As Gravuras do Vale do Côa

No território do Alto Douro Vinhateiro, ao longo de duas linhas fluviais, o rio Côa e o rio Douro, os antepassados dos nossos antepassados deixaram-nos um conjunto de arte rupestre ao ar livre que, dezenas de milhares de anos depois, ainda aí está para ser por nós testemunhado. O maior conjunto de arte rupestre paleolítica ao ar livre, as Gravuras do Vale do Côa possuem uma importância singular como manifestação artística do Homem durante o Paleolítico Superior.

Lugar de paisagem tocante e deslumbrante, para além da arte paleolítica descoberta em 1991, o rio Côa está ligado à história de Portugal. Fronteira natural, até à assinatura do Tratado de Alcanizes, em 1297, o rio Côa fez de efectiva fronteira territorial entre Portugal e Castela, passando a partir daí ambas as margens e as Terras do Ribacoa para a coroa portuguesa. O Côa nasce próximo do Sabugal, em Fóios, e desagua no Douro, junto ao Pocinho e, diga-se como curiosidade, é um dos poucos rios a correr de sul para norte.

Por volta de 28000 a 8000 a.C., no Paleolítico Superior, os povos eram nómadas e viviam em comunhão com a natureza. Até à descoberta em 1879 da Caverna de Altamira (juntamente com Lascaux a mais famosa gruta e caverna com arte rupestre), as gravuras na rocha eram encaradas como linguagem e não como arte. Mais de um século depois, em 1991 foram descobertas as gravuras rupestres nas rochas ao ar livre no Vale do Côa, no nosso país. Não havia já dúvidas acerca da valia histórica e artística de tal património, mas o processo que resultou na criação do Parque Arqueológico do Vale do Côa, em 1996, não foi isento de polémica e discussão. Gritou-se então que as gravuras não sabiam nadar e o resultado acabou por ser a preterição da construção da Barragem de Foz Côa, suspendendo-a, e a decisão do governo de António Guterres, em 1995, entrou para história recente de Portugal como um momento em que a vontade de preservar o passado venceu o progresso do futuro. E a Unesco viria mesmo a classificar este sítio de arte pré-histórica como Património Mundial em 1998. No entanto, sabe-se hoje que muito provavelmente outras gravuras vizinhas terão ficado afundadas aquando da construção da Barragem do Pocinho, em 1982. Até porque um ano antes havia sido descoberto o Cavalo de Mazouco, a primeira gravura paleolítica ao ar livre encontrada no território português, no concelho de Freixo de Espada à Cinta, a 25 km do Vale do Côa. Ou seja, esta é uma região rica em testemunhos de uma povoação antiquíssima, sendo conhecidas cerca de 1200 rochas gravadas, em 80 sítios diferentes.

O espaço arqueológico do Vale do Côa divide-se em dois eixos fluviais principais: 30 quilómetros ao longo do rio Côa, com os sítios da Faia, Penascosa, Quinta da Barca, Ribeira de Piscos e Canada do Inferno, e 15 quilómetros pelas margens do rio Douro, nas áreas de Fonte Frireira, Broeira, Foz do Côa, Vermelhosa, Vale de José Esteves e Vale de Cabrões. No entanto, são apenas três os sítios visitáveis, todos eles sujeitos a marcação prévia e sob visita guiada acompanhada por especialistas: Penascosa, Canada do Inferno e Ribeira de Piscos. O horário das visitas é variável, de forma a que a luz solar possa incidir de uma forma mais favorável à visualização das gravuras na rocha, e existem também visitas nocturnas e de caiaque.

Nestes sítios podemos traçar a origem da arte.

Antes, porém, é essencial a visita ao Museu do Côa, inaugurado em 2010 sob projecto dos arquitectos Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, que tudo pensaram e desenharam em função da paisagem. Inesquecível o seu terraço.

No Museu do Côa aprendemos que o território do Côa constitui um excelente registo da evolução geológica da Terra, entre 480 e 250 milhões de anos. Originariamente havia um só oceano de nome “Pantalassa” e um só continente de nome “Gondwana”. E o vale do Côa não era um vale, tendo a sua paisagem transformado e evoluído ao longo dos tempos até chegar ao que hoje vivemos: uma paisagem constituída por xistos, quartzitos, granitos e grauvaques. No Museu é-nos mostrada a implantação geográfica do vale e a localização dos sítios paleolíticos, numa área de 200 kms2 pertencente ao parque arqueológico. Várias explicações para as gravuras são apresentadas sob diferentes títulos:

1. “A Arte Pela Arte” – nascida das ideias em voga nos finais do século XIX e inícios do século XX, de um paraíso perdido e de um passado idílico, assim como na emancipação do artista. A interpretação lúdico-epicurista da arte paleolítica foi a primeira tentativa de explicação da sua origem. Tendo em conta a qualidade artística das obras que se iam descobrindo, assumia-se que o Homem as tinha realizado por um lado por ter tempo livre e por outro por puro deleite estético.

