Cabo Verde é um dos países da África Ocidental mais estáveis, tanto politicamente como economicamente, e na falta de recursos naturais, aí está o turismo, esse que descarrega paletes de portugueses nas ilhas do Sal e da Boavista. Na ilha de Santiago, onde está a capital do país, Praia, pelo contrário, não se veem resorts nem muitos turistas. Surpreendentemente para nós, os portugueses até não estarão em maioria e, confessamos, Santiago foi uma revelação, capaz de uma beleza rebelde escondida por entre a aridez.

A primeira ilha a ser descoberta e povoada, e a maior, Santiago é uma das 10 ilhas do arquipélago de Cabo Verde, localizado a 500 kms da costa ocidental de África. O nome Cabo Verde deve-se a um cabo de mesmo nome na costa do Senegal que está na sua direcção. Hoje não é tão verde assim, mas na época os portugueses terão vislumbrado uma ou outra árvore e para se localizarem deram-lhe o nome Cabo Verde, que acabou por permanecer. Santiago é parte do grupo do Sotavento, junto com as ilhas do Maio, Fogo e Brava, situando-se as ilhas mais planas a este e as mais acidentadas a ocidente – Santiago é das mais acidentadas. Descoberta em 1460 por exploradores ao serviço do Infante D. Henrique, foi-lhe dado o nome Santiago: escreveu Luís de Camões nos Lusíadas que “ àquela ilha aportámos que tomou / o nome do guerreiro Santiago / a terra onde o refresco doce achámos”. Não apenas esta ilha, todo o arquipélago estava localizado na encruzilhada entre a Europa e a América, uma posição geográfica de importância geo-estratégica nada irrelevante. As ilhas estavam desabitadas e o povoamento foi feito por colonos vindos do Algarve e da Madeira e, depois, do norte de Portugal e por alguns estrangeiros. E, também, dada a escassez de colonos europeus, maioritariamente por escravos vindos de toda a África, sobretudo da Guiné, Senegal, Gâmbia, jalofos, sereres, mandingas e bijagós. Era essencialmente um local de passagem de escravos em rota para as Américas, mas alguns acabaram por ficar. Daqui resultou uma das especificidades e elemento fundamental de Cabo Verde, a mestiçagem decorrente do cruzamento das diversas gentes, com diferentes identidades e línguas, que foram habitando as ilhas, dando origem a um povo com características próprias e uma cultura diferenciada. O desenraizamento levou à sôdade, o dilema entre querer ficar e ter de partir, uma constante na vida de todo o emigrante cabo verdiano, que não consegue despegar-se da terra que o viu nascer e vive na esperança de um dia poder voltar. E, ao mesmo tempo, à morabeza, a hospitalidade com que somos recebidos quando nas ilhas. Estes sentimentos colectivos da primeira cultura euro africana do Atlântico são centrais e bem expressos na música, seja na morna, mais melancólica, seja na coladêra e funaná, mais alegres e sensuais. E o crioulo, por sua vez, a forma de expressão oral da população no arquipélago e sua língua materna, usado por todos os extratos sociais, é mais uma manifestação da mistura dos europeus e dos africanos.


A Ribeira Grande foi o local escolhido para a instalação da primeira cidade portuguesa nos trópicos. Entreposto comercial (sobretudo comércio de escravos para a América espanhola), dona de uma posição remota mas estratégica, foi a primeira sociedade escravocrata do Atlântico, antes mesmo do Brasil, e também aquela que mais cedo faliu. Hoje é conhecida como Cidade Velha e está situada a poucos quilómetros de distância da Praia, que a substituiu como cidade principal no arquipélago. Cidade-porto muito frequentada, a Ribeira Grande teve o seu apogeu no século 16 e foi abandonada em 1762 devido aos sucessivos ataques de piratas e corsários.








