A Fife Coast, na costa este da Escócia, gosta de se considerar as Cinque Terre escocesas, o mais mediterrâneo que a região consegue apresentar. Porém, falta-lhe um clima aprazível por mais de, vá, uma quinzena de dias por ano. À falta de apelo para um português estender a toalha numa das suas praias, aproveite-se ainda assim as belas paisagens costeiras rugosas, o charmoso casario em tons pastel das suas vilas piscatórias e antigas fortificações, para além de uma gastronomia fresca e saborosa.

O antigo Reino de Fife foi um dos sete grandes reinos Pictish (Pictos), povos de origem celta que ocuparam parte do território que hoje conhecemos como Escócia entre o final da Idade do Ferro e o início da Idade Média. Vários reis escoceses foram coroados em Fife e alguns sepultados na Abadia de Dunfermline. Perto de Edimburgo e aproveitando o Firth of Forth (Estuário do rio Forth), a região é desde há muito de grande importância e preponderância para a nação, nomeadamente, enquanto fonte de alimentação e comércio, com diversos portos e centros piscatórios, tendo-se tornado muito industrializada a partir do século 19. Conseguiu, no entanto, preservar o seu património histórico e monumental e tornar-se numa região que atrai aqueles que gostam de partir à descoberta de sítios que aliam aqueles factores à natureza.



Vindos de Edimburgo, seguimos rumo à icónica Forth Road Bridge, mesmo ao lado da ponte vermelha ferroviária Forth Bridge, outro símbolo da Escócia. Mas, ainda a adaptar-nos à condução à direita do nosso novo bólide, nem demos pela travessia do Firth of Forth. A primeira paragem aconteceu em Culross, considerado o exemplo mais completo de burgo do século 17 e 18 e uma das mais pitorescas vilas da Escócia, cenário costumeiro de filmes e séries. Muito antes, porém, diz-se que no século 5 aqui vivia o monge pregador St Serf que, vendo numa barcaça uma mulher e seu filho, os salvou de afogamento e acolheu. A criança tornou-se o seu favorito e dilecto discípulo; de seu nome Kentigern, tornou-se conhecido como St Mungo, o lendário fundador e santo padroeiro de Glasgow. E, assim, a partir do século 6 Culross tornou-se um importante centro religioso, mais tarde próspero à conta dos seus ricos depósitos de carvão e às indústrias de fabrico de cintos de ferro e de salga. Com o florescer do comércio europeu, entre os séculos 16 e 18, Culross tornou-se num movimentado porto – são visíveis ainda hoje influências flamengas na sua arquitectura, o que se explica por as trocas comerciais terem sido mantidas sobretudo com a Zelândia.



Os tempos do concorrido e vibrante porto já lá vão e hoje, graças aos esforços do National Trust of Scotland, que em 1932 iniciou o restauro que nos permite sentir algum do ambiente que se terá vivido no século 17, permanece o bonito e tranquilo conjunto de casas brancas com telhados vermelhos e ruas empedradas com pendentes que procuram vencer o desnível da encosta sobranceira ao Estuário do Forth. O Market Cross é a praça central da vila, onde estava o Town Hall, equivalente à nossa casa da câmara, tribunal e prisão, e tinha ao centro o Tron, a balança que oficialmente pesava os produtos. Suba-se nas costas do Market Cross, a praça central da vila, para apreciar as vistas do anteriormente descrito e perceber uma nova cor na paleta deste cenário: o amarelo do Palácio de Culross. Esta é uma grande mansão de mercador, construída entre 1597-1611 por Sir George Bruce, descendente do rei escocês Robert the Bruce. Hoje propriedade do National Trust, não visitámos o seu interior, que diz que mantém muita da madeira original e pinturas nos tectos, numa muito boa reconstrução, nem o seu pequeno jardim, com ervas, frutos e vegetais de produção orgânica e sazonal.



