Duas Aldeias de Xisto por Arganil

O concelho de Arganil, dono de uma paisagem entre serras com uma natureza com momentos luxuriantes, acolhe igualmente um património construído materializado em aldeias de xisto com um encanto especial. Vila Cova de Alva, à beira do rio Alva, e Benfeita, junto à Mata da Margaraça e à Cascata da Fraga da Pena, são duas das aldeias de xisto representantes da Serra do Açor.

Vila Cova de Alva, para alguns a “Sintra das Beiras”, aninha-se na margem esquerda do rio Alva, elevada sobre ele e parte do seu belo vale. Para trás ficou Avô, povoação do vizinho concelho de Oliveira do Hospital e que até 1924 marcou o topónimo de Vila Cova – até então era conhecida por Vila Cova de Sub-Avô, sinalizando a continuação do curso do Alva. De origem distante no tempo, desde o reinado de D. Sancho I que a região pertencia ao bispado de Coimbra e foi um dos seus bispos que no início do século 14 lhe concedeu o primeiro foral, renovado posteriormente quer por D. Manuel I, em 1514, quer por D. João III, em 1540. Foi povoação de importância, lugar de forte economia, assente na produção sobretudo de milho, centeio, feijão, vinho, castanhas, azeite e frutas, a atestar a fertilidade do vale do Alva, com lagares de azeite e moinhos junto ao rio para a moagem dos cereais. Ainda, aqui se fabricaram canastras de vergas de castanheiro, exportadas para todo o distrito, e houve uma fábrica de queijo. Nos dias de hoje, gostamos de passar por lá para comprar o seu bucho, para nós o mais delicioso da região. Extinto o concelho em 1836 (e integrado no de Coja e, logo a seguir, no de Arganil), permanecem os edifícios que testemunham os seus tempos de maior pujança. Diz-se que é esta a aldeia de xisto com o maior conjunto monumental, muito por conta de um convento religioso que aqui se instalou no início do século 18, mas quem passa na estrada que atravessa Vila Cova pode não dar pelos seus elementos monumentais, uma vez que a sua praça principal e casco antigo desenvolvem-se escondidos do olhar de uma rápida passagem.

É nessa praça, coração da aldeia, que encontramos a Casa da Praça, a Igreja da Misericórdia e o pelourinho. A Casa da Praça (ou dos Osório Cabral), do início do século 17, será o edifício mais antigo e corresponderia à casa da câmara e cadeia, sendo conhecido pelos seus habitantes como a Casa do Povo. A Igreja da Misericórdia, por sua vez, foi instituída em 1723. O seu edifício, em estilo barroco e rococó, mostra uma fachada com pilastras toscanas, encimada por pináculos piramidais, e um frontão com nicho com a imagem da Virgem com o Menino. Diante si, o Pelourinho terá sido construído por volta de 1514, aquando da atribuição do foral a Vila Cova por D. Manuel, e revela, precisamente, uma inspiração manuelina.

Perto, já a caminho da estrada, está o Solar dos Condes da Guarda, uma antiga casa nobre que mantém as armas da família no edifício da capela.

O edificado de Vila Cova está construído em xisto e granito, este último usado sobretudo nos elementos nobres das construções (como vãos, ombreiras, soleiras das portas e peitoris das janelas), mas a maioria das fachadas está rebocada e pintada de branco. A Rua Direita, que segue da praça até à igreja matriz, é de traçado irregular e possuiu algumas portas e janelas com molduras manuelinas, para além de outros elementos decorativos. É conhecida como a rua quinhentista, por ser essa a época da sua abertura e construção dos seus edifícios, remontando pelo menos 15 deles a essa data.

A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Natividade, construída em 1712, está implantada sobre o rio Alva numa das vertentes da aldeia e tem uma torre sineira que se destaca ao longe na paisagem. Ao seu lado está o Solar Abreu Mesquita, construído em 1828 e hoje em ruína. Não sabemos o que terá acontecido, mas até há poucos anos ainda permanecia de pé a fachada, percebendo-se na perfeição a sua diferente varanda coberta decorada exteriormente por ornatos em madeira.

Por fim, o Convento de Santo António, fundado em 1713, um conjunto franciscano capucho composto por igreja, convento e cerca que se desenvolve encosta de Vila Cova afora. Por ele, a aldeia chegou a ser conhecida como Vila Cova dos Frades. Uma escadaria com vários lanços transporta-nos até à sua igreja, antecedida por um terreiro com um cruzeiro. Por sorte, num dia festivo encontrámo-la aberta e pudemos perceber que à sua fachada sóbria, que inclui um arco triunfal de volta perfeita, corresponde um interior com belos retábulos em talha dourada em estilo barroco nacional, incluindo retábulos colaterais, onde se mantém as estruturas primitivas. Para a construção do convento foi usada madeira da Mata da Margaraça, que também pertencia ao bispado de Coimbra, e para lá da igreja desenvolvem-se os espaços regrais ao redor de um claustro que não visitámos. Durante as Invasões Francesas, em 1811 a passagem das suas tropas pela aldeia trouxe muita destruição ao convento, provocando danos, roubos e profanações na igreja. E a extinção das ordens religiosas, em 1834, votou-o ao abandono, tendo a cerca conventual sido aforada a um particular e os paramentos da igreja distribuídos pelas igrejas da região. A cerca ocupava um área grande (ainda hoje carregada de vegetação) e estava pontuada por fontes, parte do sistema hidráulico que descia pela vertente do monte, por via subterrânea, e desembocava na Fonte de Nossa Senhora da Graça. Ainda no século 19, o convento e cerca acabaram vendidos, tendo o seu novo proprietário adaptado-o a residência, daí o gosto neorevivalista que se observa na espécie de torreões do edifício principal, antecedido por um jardim.

