Tratado das Coisas da China, de Frei Gaspar da Cruz

Frei Gaspar da Cruz foi um missionário dominicano pioneiro nas viagens pela Ásia do Sueste. Em 1556 viajou para Cantão, sul da China, com a missão de evangelizar a “multidão de almas perdidas com a ignorância da verdade”. E como “estas gentes têm muitas coisas muito dignas de memória” moveu-se “a dar notícia geral”, tendo então escrito uma narrativa de viagem, o Tratado das Coisas da China, que veio a revelar-se uma das melhores fontes europeias do século XVI e desempenharia um papel importante na construção da visão da China na Europa da época.

O frade dominicano andou por Goa, Ceilão, Malaca e Camboja. Desapontado por ter aqui encontrado algumas dificuldades na conversão das suas gentes, decidiu partir para o sul da China, mais especificamente Cantão. Pode não ter tido muito sucesso na sua missionação, mas acabou por entrar e permanecer na história como o primeiro a fazer editar na Europa uma narrativa dedicada exclusivamente à China. Este Tratado das Coisas da China, impresso em 1569-1570, foi mesmo editado antes da (mais famosa) obra de Fernão Mendes Pinto e só não teve distribuição mais alargada na Europa por ter sido editado apenas em português.

A ideia de publicar esta narrativa tem muito a ver com uma ideologia da expansão, profundamente ligada ao projecto de missionação, o qual possuía não só o apoio real, como era parte integrante dos descobrimentos e da expansão portuguesa. Não estranha, assim, que no prólogo da obra de Frei Gaspar da Cruz sejam louvados os descobrimentos “por meio dos quais Deus por seus servos tem convertidas novamente muitas gentes à fé, e vai convertendo e converterá”, desde “os brasis e os de toda a costa de Guiné”, Sofala e Moçambique, Ormuz, Índia, Ceilão, Japão, Maluco, Timor e Java. Pese embora todo este sucesso, devidamente exaltado, faltaria a China: “os chinas a todos excedem em multidão de gente, em grandeza de reino, em excelência de polícia e governo, e em abundância de possessões e riquezas, e porque estas gentes têm muitas coisas muito dignas de memória me movi a dar notícia geral”. Mas apesar de tanta grandeza, o frei acrescenta o compadecimento que deve merecer “tanta multidão de almas perdidas com a ignorância da verdade, pedindo a Deus que dilate a sua santa fé católica nesta gente como na demais, tirando-a de sua ignorância e cegueira em que vivem idolatrando”.

A invenção da imprensa levava pouco mais de um século e nos finais do século XVI as obras relativas às aventuras portuguesas além-mar começavam a despertar o interesse num conjunto de leitores. Por outro lado, desde a Antiguidade que o Oriente alimentava as fantasias dos europeus como lugar exótico e, ainda que a China não fosse muito conhecida, era mítica, misteriosa e fascinante. Lugar de lendas. Nesta época não eram muitos os contactos com a China e embora os portugueses estivessem instalados em Macau, no mesmo delta do Rio das Pérolas onde se situa também a Cantão para onde o frade foi pregar, faziam-no sem autorização legal por parte dos chineses. Ou seja, a visão da China estava condicionada pela que havia sido dada por Marco Polo. A tal visão que suscitava encantamento e admiração aos europeus. E, por isso, no prólogo Frei Gaspar da Cruz refere saber que “os curiosos acharão muitas coisas que folgarão de ler”.

Esta obra aborda, assim, primeiro a China em geral, da gente e da terra, depois em particular, do reino e das províncias. Mais, seus edifícios e embarcações, aproveitamento das terras e ocupações dos homens, trajos dos homens e das mulheres, usos e costumes, dos que regem a terra e do governo dela e, por fim, cultos e adorações.

