De Santo Amaro de Oeiras ao Terreiro do Paço (24 kms) – 6.° Acto

A última etapa da aventura de caminhar de Santa Cruz a Lisboa teve início em Santo Amaro de Oeiras, concelho de Oeiras, e final no Terreiro do Paço, umas das praças mais bonitas e carismáticas da capital, aberta ao rio Tejo, companhia constante ao longo de todo o percurso. À semelhança da etapa anterior, passámos por uma série de fortes, que outrora serviram de guardiães da linha defensiva da barra do Tejo, e por alguns dos maiores ícones arquitectónicos da Lisboa de ontem e da Lisboa de hoje.

Santo Amaro de Oeiras é uma praia urbana, uma das mais frequentadas do concelho, e marca o final do Tejo, onde este se encontra com o Oceano Atlântico – é consensual que o Bugio, a “ilha” formada por um banco de areia onde está o Forte de São Lourenço e Farol, mesmo diante de Santo Amaro, faz de fronteira entre o rio e o mar. Os primeiros passos neste troço do Passeio Marítimo de Oeiras, lugar de passeio de excelência que liga a Praia da Torre a Paço de Arcos, são percorridos sempre com o Bugio como pretexto para fixarmos ainda mais o olhar nas águas do rio a tornar-se mar.

E logo surge o primeiro forte no caminho, o Forte de São João das Maias. Em posição estratégica, foi construído em 1644, na sequência da Restauração portuguesa, data inscrita na porta de entrada juntamente com as armas reais.

Desde aqui, um novo elemento, um daqueles inconfundíveis, irá acompanhar-nos: a vista da Ponte 25 de Abril, ao fundo, que quilómetro a quilómetro irá aproximar-se. Lisboa está de um lado, na nossa margem do rio, e Almada na outra banda, com o Cristo-Rei, os silos da Trafaria e a sua longa faixa de praias que vai até ao Cabo Espichel.

Paço de Arcos é a praia e povoação que se segue. Na sua obra “As Praias de Portugal – Guia do Banhista e do Viajante”, de 1876, Ramalho Ortigão escreveu ser esta “de todas as praias da margem do Tejo a que mais desafogadamente vê o mar e respira a atmosfera marítima”. Na segunda metade do século 19, quando os banhos de mar ainda não eram para todos, esta era a praia de luxo dos arredores de Lisboa.

Vale a pena passar pelo jardim municipal, com coreto, e caminhar pelas poucas ruas do seu pequeno centro histórico, ruas estreitas com vista para o rio. Por aqui fica um surpreendente e interessante complexo de fornos de cal. Do século 16, é a maior estrutura de fornos de cozer cal dentro da zona urbana do nosso país. São em número de 5 os fornos, de forma cilíndrica e com caldeira e chaminé, onde era colocada a rocha calcária a calcinar, salvaguardada por paredes espessas para aguentar as elevadas temperaturas que levavam à decomposição química do calcário através deste processo natural, assim se obtendo a cal. Dois factores contribuíram para o sucesso deste complexo: a sua implantação ribeirinha próxima a Lisboa e o surto de construção havido entre os séculos 16 e 18. Com efeito, quer a fortificação da linha costeira quer a necessidade de reconstrução de Lisboa pós-terramoto levaram a um aumento da produção da cal na povoação. Havia pedreiras de calcário nas redondezas e um poço que propiciava água doce, pelo que resultava fácil a transformação da matéria prima nos referidos fornos de cal e seu posterior transporte para Lisboa através do porto fluvial ali perto – lembrar que o Tejo era então a principal via de transporte. Esta actividade de transformação da pedra, junto com as actividades agrícolas e piscatórias levou a um crescimento económico e urbano da vila.

O nome de Paço de Arcos deriva do palácio do conde das Alcáçovas, cuja origem vem do século 15 – diz-se que D. Manuel ia para a varanda do palácio ver sair as caravelas para a Índia. Muito destruído pelo Terramoto de 1755, nesse século 18 acabou reconstruído, mas a varanda continua característica e é graças aos seus três arcos, ladeados por dois torreões, que é hoje conhecido por Palácio dos Arcos, agora “hotel de charme”.

O Jardim do Palácio dos Arcos, de visita pública, é pequeno mas acolhedor e dá para a Avenida Marginal, totalmente aberto ao Tejo, daí que a vista seja um dos seus atractivos. Mas também as diversas espécies de flora, entre eles o sempre belo dragoeiro, e algumas esculturas de escritores portugueses e outras temáticas.

