A ilha do Fogo (Djarfogo), no arquipélago de Cabo Verde, é de todas a de formação geológica mais nova. Tem o único vulcão activo no arquipélago e a última erupção é recente, aconteceu em 2014. Vinte anos antes, em 1994, assisti ao filme Casa de Lava, de Pedro Costa, e as suas imagens e história não mais saíram da memória. Durante muito tempo, foi a ilha de Cabo Verde que desejava visitar, objectivo agora cumprido.

A primeira imagem do Fogo aconteceu, já o relatámos, com a vista desde o Tarrafal, na ilha de Santiago. À distância, custou a perceber o que tínhamos diante nós, um corpo suspenso em algo que não parecia o oceano. E não era, era antes uma nuvem sobre o mar, que deixava ver a parte superior do vulcão do Pico do Fogo. Uma imagem poderosa, e dentro de dias iríamos tentar alcançar o seu topo. Quando pisámos a ilha o céu estava limpo, mas como viajamos do lado errado do avião não conseguimos admirar desde a janela o seu semblante mais de perto. Ficaria para o dia seguinte. Antes, porém, tínhamos São Filipe para visitar.

São Filipe é a capital da ilha do Fogo, descoberta a 1 de Maio de 1460, junto com as ilhas de Santiago e Brava. O primeiro povoamento aconteceu no final do século 15, mas o centro histórico da cidade, tal como o vemos hoje, é de finais do século 19 e inícios do 20. É considerada uma das povoações cabo-verdianas mais bem preservadas na sua arquitectura colonial. E, efectivamente, há muitos sobrados, edifícios de dois andares com varandas de madeira que eram propriedade dos senhores, estando o segundo andar destinado a habitação e o piso térreo a armazém. A Praça 4 de Setembro, seu coração, está rodeada de sobrados e tem ao centro um coreto, com muita e diversa cor nos seus edifícios. Perto está a muito azul Igreja Matriz, consagrada a Nossa Senhora da Conceição (nem de propósito, visitámo-la na véspera do seu dia e decorriam os preparativos para a comemoração do feriado local, tal como no nosso país).




São várias as pequenas e acolhedoras praças do centro histórico de São Filipe e quase todas elas têm vistas directas para a ilha da Brava, mesmo diante da capital da ilha do Fogo, separadas por um pedaço de Atlântico. A que está junto ao Farolim de São Pedro / Fortim Carlota, construído em 1667 para defesa dos piratas (infelizmente votado ao abandono e em decadência), está imediatamente em cima da falésia sobre a Praia da Fonte da Vila, a maior de São Filipe, de areia preta. O desnível até à areia é grande e, quando observada a vila desde a beira mar, o que vemos é tão somente uma imensa parede rochosa, não suspeitando que para lá dela há vida urbana. Pouco movimentada, é certo, e se não há lojas nem museus a visitar (encontrámos encerrados o Djar Fogo, artesanato e torrefação artesanal de café, e a Casa da Memória, museu municipal), então o melhor a fazer é, de volta à praça, sentar num banco de jardim a degustar uns deliciosos bolinhos da vizinha Padaria Maria Augusta.



De qualquer forma, o grande prazer de São Filipe é mesmo deambular pelas suas ruas, praças e jardins. Espreitamos o mercado municipal, passamos por mais uns sobrados e chegamos ao miradouro do Padrão Francisco Higino Craveiro Lopes, referência à primeira visita de um Presidente Português à ilha do Fogo, em 1955, e sentamos novamente num banco de jardim, desta vez na vizinha Praça do Presídio, por referência à prisão que aqui existiu. Nas costas está a Casa das Bandeiras, mais um bonito edifício em estilo colonial que já foi alfândega e finanças, e diante nós a ilha da Brava por inteiro e ilhéus por companhia, pronta para um papel de protagonista num por do sol de cores variadas e irreais.



No dia seguinte levantámos cedo, antes do nascer do sol, preparando a subida ao Pico do Fogo. Desde São Filipe, é pouco mais de uma hora de caminho de carro na estrada no breu e só à chegada ao Parque Natural do Fogo tivemos o prazer de confirmar que o dia haveria de estar bonito. A entrada na caldeira do vulcão do Fogo é estrondosa, uma paisagem sem igual. De imediato, abre-se um enorme planalto de terra negra com 20 km de perímetro, 9 km de comprimento e 2 kms de largura, delimitado por uma escarpa – a bordeira – que vai de 400 metros a 1000 metros de altura desde o seu fundo plano. A caldeira toma a forma de hemiciclo aberto a leste e é conhecida como “Chã das Caldeiras”.



