Cabo Verde – Ilha de Santiago (parte 2)

No texto anterior havíamos escrito que a ilha de Santiago foi para nós uma revelação, capaz de uma beleza rebelde escondida por entre a aridez. E tamanha beleza deve-a, sobretudo, ao seu interior montanhoso carregado de vales estreitos e verdejantes. Em alguns momentos dá ares da ilha da Madeira, sua companheira de “ilhas afortunadas” da Macaronésia, e agora lamentamos não lhe termos dedicado uns dias de caminhadas.

A aterragem no aeroporto internacional da Praia logo nos dá uma imagem da montanha mais alta da ilha, o Pico Antónia com a sua forma inconfundível. Viríamos depois, nas voltas pela ilha, a perceber que a sua agulha mais pronunciada a apontar ao céu não se revelaria sempre da mesma forma quando apreciada de diferentes ângulos, mas aquele postal, o mesmo que se testemunha da Praia, já estava bem definido nas nossas mentes. No mais, é a cor castanha da terra e das montanhas que mais marca a paisagem.

A estrada que nos leva da Praia a São Domingos vai criando expectativas, deixando ver um ou outro pedaço de verde a cobrir os ditos montes. São Domingos é a terra onde se prova o típico pastel de milho com recheio de atum, uma delícia que se recolhe numa banca à esquerda da estrada no período da manhã e numa banca à direita da estrada no período da tarde. Junto a eles, a cozinheira de serviço preparava a ainda mais típica cachupa. E São Domingos é a terra por onde em 1832 passou Darwin a bordo do Beagle para recolha de informações acerca da flora e fauna locais, pesquisa que efectuou em muitos outros locais e resultaria na sua obra “Origem das Espécies”.

A estrada que segue de São Domingos até São Jorge dos Órgãos é de uma beleza incrível, uma daquelas onde dá vontade de parar a cada momento para imortalizar a paisagem em foto ou tão somente na memória. É aqui, no interior de Santiago, que o verde se revela e que a aridez que mais caracteriza a ilha é posta em causa. Os vales que se abrem por entre os picos montanhosos são verdejantes e profundos. No miradouro de Rui Vaz, diante vistas directas para o Monte João Teves e Monte Tchota, sabemos que somos felizes.

Mais adiante, em São Jorge dos Órgãos, pequena povoação com um jardim botânico e uma igreja com assentos ao ar livre, temos nova panorâmica para os picos anteriores, mas desta vez também para o Pico Antónia. Almoçámos precipitadamente uma comida de conforto por aqui, sem esperar que o espaço Paduja, típico pela sua carne de porco, surgiria pouco depois na estrada que nos transporta até Assomada.

Depois de passarmos por mais um pico de formação geológica curiosa, o Pico Manhaga (junto a Achada Igreja), o miradouro que antecede a entrada em Assomada, a segunda cidade da ilha, oferece-nos mais uma bela vista directa para o Pico Antónia, o mais alto de Santiago, com 1394 metros de altitude.

Assomada tem um centro histórico compacto onde encontramos alguns exemplos de arquitectura portuguesa. Desde logo, o edifício do Mercado, construído em 1931. Mais forte às 4as feiras e sábados, já lá vão os seus dias movimentados e coloridos e fora destes dias, como aconteceu na nossa visita, não se passa muito. A praça principal alberga a câmara municipal, a igreja (construída entre 1947 e 1949) e o Centro Cultural Norberto Tavares, instalado num edifício colonial do princípio do século 20 com varanda tipo alpendre coberto, beirais e portas grandes, exemplo típico de casa senhorial portuguesa. Há ainda por perto o cine-teatro e a pitoresca igreja do Nazareno, fazendo deste um interessante conjunto arquitectónico.