Pouco depois, na Avenida Marginal, está o Chafariz Velho de Paço de Arcos, construído depois do Terramoto. Monumental, é acompanhado de um painel revestido a azulejos azul e branco, originários da fábrica de Sant’Ana, representando cenas dos Descobrimentos. Pena é que a movimentada Avenida Marginal torne perigoso o atravessamento da estrada ora para espreitar o rio ora para espreitar o chafariz.

Depois de passarmos pelo Palácio Bessone e sua torre do relógio, construído em 1856, chegamos à pequena praia da Giribita, quase com tantas rochas como areia. É nesta ponta rochosa entre Paço de Arcos e Caxias que está o Forte de Nossa Senhora de Porto Salvo, também conhecido por Forte da Giribita, construído em 1649. Rebocado num tom amarelo forte, tem forma pentagonal irregular e duas guaritas em destaque, vendo-se ainda a pedra de armas real.

Atravessada a praia de Caxias e a ribeira de Barcarena (que aqui toma o curioso nome de Ribeira dos Ossos), junto à estação de comboios desta vila está nova fortificação, desta vez o Forte de São Bruno. É talvez o mais bonito deste conjunto de fortes, sem necessidade do recurso a pintura de cores chamativas para merecer a nossa atenção. Construído em 1647, esta fortificação abaluartada tem planta poligonal simétrica, praticamente estrelada, e a sua forma é melhor apreciada do alto da passarela da estação de comboios que nos transporta para o outro lado da linha ferroviária. O nome deste forte vem da sua proximidade ao Convento de Laveiras dos Frades Cartuxos de São Bruno, um dos dois conventos cartuxos no país a par do de Évora.

O Convento da Cartuxa de Laveiras / Caxias está ao abandono e só espreitámos a imponente fachada maneirista e barroca da sua igreja, reconstruída no século 18 sob projecto de Carlos Mardel, embora o Convento tenha sido fundado em 1603. O pintor Domingos Sequeira, cuja obra “A Adoração dos Magos” foi há poucos anos objecto de uma campanha de crowdfunding para a sua compra pelo Museu Nacional de Arte Antiga, esteve aqui como noviço entre 1796 e 1802. O Convento está implantado numa quinta ampla, de características agrícolas, e os seus edifícios sofreram adaptações em 1903 para a instalação do reformatório de menores hoje designado por Centro Educativo Padre António de Oliveira (o Estabelecimento Prisional de Caxias não anda longe), única utilização do conjunto conventual, para além da igreja, após a extinção das ordens religiosas em 1834. Uma placa à entrada dá conta do novo Gabinete de Recuperação da Cartuxa, criado para acompanhar a requalificação do Convento e Jardins da Cartuxa, na sequência do contrato de cedência assinado em 2021 entre o Estado português e a Câmara Municipal de Oeiras. Espera-se, pois, que tal aconteça em breve e que a recuperação e transformação das celas conventuais e claustros em centro de arte contemporânea e residências para artistas seja uma realidade.

Entre o Forte de São Bruno e o Convento da Cartuxa fica a Quinta Real de Caxias, praticamente ao lado da estação de comboios. É uma das quintas de recreio de referência em Portugal e a Câmara Municipal de Oeiras tem vindo a recuperá-la, sendo considerada um dos mais relevantes elementos patrimoniais do concelho. Foi mandada construir em meados do século 18 pelo infante D. Francisco, filho de D. Pedro II e senhor da Casa do Infantado (embora a sua conclusão tenha sido obra de D. Pedro III ainda enquanto infante) junto ao Tejo e à antiga estrada real. Incluía um modesto paço, sendo no fundo um prolongamento do Palácio Queluz, situado a apenas 7 kms. Mas em Caxias a família real e os seus convidados podiam desfrutar da brisa do rio nos dias quentes, ao mesmo tempo que se entretinham com passeios, jogos, peças de teatro, dança e música. O jardim barroco de influência francesa é o grande atractivo desta quinta. De forma geométrica e com eixos simétricos e alamedas, pontuados por esculturas de Machado de Castro, aliava fins lúdicos à horta de exploração agrícola, sendo a água (a ribeira de Barcarena passa perto) um elemento fundamental para alimentar as suas fontes, aquedutos, noras e, em especial, a cascata monumental. É dona de uma qualidade cénica incrível, nela se relatando a passagem “o Banho de Diana” da obra poética Metamorfoses de Ovídeo. Por cima, um pavilhão que tem as funções de mirante permite-nos apreciar não apenas os jardins como também o Tejo. Há ainda mais dois pavilhões, a Casa da Nora e a Casa da Fruta, e a Estátua de Hércules, no lado contrário aos jardins, está em renovação. O ambiente que aqui se vive é ainda hoje tranquilo e prazeroso, não sendo difícil imaginar o deleite da realeza nesta quinta: diz-se que era a residência favorita de D. Miguel nos últimos tempos do seu reinado, mas também para aqui gostavam de vir a imperatriz D. Amélia, mulher de D. Pedro IV, e D. Maria II e D. Fernando, tendo ainda aqui vivido D. Luís antes de se mudar para a Ajuda.