Há ainda que subir ao lugar da Abadia de Culross. Fundada pelos cistercienses em 1217, o antigo mosteiro, que perdeu o uso depois da reforma protestante em 1560, está hoje em ruínas. Porém, ao seu lado permanece aquela que desde 1633 é a igreja paroquial da povoação, com alguns testemunhos da anterior – como a porta ocidental – e uns bonitos vitrais, para além de um monumental túmulo em alabastro com a efígie de Sir George Bruce, a figura local que mandou construir o palácio. Como é costume por estas paragens, no jardim ao redor da igreja estão diversas sepulturas, muitas delas adornadas com símbolos dos mercadores.


Um pouco mais distante, depois de percorrido um pedaço de countryside (zona rural), está a West Kirk, a igreja original de Culross. Hoje num lugar isolado e em completa ruína, foi abandonada no século 16 precisamente por ficar distante da povoação, restando-nos apreciar as suas interessantes sepulturas. Não fosse a chuva, a zona merecia que se continuasse a passear pela Floresta Devilla e pelo Castelo Dunimarle. Assim, aberto o apetite de Fife com Culross, um dos pontos de partida dos peregrinos que viajavam até St Andrews, partimos também nós pela designada East Neuk Coast, passando por Elie e Earlsferry, St Monans, Pittenweem e Anstruther, até chegarmos no fim do longo dia à mais ditosa das suas povoações, St Andrews de seu nome.


Earlsferry é um burgo real desde o século 11. O seu nome vem do ferry que ligava Dirleton e North Berwick, na outra margem do estuário, a esta zona do Fife (agora, o ferry pára um pouco mais a nordeste, em Anstruther), sobretudo para permitir um melhor acesso aos peregrinos rumo a St Andrews. Com a reforma protestante do século 16, esta rota de peregrinação perdeu muita da sua relevância o que, por sua vez, levou a uma perda do comércio – na ponta ocidental de Earlsferry está a ruína da Chapel Green, o lugar que serviu de abrigo aos peregrinos vindos do ferry. Os habitantes de Earlsferry tiveram de se virar para a pesca e, mais tarde, para a tecelagem do linho, época em que quase todas as casas tinham um tear. Todavia, também este comércio do linho entrou em declínio no final do século 19, em consequência de importações mais baratas deste bem vindas de outras paragens.


Já Elie, povoação contígua dominada por uma baía que proporcionava abrigo para os barcos, tem o nome derivado do gaélico “eilean”, de significado “passagem para barcos entre duas rochas”. O seu porto e celeiro estavam originalmente numa ilha apenas acessível na maré baixa, mas no século 19 foi construída uma ligação entre ela e a terra continental e, assim, duas baías se formaram. O comboio chegou em 1863 e, com ele, Elie e Earlsferry cresceu como destino de férias, com a maior parte dos residentes a alugar as suas casas para os veraneantes, o que levou a uma era de intensa construção, entre 1870 e 1930. Do istmo onde está o porto obtém-se a melhor panorâmica do aglomerado urbano, bem pitoresca, por sinal.




Segue-se St Monans. Não se sabe com certeza quem foi este santo, talvez um missionário irlandês do séc 9 que terá sido o primeiro a pregar o evangelho na Ilha de May, ao largo da costa de Fife. A ocidente da compacta povoação está a Igreja de St Monans, mesmo sobre o mar. Foi construída pelo rei David II, em 1362, na sequência de uma promessa em caso de sobrevivência a um naufrágio no rio Forth, o que acabou por acontecer. E daqui, em poucos minutos estamos junto às casinhas dos pescadores, que rodeiam o porto e os vários piers de St Monans.


O pier central foi construído em 1596, quando o lugar se tornou oficialmente num burgo, e em 1865 acrescentado o pier este e em 1879 o ocidental. Do pier original saiam os barcos, no século 18, para a pesca da arinca, bacalhau e arenque, vendidos depois nos mercados de Edimburgo, de onde eram exportados para a Europa continental. Hoje a pesca é sobretudo da lagosta e do caranguejo. Outra indústria importante foi a da construção naval, que perdurou de 1779 a 1992. O casario é simples e modesto, com algumas casas coloridas e floridas e, à parte as embarcações e redes espalhadas pelo porto, vemos um jardim kitsch, o Welly Garden, com plantas em galochas.