Património distinguido pela Unesco (o único no arquipélago) e considerada uma das 7 Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, restam alguns testemunhos desse tempo na zona histórica da Cidade Velha, como o Pelourinho mesmo à beira mar (construído entre 1512 e 1520), as ruínas da antiga Igreja de Nossa Senhora da Conceição (descoberta há poucos anos e que talvez possa ter sido a primeira igreja na região), o Convento de São Francisco e as ruínas da Sé Catedral (ambos preservam parte do seu ambiente, agora adaptados a espaços de eventos culturais) e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (arquitectura manuelina acompanhada de decoração azulejar). E, claro, a Rua da Banana, a mais antiga rua construída pelos portugueses nos trópicos, empedrada e com casinhas pitorescas construídas em pedra e cal e algumas delas com telhado de colmo.


O espaço territorial onde está inserida a Ribeira Grande / Cidade Velha é muito curioso: o belo mar do Atlântico de um lado e um surpreendente vale que corre para ele. Este vale, donde se avistam os mais imponentes picos do interior da ilha (destaque para o Monte Tchota, na Serra do Pico de Antónia), é uma linha verde num território castanho e nele foram levadas a cabo diversas experiências a nível do coberto vegetal e agrícolas nos tempos áureos da cidade, de tal forma que ficou conhecido como um laboratório de experimentação de plantas e animais que foram aqui introduzidos para aclimatação e, posteriormente, reintroduzidos no triângulo continental (Europa, África e América). Exemplos disso são o coqueiro, mangueira, bananeira, figueira, cana de açúcar e mandioca.




Vale a pena caminhar desde Calabaceira (peça ao motorista da Hiace, o transporte público local, para o deixar por lá), povoação sobre o vale, até à Cidade Velha sempre pelo leito da ribeira hoje seca e perceber as especificidades da sua vegetação, um misto de árvores de grande porte de tipo subtropical e plantações agrícolas. A água é escassa, problema endémico no arquipélago, mas ainda se veem diversas pessoas a trabalhar as suas plantações. A paisagem, essa, é soberba, um corredor de natureza exuberante encaixado entre duas enormes paredes naturais, onde encontramos um portentoso e inesquecível baobá. Há por aqui, ainda, instalações de grogue e mel, mas acabámos por não as perceber. À chegada à Cidade Velha vai-se descobrindo a Fortaleza de São Filipe no topo de uma dessas “paredes”.


A Fortaleza de São Filipe, também conhecida por Cidadela, foi mandada construir por D. Filipe I, em 1587, na tentativa de repelir os ataques corsários. Nela foi utilizada pedra vinda de Portugal e da ilha do Maio e está implantada 120 metros acima do mar, tendo estado em tempos acompanhada de mais 6 pequenos fortes em pontos estratégicos, todos eles parte do sistema defensivo da Cidade Velha. A vista desde a fortaleza é soberba, não só para o mar como também para o vale e interior da ilha.

A cidade da Praia é a maior do arquipélago e começou por se instalar no que hoje é o seu centro histórico, o Plateau, uma designação certeira que revela a sua disposição geográfica, um promontório sobre o oceano. Aqui, neste lugar elevado os seus habitantes originais não estavam já tão à mercê dos invasores nem junto a uma ribeira, exposta a doenças como a malária que tanto arrasou os europeus. E puderam desenvolver um novo urbanismo que, ao contrário do anterior, não estava obrigado a adaptar-se à irregularidade do terreno.



O centro histórico é agradável, cuidado e limpo – uma surpresa que vimos repetida por quase todas as povoações das ilhas que visitámos. Foi um prazer caminhar ao longo da pedonal Rua 5 de Julho, antes Rua Direita do Pelourinho, com algumas casas senhoriais e, sobretudo, um ambiente tranquilo que serve, ainda assim, a uma boa introdução do viajante a esta África afastada do bulício das grandes cidades. Por aqui fica o mercado municipal, a Kasa Katxupa (comida tradicional cabo-verdiana), o 5tal da Música (jantar com música ao vivo), a gelataria Nhamii Ice Dreams (a Praia a modas e preços europeus) e o Museu Etnográfico.

