Na sequência do anterior post, onde se apresenta a personagem Corto Maltese, o herói sonhador criado pelo desenhador e roteirista Hugo Pratt, iremos agora percorrer os seus livros.
As aventuras de Corto Maltese foram situadas pelo seu autor no início do século XX. Porém, os livros de Hugo Pratt não têm uma ordem cronológica. No primeiro livro, “A Balada do Mar Salgado”, editado em 1967, era 1913-1915 e Corto andava feito pirata nas Caraíbas, estava a I Grande Guerra Mundial a começar. Antes disso, no entanto, já tinha andado pela Manchúria por altura da Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, onde conheceu o seu amigo-inimigo Rasputine e o seu amigo-escritor Jack London – assim nos é mostrado em “A Juventude”.

Voltando ao “A Balada do Mar Salgado”, aqui é apresentado Corto aos seus leitores pela primeira vez. A imagem do marinheiro pirata surge amarrado a uma jangada à deriva no mar, como se estivesse na cruz. Resgatado por Rasputine, há de lutar com um polvo, fugir de um tubarão e muito mais. A uma pergunta de Pandora, uma das mulheres de Corto, se acha que a sorte grande lhe vai sorrir a vida toda, responde altaneiro: “Claro, minha cara… quando era pequeno, apercebi-me de que não tinha linha da sorte. Então, peguei na navalha do meu pai e zás! Fiz uma como queria”. Pois é, a sorte é ele quem a faz.
Os dois livros seguintes – “Sob o Signo de Capricórnio” e “Sempre um pouco mais longe” – possuem diversos episódios (em Portugal foram também editados os volumes “Sob a Bandeira dos Piratas”, “Longínquas Ilhas do Vento” e “Lagoa dos Mistérios” que estavam originalmente integrados naqueles outros dois livros). Corto vagueia pelo Suriname, Guiana Francesa, Bahia, Sertão, Caraíbas, Peru.

“Sob o Signo de Capricórnio” é um livro cheio cheio de magia. Magia em todos os sentidos, incluindo aquele que envolve feiticeiros, telepatia, civilizações perdidas e idas até ao Sertão brasileiro com descida pelo rio São Francisco, onde o marinheiro se encontra com cangaceiros. Em “Sempre um pouco mais longe” Corto permanece na América do Sul, iniciando em Maracaibo a sua expedição em busca das ruínas de uma cidade inca ou pré-inca na Amazónia Equatorial, um dos muitos El Dorados, em encontros na selva com tribos e espíritos “que cortam e encolhem cabeças”, numa história sob o efeito de cogumelos mágicos. Morgana, Boca Dourada, Madame Java, Esmeralda, Venexiana Stevenson e Soledad são os nomes das mulheres com quem troca olhares pelo caminho destes dois volumes.

“As Célticas” está cheio de mitologia e fábulas celtas, a lembrar as raízes paternas de Corto, mas também referências ao Ira e ao Sinn Fein, não faltando sequer uma imagem de Stonehenge e mais uma citação reveladora da personalidade do nosso herói: “está a sonhar de olhos abertos, e quem sonha de olhos abertos é perigoso porque não sabe quando acaba o sonho”.
“As Etiópicas” alargam ainda mais as referências culturais do mundo de Hugo Pratt. O jovem Hugo havia vivido na Abissínia, onde o seu pai militar estivera colocado. E é parte de África que estas páginas mostram. O Mar Vermelho, o deserto, o Corão, homens leopardos, a justiça africana. Corto mascarado de beduíno e a fazer de muezim a chamar para a oração. Um oficial do exército britânico a ler Rimbaud ao invés de Kipling, na irónica observação de Pratt através da boca de Corto. Curiosamente, neste volume não aparecem quase mulheres, apenas duas.
A partir de “Corto Maltese na Sibéria” as obras passam a longas novelas gráficas, ao invés de pequenas histórias agrupadas num mesmo livro. A aventura começa com um sonho em Veneza com Boca Dourada, com Corto a tentar ler (e a adormecer) “Utopia”, de Thomas More. Depois, somos transportados para Hong Kong, Mongólia, Rússia e China. Corto reencontra Rasputine neste tempo de bolcheviques na fronteira mongol e japoneses na Manchúria e aliados na Sibéria. Há sociedades secretas e tríades, uma busca a um comboio russo carregado de ouro que, no final, acaba por cair no fundo de um lago mongol. Mais aventura? O marinheiro Corto num avião abatido nos céus. Que escapa são e salvo para o próximo episódio.