Entre St Monans e Pittenweem veem-se alguns moinhos de vento junto à costa, testemunho da fugaz mas importante indústria de sal local. Pittenweem, mais uma vila piscatória, deve o seu nome ao significado gaélico para “lugar de gruta”, em alusão à St. Fillan’s Cave, assim designada em honra de um missionário cristão que por aqui terá passado no século 7. No mais, hoje é um lugar popular entre artistas e artesãos e, para além da vista altaneira do emaranhado de telhados do seu casario, destaque para o Kelly Lodge, um edifício de pedra com três andares que vem do século 16.




Anstruther, a vila seguinte, é a maior e talvez mais popular de todas estas, com portos sucessivos. Historicamente, três burgos que se uniram em 1929 compõe hoje Anstruther: Anstruther Oeste, Anstruther Este, ambas separadas por um ribeiro de nome Dreel Burn, e Kilrenny. Cada um deles tinha o seu Merkat Cross, a praça central donde saia o comércio com a Europa continental. À semelhança do que escrevemos a propósito de Culross, também aqui os mercadores copiaram a arquitectura holandesa para as suas casas, em especial as empenas curvadas. Anstruther já foi a capital escocesa da indústria do arenque, até os cardumes fugirem durante a II Grande Guerra Mundial. Transformada, à nossa passagem, num parque de diversões, percebem-se ainda assim belas panorâmicas dos edifícios em tom pastel à beira mar. E este é um dos melhores lugares desta costa para se comer, fazendo aqui todo o sentido apreciar os famosos fish and chips.


Com o tempo a correr, deixámos escapar Crail, outra das povoações que mereceria uma visita, seguindo directamente para St Andrews, destino final da longa jornada. St Andrews é, já se disse, historicamente um centro religioso e de peregrinação. Foi fundada no século 4, na sequência de St Regulus ter trazido com ele, vindo da Grécia, as relíquias de St. Andrews, que se tornaria o patrono da Escócia e a sua cruz parte da bandeira. A maior atracção da vila é a catedral que, embora em ruína, é um poderoso testemunho da arquitectura medieval de toda a Escócia. Crê-se que no lugar tenha existido um mosteiro desde cerca do ano 700, mas a construção da Catedral de St Andrews teve início em 1160, no sentido de acolher as relíquias do santo de mesmo nome. Desde aí, tornou-se no centro da igreja católica na Escócia, no entanto, após a Reforma Protestante em 1560 entrou de imediato num declínio que levou à sua pilhagem e degradação. A visita ao interior do largo espaço é gratuita, mas na altura da nossa visita tanto o museu como a torre que são parte do monumento estavam encerradas para restauro. Foi, ainda assim, possível imaginar toda a escala e majestade desta catedral, que possuía 119 metros de comprimento, a maior alguma vez construída na Escócia, e da Torre St Rule, com 33 metros de altura.

Não muito longe da Catedral, e também com o mar por perto, está o castelo, antiga residência fortificada dos bispos durante os séculos 15 e 16, e que sofreu a bom sofrer às mãos dos inimigos.


E a vila foi igualmente um lugar de conhecimento, sendo a fundação da Universidade de St Andrews em 1413 disso sinal – a primeira da Escócia. Visitem-se os seus encantadores claustros.




E caminhe-se pelas ruas da vila, dona de edifícios de porte e mais umas quantas igrejas.


O porto de St Andrews não pareceu tão vivo como os das povoações vizinhas, mas a vila tem ainda outro ex-libris marítimo, a praia West Sands, com longo areal. Brumoso, uma vez mais. Acontece que, ao lado desta praia está o The Old Course, o mais antigo e famoso campo de golfe do mundo – em St Andrews, o golfe joga-se desde o século 15, mais uma marca imbatível desta vila da costa de Fife.