2. “A Magia Simpática e os Cultos da Fecundidade” – os ventres proeminentes nos animais, a presença de motivos e interpretações como projectéis de caça ou feridas e a hiperbolização dos caracteres sexuais humanos levaram os investigadores a relacionar a produção artística com práticas mágico-propiciatórias que seriam realizadas com vista à obtenção de sucesso na caça e na fertilidade humana, factores essenciais na perpetuação dos modos de vida do paleolítico.

3. “O Xamanismo” – a presença de figuras híbridas interpretadas como feiticeiros ou xamãs levou investigadores, como o Padre Breuil, a relacionar a arte paleolítica com rituais de tipo xamânico. A presença de figuras incompletas que saem de fissuras, os estudos neurológicos sobre estados alterados de consciência, documentados a partir de etnografia comparada com as investigações sobre os bosquímanes da África do Sul, relançaram esta hipótese, ainda mais valorizada recentemente em determinados círculos científicos.

4. “Os Estruturalismos e Pós-Estruturalismos” – estas correntes de pensamento, muito em voga a partir dos anos 60, têm em comum o facto de encararem a arte paleolítica como um conjunto organizado de signos. Privilegia-se a coerência das associações temáticas e a sua localização na gruta ou na paisagem, sendo estas interpretativamente tão relevantes como as figurações. É valorizada a pertinência social da arte.

O que é certo é que estes riscos na pedra não são meros rabiscos; são antes a expressão de um pensamento.

E independentemente da explicação a que possamos aderir, facilmente saímos da exposição com um imenso sorriso pela leitura de uma singela frase – em que acreditamos – na última sala da visita ao Museu: “a Humanidade somos todos nós”.

A visita por nós escolhida foi a das gravuras da Penascosa. Tem início em Castelo Melhor, bonita povoação com um castelo numa colina melhor observada desde o miradouro de Sao Gabriel, numa colina irmã.

Daqui saímos de jipe por uns quilómetros vale abaixo e só a viagem pelo território do Parque Arqueológico já vale bem a pena. Vemos a Quinta da Ervamoira ao longe, famosa pelos seus vinhos e pela amplidão dos seus vinhedos. Aliás, os seus terrenos incluem vestígios romanos e arte rupestre da Ribeira de Piscos. A paisagem é fabulosa, pontuada pelos riscos das vinhas, pelos pombais e, claro, pelo rio Côa.

O sítio da Penascosa fica à beira Côa. Aqui predominam os desenhos de cabras, tendo um deles sido escolhido como símbolo do Parque. Mas há mais animais gravados nas rochas, como o auroque (boi selvagem), o cavalo e o veado. Os homens do Paleolítico pintaram os animais que conheciam e fizeram deste o maior centro de gravuras a céu aberto. A Penascosa é o lugar das mais antigas, com mais de 20 mil anos. E, ao contrário da ideia que levava, percebem-se na perfeição os contornos dos traços cravados nas rochas, sendo uma emoção identificar aqueles animais.

E uma das suas características mais interessantes e curiosas é a sobreposição de gravuras na rocha. Haveria outras rochas limpas, mas esta sobreposição de figuras de animais é intencional e prolongou-se por milhares de anos. As figuras sugerem movimento – veem-se três cabeças de cavalo – e podem ser consideradas como antecessoras do cinema. Outros comparam-nas com os ex-votos. Certo é que algum significado teria para os homens do Paleolítico esta arte monumental que deixaram gravada, ainda que provavelmente esse significado possa ter mudado ao longo dos tempos.

A descoberta das gravuras do Vale do Côa com a sua arte ao ar livre veio mudar o paradigma e a imagem que tínhamos do homem do paleolítico como homem das cavernas (e, antes, já Lascaux e Altamira influenciaram Picasso e a sua Guernica). Só por isso já seria importante, por trazer uma nova luz sobre a vida dos nossos antepassados pré-históricos.

Deixe um comentário