Após este desvio para a visita a estes dois espaços de Caxias, voltámos ao Passeio Marítimo: já não há o Forte de Nossa Senhora do Vale, mas no seu lugar está agora um grande letreiro que anuncia este passeio.

Passamos pelo Farol da Gibalta, torre de 21 metros de altura de cor vermelha e branca, e chegamos à praia da Cruz Quebrada, onde atravessamos o rio Jamor pela sua ponte metálica. A partir daqui seguimos pelo despido Passeio Marítimo, que corre junto à Avenida Marginal onde o seu casario nos mostra ainda alguns edifícios que fazem recordar os chalets de outros tempos na Cruz Quebrada e no Dafundo. Destaque para o Aquário Vasco da Gama, construído em 1898, por altura do 4° centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia, o que faz dele um dos espaços do género mais antigos de Portugal. São mais de 200 as espécies marinhas presentes no Aquário e o rei D. Carlos foi um dos impulsionadores da ideia, ele que foi um dos pioneiros da oceanografia no nosso país.

A linha do comboio é uma barreira física para que possamos passar de um lado para o outro, pelo que nos limitamos a ver ao longe os torreões e guaritas na alameda Hermano Patrone, já em Algés, pertencentes ao palacete Foz, construído na segunda metade do século 19 em terrenos que pertenceram ao Convento de São José de Ribamar – ainda se vê a sua bela varanda virada ao Tejo, mais uma propriedade ao abandono que aguarda retalho urbanizatório.

No final do Passeio Marítimo de Algés, num pontão está a Torre VTS – Centro de Controlo de Tráfego Marítimo do Porto de Lisboa – e o seu inconfundível plano inclinado a debruçar-se sobre o rio. Inaugurada em 2001, tem 38 metros de altura e é um projeto do arquiteto Gonçalo Byrne, destinando-se a orientar a navegação de embarcações até uma distância de 16,5 milhas marítimas.

E agora passam a suceder-se as docas, primeiro a de Pedrouços, do Porto de Lisboa, mesmo em frente à Trafaria. É difícil acreditar que tanto Pedrouços como Cruz Quebrada e Algés já foram praias muito frequentadas em pleno Tejo. A de Pedrouços, por exemplo, conta-nos Ramalho Ortigão na obra citada que era “a mansão oficial da vilegiatura burocrática de Lisboa. Chefes de secretaria, oficiais, amanuenses, tabeliães, guarda-livros, caixeiros de escritório, escrivães, retemperam anualmente em Pedrouços a sua pálida e sedentária fibra plumitiva. Por isso, Pedrouços, a uma légua de Lisboa, tem um pouco o aspecto de uma secretária de Estado – ao ar livre. […] como todas as da grande baía do Tejo, é lisa, plana, de areia fina.” Já no Guia de Portugal, edição de Lisboa e Arredores, lê-se ser este um “mar calmo para doentes, é um banho tépido quase em casa o que nos oferecem estas praias do Tejo”.

Não há praia já, mas há uma novidade, o Centro Champalimaud, à semelhança da Torre VTS, um dos novos edifícios que marcam a paisagem da zona ribeirinha de Lisboa. Inaugurado em 2010, é obra do arquitecto indiano Charles Correa e, segundo o próprio, a ideia da implantação geográfica e arquitectónica deste centro que se dedica à investigação científica nos domínios da medicina, em especial das neurociências e do cancro (para tal acolhendo os maiores cientistas do mundo), era que servisse de metáfora para descobertas de hoje da ciência contemporânea, uma vez que foi daqui que os grandes navegadores portugueses saíram na sua epopeia em busca de um mundo que era então desconhecido.

Ultrapassado o Forte Bom Sucesso, o último do nosso passeio, com o Monumento dos Combatentes do Ultramar, estamos, precisamente, diante da Torre de Belém, o monumento mais emblemático da nossa cidade. É de uma elegância e fantasia sem par, e tantas palavras já lhe foram dedicadas que optamos por recorrer novamente a Ramalho Ortigão: “considerada como construção militar, a importância da torre de Belém é absolutamente nula […] a única arma defensiva que pode empregar contra o inimigo é a sua beleza”.

Já não anda longe o Padrão dos Descobrimentos, da autoria do arquiteto Cottinelli Telmo e do escultor Leopoldo de Almeida, levantado por ocasião da Exposição do Mundo Português, em 1940, sendo esta uma réplica perene construída em 1960, homenagem aos protagonistas dos Descobrimentos – o Infante D. Henrique segue na proa desta representação de caravela, acompanhado de muitos outros.