Assomada é a capital do concelho de Santa Catarina, o maior concelho da ilha, a apenas 44 kms da Praia, percorridos numa estrada em boas condições. É considerada a cidade mais rural do arquipélago e está implantada num planalto a 500 metros altitude, daí que as temperaturas sejam aqui ligeiramente mais baixas e tenha maiores níveis de precipitação. Mas não foi apenas o clima a servir de atracção ao seu povoamento: a orografia deste território interior de difícil acesso oferecia mais segurança face aos ataques dos piratas e dos corsários do que o litoral. Foi para este interior que alguns escravos fugiram da Ribeira Grande (hoje Cidade Velha), insurgindo-se contra os seus senhores, assim tendo ficado denominados como badius (de vadio), acabando legitimados pela abolição da escravatura em 1879. Já livres e protegidos pelas montanhas, passaram a ser detentores de parcelas de terras e assim deram origem a um dos primeiros espaços de ocupação rural da ilha, criando uma identidade cultural muito própria e tornando-se símbolo da resistência. O termo depreciativo badiu pelo qual ficaram conhecidos acaba hoje por ser motivo de orgulho e Dino d’Santiago, o músico português descendente de santacatarinenses, adoptou-o mesmo como nome de um dos seus álbuns. Mas não apenas à custa de fugas os escravos foram garantindo a sua liberdade, houve também a concessão de alforrias e a existência de escravinhos (filhos ou parentes de senhores). Isso, aliado ao surto migratório causado pela pesca da baleia para os Estados Unidos da América e a proibição pelos tratados internacionais de entrada de novos escravos nas ilhas, levou a que os proprietários rurais, devido à falta de escravos e à presença de trabalhadores livres, se vissem forçados a dividir as suas terras em pequenas parcelas e arrendá-las aos escravos libertos. Progressivamente, a sociedade esclavagista composta por dois grupos, os senhores (europeus) e os escravos (a maioria), foi-se alterando, ficando menos estratificada, e surgindo um grupo intermédio entre o senhor e o escravo, uma elite de morgados ligados à exploração da terra, trabalhada pelos antigos escravos agora libertos. A música Djonsinho Cabral, do mítico grupo Os Tubarões (também interpretada por Dino d’ Santiago), relata as dificuldades dos trabalhadores rurais face à seca e o receio de a falta de aproveitamento levar à perda da terra – “Semeei o meu milho, semeei o meu feijão / Pus mongolão, pus sapatinha / As chuvas não vieram, nada deu / Já não temos palha para os animais comerem / Para o Senhor Morgado não tomar a nossa terra / Eu disse à mamã, eu vendo o boi para pagar / Oi mamã, oi mamã, oi mamã”. Esta música é um exemplo do género funaná, que teve origem, precisamente, no meio rural da ilha de Santiago, onde era praticado pelos camponeses do interior e manteve-se desconhecido durante o período colonial. Só após a independência, em 1975, este género musical de ritmo acelerado e frenético passou a ser assumido por todos, sendo hoje um dos muitos, a par da morna e da coladeira, que suscitam a paixão pela cena musical cabo-verdiana.

Rumo ao norte da ilha, é agora o momento de atravessarmos a Serra da Malagueta, um maciço montanhoso cujo ponto mais alto tem 1063 metros e que é um parque natural que abrange o território de três concelhos: Santa Catarina, Tarrafal e São Miguel. Também aqui, tivemos pena de não ter dedicado tempo para explorar este lugar composto de picos e encostas que cavam vales e desfiladeiros profundos e dono de uma flora diversa. O início da subida para a Serra dá-nos, porém, uma daquelas panorâmicas que valem toda a viagem. O tempo limpo ajudou e, assim, pudemos testemunhar as várias camadas de montes quase sobrepostos de que é feita a paisagem desta parte da ilha de Santiago, devidamente enquadrada pelo topo do Pico do Fogo, lá bem longe, com o Atlântico a dividir as duas ilhas do arquipélago. Uma vista enorme.

Ultrapassada a Serra da Malagueta, na descida para o Tarrafal, foi a vez de nos dedicarmos a apreciar a Barragem da Ribeira Principal e seu verdejante vale desde o alto – há percursos pedestres desde a Serra que nos levam até lá, experiência que esperamos por em marcha numa próxima visita.