De um dos lados ergue-se, majestático, o Pico do Fogo, a montanha mais alta de Cabo Verde, com 2829 metros de altitude. Subir até ele demora entre 3 a 5 horas, dependendo do andamento de cada um, mas é certo que todos os que se propõem a esta experiência terão à sua espera uma ascensão vertical pronunciada: em 3 kms sobe-se 1 kms, num percurso cansativo e com alguma dificuldade técnica que deverá ser efectuado com a companhia de um guia. Durante a subida, o cume está diante de nós, parece relativamente perto, mas nem por isso. Não resistimos a ir espreitando o que vamos deixando para trás e em baixo, a magnífica caldeira, com a imagem do Pico projectada na parede da bordeira. Cenário largo, vamos deixando as casinhas nas costas, bem como os vários cones vulcânicos e as colunas de lavas. De um dos lados da caldeira, na sua parte achatada, era suposto ver-se o mar, mas as nuvens tomam o seu lugar, muitos metros acima do mar – Chã das Caldeiras está a cerca de 1700 metros de altitude. Felizmente, a maior altitude não há nuvens. Chegadas (quase) ao cume, é certo que a paisagem corta as palavras: estamos diante a imensidão da cratera, num ponto absolutamente elevado sobre ela, e só fazemos é admirá-la, com tempo. As casinhas são agora pequenos pontos, os cones vulcânicos multiplicam-se e há lava sobre lava.



E descobrimos, então, a cratera principal do vulcão do Pico do Fogo, também conhecido por Pico Grande. Tem uma profundidade de 180 metros e 500 metros de diâmetro e no seu interior veem-se camadas de escórias, fumarolas fumegantes e matérias de cores diferentes, sobretudo amarelo e creme. Subimos mais uns metros, atravessando uma via ferrata não aconselhável a quem sobre de vertigens, e então sim, já no cume percebemos que temos a ilha da Brava de um lado e a ilha de Santiago do outro – diz que nos dias totalmente limpos podem avistar-se todas as ilhas do arquipélago.






Daqui, podemos descer pelo mesmo caminho – o que fizemos – ou tomar um percurso um pouco mais longo que passa primeiro pelo Pico Pequeno. Em qualquer das hipótese, parte da descida é muito divertida: sem rochas, seguimos a correr num plano inclinado pela areia negra, enchendo-nos de pó como crianças.



Dito isto, o esforço da caminhada ascendente compensa largamente pela panorâmica única que testemunharemos. Ainda assim, mesmo que não seja possível a subida ao Pico do Fogo, a visita a Chã das Caldeiras é imperdível. Desde logo, pela possibilidade de se estar junto a um vulcão activo. A ilha do Fogo corresponde à parte emergente de uma grande montanha vulcânica, ainda em evolução, conhecida pelo Pico do Fogo, o vulcão central. Este vulcão foi formado ao longo de milénios, o cone principal foi crescendo e conquistando altura à custa de sucessivas acumulações de materiais vulcânicos (lavas e piroclastos), até que, há cerca de 100 mil anos, a montanha terá perdido equilíbrio e cerca de 300 kms cúbicos colapsaram e deslizaram para o mar, na vertente oriental da ilha, e deram origem a um cone com um desnível de cerca de mil metros e a uma impressionante caldeira de abatimento. A melhor imagem deste fenómeno é a de uma montanha a cair, verticalmente, para o mar. Um mergulho épico. O vulcão teve actividade quase contínua desde o descobrimento da ilha pelos portugueses até meados do século 18, mas a partir daí sofreu alguma acalmia, com erupções apenas na sua base ou fundo da caldeira. As últimas três erupção ocorreram em 1951, 1995 e 2014, todas elas na base do cone do Pico do Fogo (Pico Grande), e com elas surgiram novos cones de cinzas e fluxos de lava, sem que se tivesse registado perda de vidas humanas, ainda que tenham forçado à evacuação da população da Caldeira. A erupção de 1951, quando o território ainda era português, foi acompanhada pelo geógrafo Orlando Ribeiro, que a estudou, documentou e fotografou. Em sua homenagem, um dos cones do vulcão leva o nome Monte Orlando. A erupção de 1995, também numa área exterior ao vulcão, levou à destruição pela lava da povoação de Boca Fonte e com ela formou uma nova cratera, o Pico Pequeno. E foi neste Pico Pequeno, com 2023 metros de altitude, que aconteceu a última erupção, em 2014, a qual engoliu as aldeias da Portela e Bangaeira.