O Padrão surge entre a Doca do Bom Sucesso e o Espelho de Água e a Doca de Belém. Todos estes à beira rio, porque do outro lado da linha do comboio estão outros dos mais emblemáticos monumentos da Lisboa de diversas épocas: o Centro Cultural de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos, mais aquela que é também uma verdadeira instituição, os pastéis de Belém. Por entre jardins, podíamos seguir pelo Palácio de Belém, sede da Presidência da República, e pelo novo Museu Nacional dos Coches, seguindo pela rua da Junqueira afora, ainda com muitos palacetes. Mas mantemo-nos junto ao rio e, assim, admiramos o pujante edifício da antiga Central Tejo e, ao seu lado, o novo ondulante edifício do Maat.

A Central Tejo, a central termoeléctrica que abasteceu de electricidade a cidade de Lisboa desde 1909, embora com várias fases de construção, até ao seu encerramento oficial em 1975, é parte da história de Lisboa. E é, ao mesmo tempo, um dos mais fantásticos exemplos de arquitectura industrial, um edifício em ferro e betão com o seu revestimento em tijolo vermelho a reforçar ainda mais o reconhecido poder da luz lisboeta. Em 1990 o edifício foi transformado em museu da electricidade, expondo lado a lado com a sua maquinaria original obras de arte contemporânea.

E desde 2016 tem a companhia de um novo edifício, projecto da arquitecta Amanda Levete, que resultou no Maat, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, com a sua deliciosa galeria oval, uma turbine hall à nossa medida, onde já pudemos apreciar interessantes instalações. A forma desta espécie de ovni, plantado na frente ribeirinha de Lisboa, pejada de grandes elementos arquitectónicos, é indubitavelmente um sucesso, fazendo já parte dela por direito próprio. A ideia subjacente a esta criação era a de permitir que os visitantes caminhassem sobre o edifício, nomeadamente sobre a sua cobertura em forma de arco, uma autêntica onda que se liga umbilicalmente ao rio, com ele mantendo uma relação física. Mais surpreendente, com este novo miradouro ganhámos uma nova vista para a Ajuda, com o seu Palácio em destaque, algo que antes só se percebia quando observada do rio.

A Ponte 25 de Abril está cada vez mais perto, até que passamos mesmo sob esta estrutura, mais um símbolo de Lisboa. Inaugurada em 1966, é uma das mais bonitas d maiores pontes suspensas do mundo e o seu tabuleiro com 2277 metros comprimento liga a capital a Almada. O barulho debaixo dela é intenso, e não tão memorável de ouvir como aquele que sentimos ao conduzir sobre a grelha metálica do tabuleiro rodoviário – sim, desde pequenas somos fãs e, sem medo, sempre insistíamos com o pai que seguisse por ela sem desvios a caminho das praias da Caparica.

Há mais duas docas para atravessar, a Doca de Santo Amaro e a Doca de Alcântara. Aqui fica um dos nossos museus preferidos da cidade, o Museu do Oriente, e um dos segredos mais bem guardados dela, os painéis de Almada Negreiros na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, sobre os quais tivemos oportunidade de escrever aqui.

Com uma vista de estaleiros e muitas estruturas portuárias, seguimos pelo Fun Track, um passeio que é ao mesmo tempo pista de patinagem, de bicicleta e outros modos de mobilidade mais radicais, também com mesas de ping pong, quadras de basquete e cafés e esplanadas.

Estamos para cá da Avenida 24 de Julho, na zona de Santos, onde estão os bares e discotecas mais famosos de Lisboa, e num pulo chegaremos ao Cais do Sodré. Temos vista para o Museu Nacional Arte Antiga, que desde os seus jardins é um belo miradouro da Lisboa ribeirinha, e para uma Lisboa antiga povoada de conventos e palácios – curioso ver daqui o longo edifício dos serviços do Ministério Educação enquadrado por um desses conventos.

Chegamos, finalmente, ao Cais do Sodré, onde a Avenida da Ribeira das Naus nos liga ao Terreiro do Paço, histórico centro administrativo da capital, à beira Tejo. Esta é uma Lisboa hiper movimentada e pejada de turistas, onde não é fácil caminhar sem encontrões. Valem, uma vez mais as vistas de rio, desta vez protegidas pelo Arco da Rua Augusta, entrada na baixa lisboeta, e sob a protecção da colina onde está o Castelo de São Jorge. E despedimo-nos desta aventura no último cais da jornada, o Cais das Colunas, porta de entrada em Lisboa e há séculos para muitos o primeiro contacto com a cidade.

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