Alcácer do Sal

Alcácer do Sal, a uma hora de Lisboa, é o Alentejo onde o Sado se sente mais presente. O casario branco, com castelo a pontuá-lo, ergue-se encosta acima desde as serenas águas do rio rodeado de extensos arrozais. Esta é uma povoação onde a história se vem a fazer há muito, com diferentes povos a sucederem-se em diferentes épocas num mesmo lugar e disso deixando testemunho. Povoados da Idade do Ferro, romanos, muçulmanos, Ordem Militar de Santiago e até o matemático Pedro Nunes são alguns dos seus personagens.

O rio Sado, antigamente conhecido por Sádão, nasce na serra da Vigia, a 230m de altitude, e percorre 180 kms de sul para norte – um dos poucos a tomar tal direcção – até desaguar no oceano Atlântico, em Setúbal. O caudal e extensão das suas margens vai variando ao longo do caminho, mas o seu estuário tem uma área de cerca de 160 km2 e a sua bacia hidrográfica uma área de 7640 km2. Números generosos que são a casa de elementos naturais diversos e de importância ecológica e beleza paisagística. É numa curva do rio, a pouca distância da foz, que esta linha de água acolhe Alcácer do Sal. A povoação, espelhada no Sado, é uma imagem singularmente deliciosa, que nos habituamos a ver passar à distância enquanto rumamos a sul, pela A2. Mas hoje vamos abeirar-nos dela, aproveitando para caminhar pelas suas ruas e admirar os seus edifícios históricos, com uma pausa para almoço num dos muitos restaurantes com vista rio.

A região de Alcácer do Sal tem ocupação humana comprovada desde a Idade do Ferro. Entre o século 7 e 2 a.C. existiu aqui uma cidade que teria casas com a mesma técnica de fabrico daquelas encontradas pelo Mediterrâneo, de pedra aglutinada com argila. As actividades económicas de subsistência eram sobretudo a agricultura, a pecuária, a pesca e o sal, bem como a actividade mineira em jazidas de ferro e cobre nas regiões pouco mais afastadas de Grândola e Montemor-o-Novo. Eram mantidos contactos com as gentes do Mediterrâneo Oriental (fenícios, gregos e cartagineses), com quem se estabeleciam redes de comércio.

Os romanos, mais tarde, fizeram da cidade um dos mais importantes oppidum (principal povoação) do Atlântico Português, à qual atribuíram o título honorífico Salacia Urbs Imperatoria. Por volta do ano 44 a.C. era então conhecida por Salacia e, junto com Caetobriga (Setúbal), dominava o comércio do Sado, sendo uma cidade próspera onde terá sido até cunhada moeda. De localização estratégica, na margem norte do Sado, era então comum a navegabilidade desde o interior até ao mar, servindo esta autêntica via para o transporte das mercadorias. Há diversos vestígios da presença romana em Alcácer, em especial na área do castelo, tendo escavações junto da igreja Santa Maria do Castelo revelado vestígios de um edifício público romano com características de um fórum e na zona noroeste do castelo encontrado um troço de via romana ladeado por lojas. Ainda, na zona poente do castelo, está a antiga necrópole romana nas proximidades da necrópole da Idade do Ferro.

Os visigodos sucederam os romanos, mas existem poucos vestígios da sua presença. Já os muçulmanos chegaram por volta do ano de 750 e fizeram da Salacia romana a sua Al-Qasr al Milh. Mas foi a tribo berbere dos Banu Adanis que no final do século 9 procedeu a um maior investimento militar e cultural, conferindo a Alcácer uma projecção ímpar e transformando-a na sede de um reino que chegou a dominar a costa atlântica desde Odemira até ao norte de Lisboa. A presença islâmica durou cerca de 400 anos, até 1158, data em que Alcácer foi tomada por D. Afonso Henriques. Não definitivamente, porém, uma vez que os mouros voltaram a reconquistá-la em 1191, então denominando-a de Al-Qasr al-fath (Alcácer da Victória). Só em 1217 foi Alcácer conquistada definitivamente para a cristandade e para o reino de Portugal, por D. Afonso II, com a ajuda dos cavaleiros da Ordem de Santiago de Espada. Como recompensa pelos serviços prestados, a povoação foi doada a esta ordem, que aqui estabeleceu a sua sede, a primeira em Portugal. Tinha como patrono o apóstolo Santiago e, então, a cidade tornou-se um importante bastião do cristianismo contra o poder islâmico, tendo ganhado grande importância militar, social e religiosa, dominando um território que incluía as vilas de Grândola, Santiago do Cacém e Vila Nova de Milfontes. Nesse âmbito, foi concedido foral a Alcácer em 1218 e o castelo reconstruído em 1289. Deste século 13 datam alguns dos monumentos mais simbólicos da cidade, como a igreja de Santa Maria do Castelo e a primitiva igreja do Senhor dos Mártires.

Começamos por subir a ligeira encosta – e única – onde está implantada Alcácer, rumo ao Castelo de Alcácer do Sal, onde visitámos a sua Cripta Arqueológica. É visita imperdível, pelo contexto histórico deveras esclarecedor e interessante que proporciona, numa autêntica viagem no tempo por 27 séculos de história. No sub-solo da antiga fortaleza e do antigo convento de Aracoeli, hoje Pousada D. Afonso II, encontramos vestígios de todos os povos que viveram nesta colina, descobertos em meados da década de 1990, quando se procedeu às obras de adaptação do espaço a unidade hoteleira. Esses vestígios vão desde da Idade do Ferro (uma cidade e necrópoles), a estruturas do período romano (entre as quais uma área de altar sacrificial) e da ocupação islâmica (como um silo para armazenar cereais), para além, claro, dos “mais recentes” muros medievais da época cristã pós-reconquista. Estes últimos estão parcialmente alicerçados em paredes romanas que, por sua vez, se sobrepõem a estruturas pré-existentes da Idade do Ferro, revelando um reaproveitamento de estruturas anteriores ao longo dos tempos, resultado da contínua ocupação humana do lugar desde tempos pré-históricos até à época moderna. Muito interessante constatar que o espaço romano com função religiosa foi construído sobre as estruturas de um templo da Idade do Ferro, sinal da perpetuação dos cultos e das tradições ao longo dos tempos. Todos estes achados com os tais 2700 anos de intervalo entre si, de diferentes tipologias e inúmeros objectos – e até um arruamento com largura de 3,5 metros – convivem no mesmo espaço, agora revelado museologicamente.

