À entrada da aldeia do Faial da Terra, no concelho de Povoação, tem início um dos trilhos mais bonitos de toda a ilha de São Miguel. Seguindo vale da Ribeira do Faial da Terra acima, a floresta proporciona-nos aqui momentos deslumbrantes, desembocando em duas cascatas selvagens – Salto do Prego e Salto do Cagarrão – e numa aldeia abandonada em processo de recuperação – Sanguinho.

São, na verdade, dois os trilhos oficiais no lugar: o circular PR9 – SMI “Faial da Terra – Salto do Prego”, com 4,5 kms, e o linear PR11 – SMI “Ribeira do Faial da Terra”, com 6 kms e início no sopé da Serra da Tronqueira e final no Faial da Terra. Decidimos juntar estes dois trilhos num mesmo, não percorrendo porém este último na sua totalidade.

Foi Gaspar Frutuoso, o historiador quinhentista autor da obra “Saudades da Terra”, quem deu o título de “presépio da ilha” à povoação do Faial da Terra, uma alusão à presença abundante da morella faya, espécie que já não existe. Tal como o sanguinho, espécie típica da floresta Laurissilva que dá nome à aldeia que visitaremos. Aliás, a vegetação da ilha nos dias de hoje pouco tem a ver com a original, sendo agora ocupada por diversas espécies exóticas. Escreveu então Gaspar Frutuoso: “eram tão bastas as árvores que em muitas partes um cão não podia passar entre elas, nem por debaixo delas; e muitas vezes se andava grande espaço de terra, sem porem os homens os pés no chão, senão por cima das árvores, que estavam verdes, deitadas e alastradas umas por cima das outras; não porque os ventos as tivessem derribadas, senão por se tecerem os ramos de través uns com os outros, com que ficavam liados e cobriam toda a terra, pelo que não havia caminho senão por cima delas”. O coberto vegetal pode não ser já o mesmo, mas a vegetação segue cerrada e é como se estivéssemos a percorrer uma autêntica selva. Luxuriante e divina.


Deixando o mar nas costas (o Faial da Terra chegou a ser a mais importante zona baleeira do sul da ilha de São Miguel), começámos por subir vale afora, sempre acompanhadas pela Ribeira do Faial da Terra. Vêem-se terrenos de culturas várias, como folhas de tabaco e milho, árvores de fruto como laranjas azedas, mas são o incenso (também conhecido como faia do norte) e a acácia que dominam. Há também conteiras.


Para além da muita vegetação, seduz a dimensão do monte à nossa direita, tornando a experiência de imersão na floresta ainda mais profunda. Atravessamos diversas pontes de madeira e passamos por algumas pequenas quedas de água. Tudo idílico. Pouco antes do desvio para o Salto do Prego, somos recebidas por umas galinhas algo atrevidas – uma delas fez mesmo questão de colocar o seu bico numa das nossas mochilas, como se farejasse algo. A juntar-se à floresta aparece até uma fileira de bambu e pouco depois o forte barulho da água anuncia o Salto do Prego.

Antes de descermos à base espreitámos a parte superior da cascata, onde aproveitámos para tomar um snack ao som mais tranquilo da água da Ribeira a correr, sentadas num dos enormes e formosos blocos de rocha que fazem deste um recanto muito atmosférico.

Ao Salto do Prego há que admirá-lo das suas várias perspectivas, mas é junto à sua piscina natural, mesmo sem mergulhar na água gelada, que mais encanto por ele sentimos. A sua torrente de água em queda é um véu de noiva perfeito, cuja água da ribeira segue depois mais pacatamente floresta afora.


Depois da cascata do Salto do Prego optámos por desviar até ao Salto do Cagarrão, já trilho do PR11. A subida começa por ser algo durinha, mas a floresta parece aqui ainda mais poderosa e bela, agora com criptomérias, carvalhos, pau branco (picconia azorica) e fetos.


E, mais uma vez, é o som forte da água que anuncia o Salto do Cagarrão. Este tem um imagem singular, com um tronco erguido em direcção à queda de água e outro estendido na sua frente, um banco de luxo em primeira fila para contemplar tamanha obra da natureza. O lugar onde o Salto do Cagarrão está implantado é acompanhado de muita pedra rolada e por uma parede rochosa imponente que a dado momento se torna uma selva por onde a ribeira tem de ganhar espaço para prosseguir caminho. Impressionante. Para mais, em ambos os saltos estivemos completamente sozinhas, um daqueles acontecimentos que tornam a experiência ainda mais inesquecível.

De volta no caminho já conhecido da ida, agora sempre a descer, aproveitámos para revê-lo com admiração reforçada. E confirmámos que este é dos mais belos pedaços da ilha de São Miguel, imagem que mais facilmente atribuíamos pertencer à ilha da Madeira.



Já a pisar trilhos do PR9, novo desvio para o Sanguinho, com novas paisagens grandiosas do vale da Ribeira do Faial da Terra e pontes para atravessar. A aldeia do Sanguinho recebe-nos com algumas bolinhas vermelhas no chão. São a araçá, cujos frutos veríamos também nas árvores.


Situada no alto do vale e não junto à costa, foi habitada durante mais de um século por gente que buscava refúgio das tempestades marítimas na frente de mar e das cheias da Ribeira do Faial da Terra, aproveitando de caminho a fertilidade dos solos, ficando assim mais perto das terras de cultivo. Chegou a ter 20 casas habitadas, mas a emigração dos anos 50/60 do século XX, em especial para os EUA e Canadá, e a dificuldade das crianças em chegarem à escola levaram a que fosse abandonada e totalmente desabitada a partir do princípio dos anos 1970. Em 2001, a BBC realizou um documentário em que apelidou a aldeia de “The Lost Village”, realçando a beleza do lugar e das ruínas abandonadas. Entretanto, o Sanguinho foi alvo de um projecto de recuperação e hoje algumas das suas casas foram recuperadas e disponibilizadas para turismo rural. É um ambiente incrivelmente tranquilo, rodeado de natureza. Com ruas e casas de pedra, destaque na sua arquitectura típica para as chaminés e apontamentos como os candeeiros de iluminação pública.


No que poderá muito bem ter sido em temos uma eira, hoje há um jardim com uma latada e cadeiras que convidam à contemplação do vale e do mar, com a povoação do Faial da Terra abaixo.


É para lá que vamos, descendo a panorâmica calçada de pedra em ziguezague, acompanhada de bananeiras e muito mais vegetação. Já não há sanguinho, a espécie que deu o nome à aldeia, mas não faz mal. Sobram muitas outras espécies e paisagens que nos farão ter saudades deste pedaço exuberante dos Açores.
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