A edição da Meribérica/Liber do “Fábula de Veneza”, também conhecido por “Sirat al Bunduqiyyah”, tem prefácio de Hugo Pratt. Aqui nos dá conta das suas raízes venezianas, designadamente dos passeios até ao Ghetto com a avó, onde mesmo depois fazia questão de voltar sempre. O início deste livro é delicioso, com Corto a cair de um telhado para interromper uma sessão de uma loja maçónica. “Como é que caiu?”, perguntam-lhe; “Caio muitas vezes das nuvens”, ah, ah, ah. Hugo Pratt era parte da maçonaria, mas Corto Maltese “não era pedreiro-livre, antes um marinheiro-livre”. Na sua busca por uma esmeralda cheia de mistério e enigmas, onde vai entrando e saindo das histórias como se fossem sonhos, Corto encontra mais uma mão cheia de mulheres, como Hipazia, Pezinho de Prata e Louise.
Em “A Casa Dourada de Samarcanda” encontramos Corto a fumar narguile e a pensar num monte de mulheres ao mesmo tempo. Quando uma personagem lhe pergunta se alguma vez esteve apaixonado, Rasputine responde que Corto está apaixonado pela ideia de estar apaixonado. Não é difícil perceber que Corto é um homem apaixonado; mais difícil é saber qual a sua maior paixão. Neste “A Casa Dourada de Samarcanda” Corto anda pela Ásia Ocidental e Central, Grécia e Turquia. O nacionalismo turco é aqui um tópico histórico e cultural. Corto busca o tesouro de Ciro e Alexandre, o Grande, ao mesmo tempo que tenta salvar o seu amigo Rasputine da Casa Dourada de Samarcanda, a prisão inexpugnável donde só é possível evadir-se através dos sonhos dourados do haxixe.

Em “A Juventude de Corto Maltese”, obra de que já falámos, o contexto é o da Guerra Russo-Japonesa de 1904. É um retrato de Corto enquanto jovem e suas amizades e suas ligações. É aqui que Corto e Rasputine se encontram pela primeira vez. E é aqui que nos é apresentado o seu amigo escritor Jack London. E aqui se mostra ser o jovem já possuidor de inúmeras ligações nos meios chineses e manchus. E um fantasioso, sempre em busca de algo, neste caso de minas de ouro.
“Tango” mostra-nos Corto de volta a Buenos Aires. Ainda não o tínhamos visto na cidade porteña nos quadradinhos de Hugo Pratt, mas sabíamos que o italiano aqui tinha vivido durante uns tempos. É um mundo de bordéis, tango, bilhares, parrillada, mate e até um céu com duas luas.
“As Helvéticas” é o penúltimo livro de Corto Maltese (anterior a Mú, a Cidade Perdida, o único que não li), tendo sido editado em 1987 (e Mú no ano seguinte). Hugo Pratt viveu os últimos 11 anos da sua vida na Suíça e com este livro talvez quisesse mostrar que esta também é capaz de inspirar e ser possuidora de um mundo imaginário. Alquimia, magia e astrologia são temas, Parsival, Herman Hesse e Tamara de Lempicka personagens. Este livro tem início em Lutry, na mesma vertente do Lago Léman onde está instalada a vizinha Grandvaux, onde Hugo Pratt passou os seus últimos anos. E aqui está igualmente imortalizado Corto Maltese em estátua, contemplando sonhador a água e a montanha majestosa ao seu redor.

(as aventuras de Corto Maltese foram, entretanto, retomadas em 2015 pela dupla espanhola Rubén Pellejero e Juan Díaz Canales, tendo sido editados desde então três novos títulos: Sob o Sol da Meia-Noite, Equatória e O dia de Tarowean)