Belmonte

No centro de Portugal, Beira Baixa a tornar-se Alta, fica Belmonte. Instalada no alto de um monte a 599 metros de altitude, o “belo monte ou monte belo” que terá dado origem ao seu nome, desta vila dominadora muito se contempla, tanto a Serra da Estrela e vale do rio Zêzere como a Cova da Beira e uma série de outras serras ao seu redor. Região onde os romanos deixaram um dos mais enigmáticos monumentos em solo português, é ainda célebre por ser reconhecida como a terra de Pedro Álvares Cabral e de uma forte presença judaica. Não espanta, pois, a quantidade de turistas que a vêm conhecer.

À aproximação de Belmonte, o seu castelo vai-se fazendo sentir mais e mais, de tal forma que é por aqui que escolhemos iniciar o nosso passeio.

Construído sobre um afloramento rochoso no ponto mais elevado da vila, foi aqui o lugar onde primeiro assentou a população, antes mesmo sequer de haver castelo. Escavações arqueológicas efectuadas na década de 1990 no recinto do castelo apontaram para a presença dos romanos, mas até aí era dado como certo que a primeira ocupação mais permanente em Belmonte havia acontecido a partir do século 9, com os poucos habitantes instalados num pequeno núcleo populacional fortificado. Terá sido só após a concessão de foral a Belmonte, em 1199, por D. Sancho I, que a edificação do castelo terá acontecido. Então, no início do século 13 foram demolidas as casas intramuros, substituídas pelo novo castelo, e a povoação foi desenvolvida extramuros, em direcção à Rua Direita. A torre de menagem é desta época, destacando-se no conjunto de traçado oval irregular.

Entramos por uma porta em cotovelo em arco e logo damos com o terreiro onde em 1992 foi instalado um anfiteatro e, mais ao fundo, estão os restos do poço / cisterna. Subimos à muralha e caminhamos por parte dela, no exacto lugar onde estão umas janelas panorâmicas, uma delas manuelina.

Com a assinatura do Tratado de Alcanizes, em 1297, que resultou no avanço da fronteira do Reino de Portugal para leste, o castelo de Belmonte ficou na segunda linha de defesa e perdeu grande parte da sua importância estratégica. Por isso, no século 15 a vila de Belmonte foi cedida à família Cabral e o castelo medieval acabou transformado em residência senhorial fortificada. A janela manuelina será desta época e referente aos Cabrais encontramos ainda a representação das suas armas numa das portas do paço.

A subida à torre de menagem, de planta quadrada e com três pisos, leva-nos ao topo do castelo e a uma vista incrível sobre a região: a vila logo abaixo, podendo identificar-se todos os seus edifícios históricos, e a encosta este da Serra da Estrela e o vale do Zêzere, por onde há muito passava a estrada romana que ligava Mérida (Emerita Augusta) a Braga (Bracara Augusta). Em 1694 o castelo acabou por sofrer um grave incêndio e em 1758 há registos de que se encontrava arruinado. Poucos anos depois, morria o último senhor de Belmonte, Caetano Francisco Cabral.

Situado no limite da vila, o Castelo de Belmonte ainda hoje não está integrado na malha urbana, embora não sejam precisos demasiados passos para chegar até ao centro histórico. Antes de nos dirigirmos para lá, porém, espreitamos as capelas de Santo António e do Calvário e a Igreja de Santiago, construções em granito como muito do edificado de Belmonte.

A Igreja de Santiago tem colada a ela a Capela / Panteão dos Cabrais. Provavelmente de 1240, a igreja foi construída originalmente em estilo românico, tendo-lhe sido acrescentados apontamentos góticos e maneiristas. Já a Capela dos Cabrais é posterior, de 1433, mandada construir pelos pais de Pedro Álvares Cabral, cujos restos mortais, aliás, estão aqui depositados num túmulo, junto a outros elementos da família. Acabámos por não visitar o interior deste conjunto, aquele que seduziu José Saramago, nomeadamente a pietá lá existente, ao lado de algumas pinturas a fresco. No pequeno adro encontramos a torre sineira, isolada, com acesso por um lanço de escadas exteriores e construída já em 1860.

Daqui seguimos pela Rua Direita rumo ao centro histórico da vila, aquele que se desenvolveu após o século 13. Passamos por um largo onde a estátua de Zeca Afonso nos chama a atenção, e ficamos a saber que o cantautor aqui viveu parte da sua vida. Agora, com as melodias das suas intemporais canções na cabeça e nos lábios, prosseguimos por umas ruas com os céus enfeitados, qual coberta protectora. Várias ruelas irradiam da Rua Direita, mas optámos por nos encaminhar para o largo onde está o pelourinho e a antiga casa da câmara. O pelourinho é uma reconstrução do original do final do século passado, mas a casa da câmara ainda mantém a sua estrutura primitiva do século 15, embora com alterações posteriores, e tem uma torre do relógio com sino.

Junto a este largo é impossível não reparar na enorme Menorá, o candelabro de nove braços usado na celebração da Hanukkah (ou Festa das Luzes), que assinala a libertação e purificação do Templo de Jerusalém.