A China Ming da época vem tratada pelo Frei como um império modelo, talvez porque tivesse presente que a vida no Portugal de então era inferior à realidade chinesa. Os tempos Ming foram tempos de uma cultura literata e de alguma prosperidade, muito derivada ao comércio marítimo internacional, uma vez que os Ming foram contemporâneos da expansão europeia na Ásia. Mas os Ming seguiam uma política de auto-isolamento. A este propósito escreve o Frei que “mas vendo el-rei da China que o seu reino se ia desbaratando e arriscando por se quererem estender a senhorear outras muitas terras de fora, se tornou a recolher com suas gentes só em seu reino, com fazer édito público que sob pena de morte nenhum seu natural navegasse para fora da China”.

Já se sabe, o objectivo de Frei Gaspar da Cruz na China era o de fazer a cristandade. Encontrou, todavia, dificuldades, tal como as havia encontrado no Sueste Asiático. Tal se devia ao facto não só de os portugueses não poderem aí permanecer por tempo indeterminado, como por os mandarins, ou loutiás, como a eles se refere o Frei, subjugarem o povo e não permitirem nenhuma novidade. Por outro lado, os sacerdotes eram vistos de alguma forma como gente ociosa, aborrecida e desestimada pelos chineses, uma vez que não desenvolviam actividades produtivas. Mas Frei Gaspar da Cruz bastas vezes mostra a sua admiração pelo modelo de valores que era a China que visitava, designadamente, a sua riqueza, abundância, igualdade, justiça e tolerância, e destaca igualmente o seu apreço por esta ideologia do trabalho. Os chineses dão relevância à obra do homem, considerando o trabalho um valor essencial, sendo “a gente ociosa nesta terra muito aborrecida e mui odiosa aos demais”.

Na sua exposição descreve a geografia e a história dos reinos que compunham a China, a grandeza da terra, a maravilha das suas construções, como pontes, estradas, ruas e casas, o aproveitamento geral da terra, usos e costumes, a religião e a justiça. Descreve, até, as gentes com quem confina a China. Os “mogores”, “gente esta mui belicosa, pelejam com frechas e arcos a cavalo, usam de couraças e capacetes e terçados”, os “tártaros”, as tribos semi-nómadas da Ásia Central que ameaçavam a China, “gente vermelha commumente e não alva, andam nus da cinta para cima, comem carne crua e untam os corpos com o sangue dela. Pelo que commumente são fedorentos e têm mau cheiro”, e que “chamam os chinas a estes tatos, porque não podem pronunciar esta letra r”.

Já os chineses foram pelo Frei considerados feios. “Ainda que os chinas commumente sejam feios, tendo olhos pequenos e rostos e narizes esmagados, e sejam desbravados, com uns camelinos nas maçãs da barba, todavia se acham alguns que têm os rostos mui bem feitos e proporcionados, com olhos grandes, barbas bem postas, narizes bem feitos. Mas destes são muito poucos, e pode ser que sejam de outras nações nos tempos antigos entremetidas nos chinas, em tempos que eles comunicava diversas gentes”.

Quanto à geografia da própria China, diz ser a mesma constituída por treze províncias e cada uma delas ter “uma cidade mui grande e populosa e mui nobre em edifícios por cabeça”, ou seja, por capital. “Cantão é uma entre muitas menos nobres da China, e muito somemos em edifícios que outras muitas, ainda que mais populosa que muitas. Isto dito por todos soque a viram e andaram pela terra dentro, onde viram outras muitas”. O Frei baseia-se aqui nas suas fontes, nomeadamente Galiote Pereira e outros informadores. Apesar de não ter estado em Pequim, a grande capital está sempre presente no seu relato enquanto projecção aumentada das informações sobre Cantão. Se esta cidade menor é tão cheia de grandeza, riqueza e maravilhas, como serão as outras e sobretudo a imensa Pequim? Da grandeza da cidade de Pequim diz “que um cavalo de andadura apenas a atravessa dos muros adentro de sol a sol”.