Chão Bom é o lugar onde foi instalado o infame Campo de Concentração do Tarrafal, agora transformado em Museu. Conhecido como “o campo da morte lenta”, foi criado pelo regime do Estado Novo, liderado por Salazar, como solução para silenciar os adversários políticos, tendo ficado gravado no imaginário de portugueses, angolanos, guineenses e cabo-verdianos. Recebeu os primeiros presos no dia 29 outubro de 1936 e numa primeira fase, que durou até 1956, serviu para receber antifascistas portugueses, como Bento Gonçalves, líder do Partido Comunista, que aqui morreu – logo à entrada, uma das salas tem os nomes de alguns dos que por aqui passaram inscritos numa parede. Em 1962, já depois do fim da II Grande Guerra Mundial, que acentuou o desejo por uma África livre do colonialismo europeu e deu força dos movimentos independentistas nas colónias portuguesas, reabriu com o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom, agora destinado ao encarceramento de anticolonialistas de Angola, Guiné Bissau e Cabo Verde. Encerrou uma semana após o 25 de Abril de 1974. E porquê a escolha do Tarrafal? Porque para além da prisão natural que a própria ilha é, o isolamento do Chão Bom e o seu ambiente árido e desolador ajudavam a provocar nos prisioneiros o sentimento de desânimo e desencorajamento que, aliados à prisão física, amuralhada e sujeita a regras disciplinadoras – ficou famosa a infame frigideira, cela onde literalmente os presos eram deixados a fritar pelo calor – dificultavam a tentativa de evasão. Naquela época, sem população ao redor e sem vias de comunicação, a vigilância dos prisioneiros estava ainda mais facilitada. Neste campo de concentração de trabalho forçado foram perpetrados mau tratos, humilhações e torturas e a alimentação era deficitária. Idem para a assistência médico sanitária, com apenas uma enfermaria e nenhum médico permanente no Tarrafal; um dos que passou por lá, fez questão de afirmar “não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbitos”, lê-se numa das paredes de um dos edifícios. O mais impressionante na visita a estes espaços é constatar como a vida corre com uma normalidade tranquila ao redor, convivendo lado a lado com a história sem dor.

A cidade do Tarrafal fica a pouca distância de Chão Bom. A Baía do Tarrafal é um dos lugares mais bonitos da ilha, uma espécie de redenção face ao vivido momentos antes. A paisagem é árida, mas bela. E, sobretudo ao final do dia, as cores tomam uma intensidade ainda mais especial. Ainda, é um dos mais lugares mais animados e turísticos e quase todos aqueles que visitam a ilha de Santiago têm o Tarrafal como destino certo.

O centro histórico é pequeno, com muitas opções de restauração nas imediações da praça principal, onde fica a igreja da povoação. E também ele não escapou à revitalização das fachadas, com muitas delas pintadas com motivos locais.

Quando no Tarrafal, não se pode perder o por do sol com vista para a ilha do Fogo. Felizmente, o dia de céu claro permitiu um final de dia incrível: os surfistas deslizavam nas ondas ignorando por completo o vulcão, enquanto nós apreciávamos os dois espectáculos numa só mirada.

No dia seguinte, de volta à Praia, retornámos pela estrada junto ao mar, na costa leste da ilha. O tempo havia mudado de uma forma tal que não só o céu não estava já limpo como a ilha do Fogo tinha desaparecido do horizonte. Roubaram a ilha? Ainda assim, a passagem por Porto Formoso, na Achada Tenda, fez soar toda a atenção. Que lugar! Mais uma baía, desta vez estreita, com uns barcos estacionados no curto areal e uma espécie de laguna acompanhada de vegetação exuberante. Totalmente diferente da aridez anterior e mais próximo das paisagens de São Tomé.

A Calheta de São Miguel é uma das maiores povoações costeiras desta banda e tem a particularidade de ter um género de palacete acastelado à beira da sua praia mais central, nada bonito, por sinal. Antes preferimos cenários mais puros como aquele que nos é oferecido por nova praia / baía imediatamente antes de Achada Laje.

Para finalizar esta jornada, uma última paragem em Pedra Badejo, com mais uma bela vista, agora desde o terraço do seu restaurante Falucho.

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