O Museu Etnográfico está no último quarteirão desta rua, instalado numa casa senhorial que segue o modelo típico das colónias portuguesas de finais do século 18 e princípios do 19. Na visita à sua exposição viajamos no tempo pelas vivências do quotidiano cabo-verdiano, que ainda é eminentemente rural e agrícola. Nesta mostra da sua criatividade na adaptação ao meio e às matérias primas que tinham à sua disposição, viajamos pelo seu artesanato (panaria – panu di téra, a “roupa de Santiago” -, cestaria e olaria), medicina, agricultura, pecuária, pesca, culinária (fruto do que a terra dá – cereais, milho e feijão e carne, leite e peixe) e actividades lúdicas (música e brinquedos tradicionais).


Também o Palácio da Cultura Ildo Lobo é digno de visita. Igualmente num palacete típico do século 19, destaca-se dos demais pela sua altura composta por 3 pisos. Ildo Lobo integrou o icónico grupo dos Tubarões e depois seguiu carreira a solo, tendo falecido novo, com apenas 50 anos. Para além da alegre e mui conhecida “Djonsinho Cabral”, da época dos Tubarões, a belíssima “Nós Morna” passou a fazer parte das mais tocadas da nossa playlist. Mas não só à música se dedica este espaço cultural, sendo aqui possível ainda conhecer alguma da arte contemporânea local. O seu terraço oferece-nos uma vista da expansão da cidade para lá do Plateau, bem como dos picos interiores.


E, do lado contrário, temos a Praça Alexandre Albuquerque, um jardim com coreto e muita vegetação que dá também para o edifício da Câmara e da Igreja. Lugar de reunião dos praienses, na época pré natalícia, quando o visitámos, tinha uma curiosa decoração que incluía uns bonecos de neve. Este o Natal dos trópicos.


A Casa Amílcar Cabral fica perto. O herói pan-africano, líder do movimento da luta antifascista nas colónias e do movimento pela independência dos povos da Guiné e Cabo Verde, nasceu em Bafatá, na Guiné Bissau, mas mudou-se em criança para Cabo Verde, tendo estudado agronomia em Lisboa. A convivência com estudantes de outras colónias trouxe-lhe uma consciencialização e mobilização para a situação dos africanos, militando na Casa dos Estudantes do Império, editando a revista Mensagem e criando a primeira organização política anti-colonialista dos estudantes africanos em Portugal, uma intervenção que para além de política era igualmente cultural e social, com muita poesia à mistura. Concluído o curso, voltou para a Guiné Bissau e ao trabalhar no recenseamento agrícola acabou por obter um conhecimento aprofundado da realidade social da Guiné e do sistema de exploração colonial. Fundou o Paigc e lutou pela independência dos povos da Guiné e Cabo Verde, desenvolvendo uma ação diplomática de prestígio. Amílcar Cabral acabou por morrer sem testemunhar o sucesso da sua luta, mas a sua imagem com a súmbia é até aos dias de hoje icónica.






Pelas ruas da cidade, há que estar atento ao movimento, às cores e aos vários detalhes de arte urbana, como os frequentes stencils de Cesária Évora. Na Achada Grande, na encosta acima do Plateau, estão muitos exemplos desta arte urbana, resultado de um projecto de revitalização do bairro que foi palco de um festival de arte pública que levou até lá diversos artistas desse género. Vhils foi um deles, estando representado, precisamente, pela tal imagem de Amílcar Cabral. E o bairro tem ainda uma enorme vista para o Plateau e arredores, com o porto e a baía mesmo diante nós.



A Praia tem tido um grande desenvolvimento nos últimos anos e os bairros de Palmarejo e da Terra Branca, a alguma distância do centro histórico, são outras centralidades da capital. Neste último, encontramos novo projecto de arte pública, materializado na Rua d’Arte, criada pelo artista Tutu Sousa, com fachadas pintadas com motivos da cultura e natureza de Cabo Verde.


Em Palmarejo de Cima fica a livraria e café Nho Eugénio, um óptimo lugar para passar os olhos pela cena editorial local. Em Palmarejo de Baixo fica a praia de Kebra Kanela, a melhor praia urbana da cidade. E pelos restaurantes e bares de Palmarejo não é difícil assistir a música ao vivo. Livros, música e um mergulho de água quente, que mais pedir de uma cidade?