Compara Cantão com Lisboa, capital do seu reino, ao afirmar que “as ruas da cidade todas são lançadas à linha mui direitas, sem nenhuma qualidade fazerem lombo nem tortura. As ruas principais são algumas mais largas que a Rua Nova dos Mercadores de Lisboa aos Ferros”. Mais, “têm as ruas principais arcos triunfais que as atravessam, altos e mui bem feitos, os quais fazem as ruas muito formosas e enobrecem a cidade”. Quanto aos materiais usados nas casas, “confesso em verdade que nunca vi madeira tão linda como aquela”, as telhas “melhores e de mais duração que as nossas”.

O deslumbre continua. “Estas pontes são a principal praça das cidades, onde se vendem todas as coisas de comer. O que é de maravilhar da China, é haver muitas pontes por toda a China em lugares despovoados, e não serem de menos custo e obra que as que estão ao longo das cidades, antes são todas custosas e mui bem obradas”.

A circulação fluvial na China de quinhentos era intensa. As grandes cidades estavam situadas nas margens dos férteis rios, os quais permitiam ainda uma fácil mobilidade. “Quase todas as cidades estão fundadas ao longo de rios”; “há imensidade de navios e embarcações”; “tem muita multidão de ilhas ao longo da costa, mas muito grande costa pela qual se navega”; “toda a China por dentro se navega e toda se corre por rios que a talham toda e regam, que são muitos e muito grandes. De maneira que até aos fins do reino se pode navegar e ir em embarcações”; “é tão grande a multidão de navios que é coisa maravilhosa vê-los”. Frei Gaspar da Cruz regista ainda o facto de as embarcações servirem de casas para muita gente pobre. Descreve as sampanas e diz que “ali criam o seu porquinho, sua galinha, e ali têm também sua pobrezinha horta, e ali têm toda sua pobreza e agasalhado”.

Acerca do aproveitamento da terra e ocupações dos homens, refere ser a “China terra quase toda mui bem aproveitada” e que “faz ajuda muito a isto ser a gente ociosa nesta terra muito aborrecida e mui odiosa aos demais, e quem o não trabalhar não no comerá, porque commumente não há quem dê esmola a pobre”. “Daqui vem que toda a terra que na China pode dar qualquer género de fruta recebendo semente é aproveitada […] semeiam arroz, e dão algumas destas várzeas duas e três novidades no ano”. Para além de que, diz acerca dos ofícios e mercadores, “há nesta terra de todos os ofícios muita quantidade de oficiais, e muita abundância de todas as coisas para o uso comum necessárias”. Caso diferente do que aconteceria em Portugal, o que o leva a registar que “de maneira que os ricos e os muito pobres podem todos andar calçados”.

É neste ponto que, após constatar a abundância de ourives de ouro e de prata, latoeiros, ferreiros e muitos mais ofícios donde são geradas abundantes e prefeitas coisas, bem como uma multidão de mercadores de peças e panos de seda, Frei Gaspar da Cruz fala da porcelana. A mitologia acerca do seu fabrico e da sua produção perdurou até muito tarde. Marco Polo havia já referido a porcelana e ajudado a criar o mito. Apenas com Frei Gaspar da Cruz a situação mudou de figura e a ideia de serem as porcelanas feitas de cascas de ovo, conchas de molusco e terra foi desmistificada. Este descreve, assim, quer o seu material, quer o seu modo de produção.

O Frei foi também o primeiro na Europa a pormenorizar as excelências do chá e as suas qualidades. Diz-nos ser a oferta desta bebida um ritual de hospitalidade. Esta infusão começou a ser mencionada em escritos portugueses a partir de 1548, no entanto Frei Gaspar da Cruz foi um dos primeiros a reproduzir o seu nome, chá, exactamente.

