decidimos a visitar a povoação que é lugar de um dos poucos monumentos nacionais do concelho de Oliveira do Hospital (a par da Capela dos Ferreiros e das Ruínas da Bobadela). A Igreja Moçarabe de São Pedro de Lourosa, localizada no centro da aldeia, é um dos raros exemplares de arquitectura pré-românica no ocidente da Península Ibérica. Construída nos primeiros anos do século 10, é uma basílica tardo-asturiana de linhas rectas e sem decoração, tendo sido reaproveitado e reelaborado o material romano pré-existente. Uma epígrafe da igreja tem inscrita a data de 912 como sendo a da sua construção, época em que o reino asturiano havia sido dividido por morte do seu rei, tranferindo-se a capital de Oviedo para León, e que, ao mesmo tempo, havia subido ao poder o emirato de Córdova de Abd al-Rahmann III. Não surpreendem, pois, as várias influências do edifício, registando-se para além da referida também uma influência islâmica na torre-cruzeiro. Ao longo dos tempos, outras campanhas de intervenção no edifício se seguiram, claro, incluindo uma gótica visível no único capitel vegetalista que chegou aos nossos dias e uma intervenção profunda já no século 20. Infelizmente, não conseguimos visitar o interior da igreja. O problema destas pequenas aldeias é que a chave destes templos costuma estar entregue a alguma moradora e, no caso, a senhora estava doente.

A Igreja Moçarabe de São Pedro de Lourosa e sua praça monumental está acompanhada de um conjunto de sepulturas escavadas na rocha (sem ligação à igreja e únicas da época da Alta Idade Média na região do Mondego), da casa do pároco e do campanário. Junto a uma casa nobre do século 18, vê-se ainda o pelourinho da povoação, levantado no século 17, posterior à época dos dois forais concedidos a Lourosa, um em 1347 e outro em 1514. Mas a sua história vai mais atrás, como se viu. No século 12, Lourosa era pertença da Sé de Coimbra, e D. Afonso Henriques havia coutado a povoação. Em 1258 aparece referida como propriedade da Ordem do Hospital e em 1282 surge a primeira referência à comenda de Oliveira do Hospital como pertença da Ordem do Hospital.

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