Por outro lado, a visita à caldeira é obrigatória pelos aspectos culturais que o lugar comporta, não se limitando a ser mera paisagem. Na verdade, Chã das Caldeiras é um lugar fabuloso pela insistência e coragem dos seus habitantes em viver num lugar inóspito e até perigoso e nele conseguirem extrair o melhor que a natureza tem para nos dar, a nós humanos. Um milagre. O povoamento de Chã das Caldeiras terá tido início há cerca de um século e o largo perímetro da caldeira já acolheu diversas aldeias. As acima citadas foram engolidas pela lava vinda do vulcão próximo, sem mortos mas com muitos deslocados e desalojados. Que voltaram à cratera assim que puderam, reconstruindo as suas vidas e a da sua comunidade. Com efeito, o lugar é de um negrume inóspito, mas as possibilidades que esta terra de rocha e pó pretos dá são surpreendentemente muitas e variadas, num desafio à sobrevivência humana. Nela são plantados – e crescem e florescem – vinhas, plantas, flores, feijão e maçãs, solos agrícolas que a uma primeira vista pareciam nada ter a dar. Tudo isto resulta numa paisagem incrivelmente diversa, onde o verde vai brotando amiúde na imensidão negra. O vinho aqui produzido, o Chã, é essencialmente branco, e todas as famílias têm uma pequena vinha plantada na lava recente, daí extraindo um pequeno rendimento. As habitações, muitas delas erguidas na lava, e algumas nela escondida, são simples mas autênticas, à imagem da vida dura que os seus proprietário teimam em levar nesta terra dentro da caldeira do vulcão do Fogo, que é a sua (a este propósito, leia-se o poema “A Sina da Mulher-Vulcão” que Viriato Gonçalves escreveu, por ocasião da erupção de 2014, em solidariedade com a sua gente).



A ilha não é das mais pequenas do arquipélago, mas em poucas horas é possível dar a volta a ela. Uma estrada – única – circunda a ilha e para além de São Filipe e de Chã das Caldeiras deveremos seguir até Cova Figueira, passando por diversos locais com lava solidificada de diferentes erupções, até parar obrigatoriamente no Miradouro do Espigão, na vertente oriental da ilha. Aqui, mesmo debaixo do Pico do Fogo, a paisagem é assombrosa, eleita a mais bonita de toda a jornada. A montanha vem por ali abaixo a pique, quase 3000 metros até ao mar, com umas pitadas de verde a desafiar a destruição deixada pela lava.

São vários os exemplos de topónimos que já conhecemos das ilhas açoreanas, como Achada, Queimada, Mosteiros, Fajãzinha e até Corvo. Não admira, uma vez que o povoamento das ilhas do arquipélago, incluindo o Fogo, foi feito por madeirenses e açorianos e só depois, dado o insucesso, vieram os africanos.






A povoação de Mosteiros tem ao lado a de Fajãzinha, um pedaço de terra plana à beira mar com a falésia recta mesmo nas costas, a lembrar, precisamente as imagens das nossas ilhas, também parte da Macaronésia. Mas Mosteiros tem um especial interesse pelo lugar de Pai António, uma luxuriante zona de floresta com plantações de banana, coqueiro, feijão, milho, mandioca, amendoim / mancara, tamarindo, papaia e até café. Quem diria que perto há muita terra morta, levada pela lava. Por tudo isto, a ilha do Fogo é a nossa preferida em Cabo Verde, capaz de paisagens únicas e de cortar o fôlego, mas com muita vida lado a lado com a destruição mais absoluta.






Nos Mosteiros, a segunda maior povoação da ilha, junto ao mar, distraímo-nos a ver os botes chegar com o peixe fresco e visitámos o pequeno núcleo museológico dedicado ao café. Não sendo apreciadoras de café, diz que o resultado desta produção local e artesanal é muito aromática. A introdução da espécie coffea arábica na ilha do Fogo deu-se no século 18, aquando da instalação do morgadio de Monte Queimado, no concelho dos Mosteiros, pelo seu primeiro proprietário, Pedro Fidalgo de Andrade (o morgadio dura há seis gerações e mantém-se numa propriedade indivisa por mais de 80 co-herdeiros). Aqui, nas encostas férteis no noroeste da ilha, o café cresce de forma selvagem a uma altitude entre os 350 e os 1300 metros de altitude, cultivado sem recurso a maquinaria, cortesia de um microclima especial. O Café do Fogo é 100% biológico e apesar de produzido em pequena quantidade tornou-se famoso e ganhou diversos prémios, incluindo internacionais, sendo que em 1934 foi medalha de ouro da Exposição Colonial no Porto, considerado o melhor café do império português.



E, por fim, uma última paragem para um mergulho na Ponta da Salina, quase a chegar a São Filipe. Este encantador porto piscatório é a derradeira surpresa que a ilha do Fogo nos tem para oferecer, umas piscinas naturais de areia negra e protegidas pelas rochas. Tem diversas formações rochosas que constituem caminhos e até uma ponte que bordejam o mar, mas ao contrário do que possa parecer não são obra humana; são antes o resultado da acção conjunta durante milénios da lava, que escorreu para o mar, e do vento e da água, formando as rochas e assim as dispondo. Tudo isto com num cenário ora de mar ora de montanha. Que mais pedir?