Diz ainda gostarem os chineses de conviver à mesa e que esta é farta, tendo a terra muita fartura e muita abundância de todas as coisas necessárias para comer e remediar a vida, destacando o arroz e o trigo, a carne e o peixe, e as frutas e as hortaliças, mas também as rãs e a carne de cão “feitos em quartos, assados e cozidos e crus, e com as cabacinhas peladas e com suas orelhas, porque os pelam todos como leitões. É manjar que come a gente baixa, e vendem-se vivos pela cidade em gaiolas”.

Refere ser o cumprimento comum dizer-se um ao outro “chifã mesão”, qualquer coisa como “comeste ou não, que todo seu bem nesta vida se resolve em comer”, acrescenta.

Frei Gaspar da Cruz descreve ainda as festas chinesas, nomeadamente a festa da primavera e do ano novo chinês e a comemoração dos dias de seus nascimentos. A descrição desta última faz crer que no Portugal de então não seria habitual a comemoração com festas dos aniversários.

No que respeita às mulheres, em particular aos seus pés pequenos, o Frei foi o primeiro na Europa a referir-se a esta característica: “desde meninas lhes apertam muito os pés com panos, para que fiquem os pés muito pequenos, e fazem-no porque têm os chinas por mais gentis mulheres as que têm os narizes e os pés pequenos. Isto todavia se usa na gente lustrosa, e não na muito baixa”.

O sistema de ensino e o método da escrita chinesa causaram, igualmente, admiração. O Tratado do Frei contém, inclusivamente, algumas expressões e palavras, como a palavra cha ou os títulos de vários oficiais. Diz haver na China “muita diferença de linguagens, pelas quais uns a outros na fala não se entendem, entendendo-se por escritura”. “Não têm os chinas letras certas no escrever, porque tudo o que escrevem é por figuras, e fazem letras por parte, pelo que têm muito grande multidão de letras, significando cada uma coisa por uma letra. De maneira que uma só letra lhes significa “céu”, e outra “terra”, e outra “homem”. Esta é a causa porque em toda a China há muitas línguas, de maneira que uma se não entende à outra por fala, nem os cauchins-chinas se entendem com os chinas, nem os japões com os mesmos chinas se entendem por palavra, e todos se entendem por escritura”. “Disse-lhe que me fizesse as letras todas do a.b.c., e respondeu-me que não podia logo assim fazê-las, que eram mais de cinco mil”.

Em relação aos mandarins, isto é, aos altos funcionários chineses, surpreendentemente Frei Gaspar da Cruz nunca usa esta palavra. Opta antes pelo termo “louthia” para os designar ou usa “os que regem a terra”. O Frei foi o primeiro europeu a descrever o dragão imperial, tradicionalmente usado como insígnia imperial. Assim como nos referiu o sombreiro amarelo usado pelas mais altas dignidades.

Por fim, é nos dada uma breve relação das principais crenças chinesas, ainda que sem grandes novidades, uma vez que os padres da Companhia de Jesus já o haviam feito uns anos antes. Refere divindades como o céu, o culto aos antepassados, o budismo e o taoismo.

Apesar da esmagadora maioria de notas laudatórias acerca da China, no que respeita às suas práticas religiosas a censura é evidente: “pelo que, não terem os chinas conhecimento de um Deus, é bastante argumento para mostrar que os chinas não têm estudos de filosofia natural, nem se dão à contemplação das coisas naturais”; mais, “adoram também estas gentes o diabo”; e ainda, “quão polida é esta gente no regimento e governo da terra e no comum trato, tão bestial é em suas gentilidades, no tratamento de seus deuses e idolatrias”.

Tudo isto para chegar à conclusão do quão difícil seria ter sucesso nos seus intentos de converter os chineses à cristandade. Todavia, sucesso completo em mostrar em primeira mão aos europeus do século XVI e até hoje a todo o mundo do século XXI, a China quinhentista sob o ponto de vista geográfico, político-governamental, cultural e religioso, seu território e suas gentes. Uma China que era então imaginada mas não conhecida.

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