De Vila Cova de Alva até à Benfeita é pouco mais de uma dezena de quilómetros de estrada, passando de imediato pela Fonte dos Passarinhos, caminho que nos vai dando boas abertas para o vale do Alva, com a aldeia de Digueifel (entre os nomes mais estranhos de povoações que já ouvimos, mesmo se há décadas nos habituámos a passar pela placa a indicá-lo) do outro lado do rio.

A Benfeita é outra aldeia de xisto de Arganil. Situada num encaixado vale da Serra do Açor, com muitas linhas de água e alguns terrenos dispostos em socalcos ao redor, este é um lugar de natureza bruta e primitiva, às portas da área de Paisagem Protegida da Serra do Açor, que inclui as deliciosas Mata da Margaraça e Cascata da Fraga da Pena. O topónimo Benfeita terá origem latina e virá do século 12; um documento datado de 1196 referia-se à povoação como “Bienfecta”, de significado “Bem Feita” – Benfeita por relação à construção da capela de Santa Rita, de oito paredes iguais e considerada muito bem feita? Ou Benfeita por referência à visita de senhores de um castelo à capela da Nossa Senhora da Assunção, que a acharam bem feita? Escolha-se a lenda. E a Benfeita, diz-se, já terá tido o nome de “Valverde”, cortesia do grande número de castanheiros que a rodeava.

O casario já esteve coberto com telhados de ardósia, mas hoje o contraste no verde da paisagem serrana faz-se pelo ocre das telhas e pelo branco das fachadas. Esta é, pois, uma aldeia de xisto branca, com as casinhas residenciais acompanhadas de muitos elementos patrimoniais religiosos, com diversas capelas e alminhas para além da igreja matriz.

Mas o seu maior símbolo arquitectónico é a Torre da Paz, com sino e relógio. Mandada construir em 1945 por um ilustre benfeitense, Mário Mathias, o seu objectivo foi o de celebrar o fim da II Grande Guerra Mundial, tocando o seu sino – o Sino da Paz, cuja inscrição gravada diz “este sino tocou pela primeira vez a anunciar o fim da Guerra da Europa em 1945”. Assim, desde 7 de Maio de 1945, todo esse dia do ano é assinalado com 1620 badaladas. Também o seu relógio tem gravadas frases que enaltecem a paz, numa “bendigamos a paz” e noutra “a paz seja connosco”. Com 11 metros de altura, está revestida a xisto e possui cúpula em granito e até ao 25 de Abril teve o nome de Torre Salazar. Ao lado, tem a companhia da alva e octogonal Capela de Santa Rita.

Ao redor da Capela de Nossa Senhora da Assunção, desenvolve-se o intrincado casco urbano da Benfeita. E pouco abaixo, onde está instalada a praia fluvial da aldeia, juntam-se as ribeiras da Mata e do Carcavão – a ribeira da Mata, vem desde a Mata da Margaraça, a que deve o seu nome; a ribeira do Carcavão corre até Coja, onde se juntará ao rio Alva. Aqui, o moinho do Figueiral foi recuperado, um testemunho de como era aproveitada a força da água em tempos idos. A aldeia possuía ainda lagares de azeite, mas hoje estão em ruína. Resta a memória do labor de antigamente, que no século passado enchia de gente a aldeia. Uma aldeia que entre as lendas associadas a ela tem um personagem que fez furor na região, João Brandão, que ficou conhecido no século 19 como o “terror das Beiras”. O salteador passou pela Benfeita, em busca do “Ferreiro”, membro de um bando rival, que aqui procurou esconder-se, sem sucesso, tendo acabado morto por João Brandão e seus homens. Mais pacífica e animada terá sido a temporada que o realizador Miguel Gomes passou na aldeia, por ocasião da rodagem do seu filme “Aquele querido mês de Agosto”, celebrando a volta dos emigrantes às terras que se viram obrigados a deixar em busca de uma vida melhor.

Se a natureza ao redor da Benfeita não permite hoje, século 21, uma vida economicamente desafogada, nem por isso ela deixa de ser generosa em termos paisagísticos. A Mata da Margaraça, aquela donde saiu a madeira para a construção do convento de Vila Cova de Alva (e também para o retábulo da Igreja da Sé Nova, em Coimbra), está referenciada desde o século 13 e possui uma densa vegetação e é uma das mais notáveis florestas caducifólias de Portugal, preservando a vegetação original das encostas xistosas da região. Carvalhos, castanheiros, sobreiros, aveleiras, cerejeiras, ulmeiros, azevinhos, freixos, azereiros e loureiros são algumas das espécies que encontramos nesta que está classificada como Reserva Natural e Reserva Biogenética do Conselho da Europa.

Junto a ela, e à Benfeita, fica a Cascata da Fraga da Pena, um acidente geológico atravessado pela Barroca de Degraínhos, formando um conjunto de quedas de água sucessivas, a maior delas com uma altura de 19 metros e uma piscina natural na sua base. O lugar é extremamente fresco, quer a água quer o ambiente sentido no ar, totalmente envolvido pela linda vegetação. E idílico, com pontes de madeira, caminhos e casas de xisto e até vestígios de antigas azenhas.

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