Já se disse, a presença judaica de Belmonte é significativa. Orgulha-se do seu passado e é hoje a terceira maior comunidade judaica de Portugal, apenas atrás de Lisboa e do Porto. Numa rua nas traseiras da Praça da República fica o Museu Judaico. Nele é efectuada uma breve apresentação do judaísmo e da origem do povo hebreu. Atem-se nas festas religiosas e nos momentos históricos de perseguição dos judeus que fez com que muitos abandonassem a terra prometida para lugares distantes, incluindo a Península Ibérica – dando origem aos sefarditas (judeus de ascendência iberica). Não se sabe ao certo quando começou a presença dos judeus na Península Ibérica, provavelmente entre os séculos 4 a 1 a.C. Mas sabe-se que a Beira, território de passagem próximo de Castela e Leão, recebeu as primeiras migrações de judeus no século 13, em especial a Guarda, Trancoso, Covilhã e Castelo Branco, e em Belmonte ter-se-ão estabelecido no século 16, após a expulsão dos judeus de Espanha pelos Reis Católicos em 1492 – as origens da comunidade judaica em Belmonte permanecem um enigma dada a discrepância entre tradição e escritos recentes e a documentação histórica. Com a Inquisição em Portugal, novas perseguições. Todavia, os cristãos novos (cristãos apenas na aparência) de Belmonte, como em outros lugares, mantiveram muitas das suas tradições judaicas; por exemplo, procuravam respeitar o sábado limpando casa em outros dias. Apenas com o século 20 a comunidade tornou-se visível, mas o fim do medo só veio a partir da década de 1980, após o 25 de Abril. Hoje praticam a sua religião livremente e é frequente ver nas ruas os seus seguidores com o quipá, o chapéu tradicional. E pelas ruas, também, existem placas instaladas em alguns edifícios que vão contado as histórias de habitantes que aqui viveram há séculos e que acabaram perseguidos, como a de Macabeia, imigrada para o Brasil e devolvida para Portugal muitos anos depois (Casa Ana Rodrigues) ou a Casa Luísa Antónia, denunciada em 1580 por práticas judaicas, ou a Casa Dr. Sabá, médico espanhol fugido para Portugal e que aqui viveu entre 1440 e 1508. A Sinagoga Bet Eliahu (Casa de Elias), inaugurada em 1997, é o espaço de culto e reunião da comunidade judaica de Belmonte.

No outro lado da vila fica o actual edifício da câmara municipal, instalado numa casa abastada oitocentista na rua Pedro Alvares Cabral. No jardim ao seu lado, as Varandas do Zêzere revelam uma bela paisagem da envolvente de Belmonte, ainda mais grandiosa desde o miradouro aqui perto. Ainda no jardim, encontramos desde 2023 uma peça de arte urbana, uma lontra feita de lixo reutilizado, a maior parte plástico. Da autoria de Pedro Leitão, é parte do projecto “Este Zêzere que nos une”, que procura chamar a atenção para a poluição no meio ambiente, havendo ainda outras peças na Covilhã (um lacrau), na Barroca-Fundão (um guarda-rios) e em Manteigas (uma truta).

Também aqui, na rua Pedro Alvares Cabral (com estátua em sua homenagem umas centenas de metros antes, no local antigamente conhecido por Portagem, onde eram realizados os mercados e feiras), fica o Solar dos Cabrais (ou Casa dos Condes), hoje Biblioteca Municipal de Belmonte e Museu dos Descobrimentos. Construída no final do século 15, tem a encimar o seu portão os escudos dos Condes de Belmonte, título criado em 1806. Acabámos por não visitar o museu, optando antes por conhecer o espaço museológico à sua frente, o Ecomuseu do Zêzere, instalado na Tulha dos Cabrais. Edifício quinhentista e seiscentista, era o celeiro da família Cabral, usado com essas funções até meados do século passado.

O Ecomuseu do Zêzere, por sua vez, foi aqui instalado em 2001 e conta a história do rio que passa aos pés de Belmonte, fazendo-nos viajar da nascente até à foz pelos seus 240 kms de percurso, ao longo das suas várias idades: a infância desde os Cântaros na Serra da Estrela (a1900 metros de altitude), a juventude pelos relevos da Estrela e da Gardunha (na vasta e fértil planura da Cova da Beira) e a idade adulta desde Barco (entretendo-se nos seus meandros até chegar finalmente a Constância para se encontrar com o Tejo).

O nosso roteiro pela vila de Belmonte terminou com este passeio museológico pela geologia e rica vida do Zêzere, que corre logo abaixo da Tulha dos Cabrais, deixando espaço para o seu longo vale. Daqui seguimos breve em direcção a Colmeal da Torre, freguesia vizinha com vista para Belmonte, onde está a Torre de Centum Cellas. É coisa única em Portugal (o mais parecido será a Torre de Almofala, em Figueira de Castelo Rodrigo): um edifício rectangular com três pisos deixado pelos romanos, do qual falta saber ainda muito. Sobre um afloramento rochoso, provavelmente era parte de uma villa romana, desconhecendo-se a sua função. Templo? Prisão? Praetorium de um acampamento romano? Estalagem para descanso dos viajantes? Edifício residencial da villa?

Mais certo é o facto de a torre ser o núcleo mais antigo e central de um conjunto de estruturas que se desenvolveram em torno de um enorme pátio. Construída em meados do século I, faria parte da casa de Lucius Caecilius, um rico comerciante romano que se dedicava ao comércio de estanho, minério abundante na zona. Aliás, foi a exploração dos recursos minérios que trouxe até cá os romanos. O edifício sofreu alterações ao longo dos tempos e após a ocupação romana o espaço continuou a ser ocupado.

Se é estranho admirar esta estrutura com 12 metros de altura, com janelas rasgadas em cada um dos seus pisos, no seu interior aberto ao céu é fácil deixar a imaginação fluir, com esta poderosa ruína cheia de ambiente a tomar-nos os sentidos.

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