O Castelo de Alcácer do Sal terá sido construído no século 8 pelos mouros e posteriormente reconstruído pelos cavaleiros da Ordem de Santiago e dele restam alguns panos de muralha e torres. A Torre do Relógio, virada ao Sado, foi construída em taipa por um dos califas do século 12 e daqui se tomava – e toma – uma bela panorâmica sobre o rio. Já não tem as originais funções militares e, agora, podemos tranquilamente pousar os nossos sentidos nos seus inseparáveis arrozais que ocupam a vasta planície.

O interior, no que eram os Paços dos Comendadores da Ordem de Santiago e os Paços Reais, foi transformado no século 16 em Convento de Aracoeli, de freiras clarissas. Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, foi abandonado depois da morte das últimas freiras e entrou progressivamente em deterioração, agravada por estragos provocados pelo sismo de 1969. Permanece, porém, a fama da doçaria das freiras deste convento. Depois das devidas adaptações, em 1998 abriu como Pousada D. Afonso II. Em Janeiro, data da nossa visita à Alcácer, a pousada estava encerrada, pelo que não pudemos conhecer o espaço onde se preservam os claustros e cujas partes comuns dão directamente para uma das antigas torres do castelo ainda intactas.

Também aberta para a Praça do Castelo, está a Igreja de Santa Maria do Castelo, construída no século 13, logo a seguir à reconquista cristã de 1217. Em estilo românico tardio, foi erguida no local onde provavelmente estaria implantada a mesquita muçulmana. Com o tempo, acabou por ganhar também elementos góticos, manuelinos e barrocos, e destaca-se o seu portal lateral.

Para lá do Castelo, a ocidente está o Santuário de Santo Cristo dos Mártires, no lugar onde havia existido uma necrópole desde a Idade do Ferro. Aqui foi fundada a igreja de Santa Maria dos Mártires, no século 13, pela Ordem de Santiago que lhe acrescentou, em 1333, a Capela dos Mestres para servir de panteão dos mestres da Ordem. Objecto de diversas reformas ao longo dos tempos, a referida Capela destaca-se pela sua planta poligonal encimada por cobertura em abóbada. A igreja, por sua vez, é antecedida por um alpendre em arco e possui uma torre sineira. O culto e a devoção que o santuário passou a ter, associado à ocorrência de milagres, terá surgido no final do século 15, quando o contador Estêvão Rodrigues e a sua mulher Inês Eanes doaram um crucifixo à capela e a imagem de Cristo crucificado passou a atrair mais e mais romeiros que aqui vinham rezar e pagar promessas. Até hoje.

De volta ao centro de Alcácer, uma paragem demorada na Praça Pedro Nunes (que nasceu na cidade, em 1492), larga e aberta ao Sado. Nela estão o edifício da câmara municipal e a antiga igreja do Espírito Santo, transformada em Museu Municipal Pedro Nunes. No lugar terá estado originalmente o Hospital do Espírito Santo – e a janela manuelina na fachada lateral será disso um resquício – e há quem goste de acreditar que D. Manuel terá casado aqui com D. Maria, o que não será correcto, uma vez que a igreja foi construída apenas no século 17.

Povoação relativamente pequena, as ruinhas estreitas de Alcácer acomodam ainda mais alguns templos religiosos, entre igrejas e conventos. São disso exemplo a quinhentista Igreja e Hospital da Santa Casa da Misericórdia, em estilo manuelino, maneirista e tardo-barroco, e a Igreja Paroquial de Santiago, já setecentista, numa época em que a Ordem de Santiago já dependia do rei, neste caso de D. João V. A surpresa maior ao mirar de perto esta última igreja (que já se destaca ao longe desde o outro lado do rio) é perceber como um elemento de grande porte se aninha entre o casario vizinho. Em estilo maneirista e barroco e elevada sobre uma escadaria, as suas duas torres sineiras servem de casa a ninhos de cegonhas e o interior não condiz com a pacatez vivida no exterior, estando profusamente decorado por painéis de azulejos, pinturas e talha dourada.

Ao redor da cidade, a vida corre pacata, por entre natureza viva. Pinhais, sobreirais, campos de arroz, vacas, cavalos e mais cegonhas, todos eles partilham o espaço rural.

Do concelho de Alcácer do Sal, o segundo maior em área em Portugal, fazem ainda parte as povoações do Torrão e Santa Susana, bem como a Comporta e a aldeia e cais palafitico da Carrasqueira, todas elas paragens que mostram o encanto da região, uma planície que ainda hoje é intensamente aproveitada para a agricultura, nomeadamente arroz, milho, tomate e outros hortícolas. Pode não ter o acesso à frente Atlântica da sua vizinha Grândola, mas é orlada pelo estuário do Sado e acolhe barragens como a de Vale do Gaio, e ainda florestas de sobreiros e pinheiros sempre perto da brisa da água. Daqui saímos acompanhados das palavras de Sophia de Mello Breyner Andersen, “A sombra azul da palavra moira / O branco vivo da palavra sal”.

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