Bulgária

A Bulgária não será um destino muito óbvio, mas para quem deseja passear longe de multidões e conhecer a cultura de um país europeu que vai para além do mais habitual no nosso continente, então este país balcânico é uma boa aposta. Terra de montanhas e de uma faixa de Mar Negro, minaretes lado a lado com igrejas, é lugar de uma ruralidade de que já vamos vendo muito pouco na Europa. E nela encontramos ainda diversos vestígios de um passado em cujo território se foram sucedendo os trácios, os romanos, os otomanos e, claro, os búlgaros, sem esquecer uma forte presença arquitectónica dos tempos do comunismo.

Lagos de Rila

As terras hoje ocupadas pela Bulgária foram das primeiras da Europa a testemunhar alguma forma de organização social. Aliás, na gruta Basho Kiro, junto ao mosteiro de Dryanovo, por onde andámos em busca de umas cascatas, foram encontrados os mais antigos vestígios de Homo sapien, com mais de 45 mil anos, época de transição do Paleolítico Médio para o Superior, quando os humanos modernos chegaram à Europa e substituíram os neandertais.

mosteiro de Dryanovo

Mais tarde, no final do 3° milénio, parte do território foi ocupado pelos trácios, um povo indo-europeu que vivia numa sociedade tribal rudimentarmente organizada. Trabalhavam o ferro e eram reconhecidos cavaleiros – Spartacus era trácio -, sendo que a música era também uma parte importante das suas vidas – Orfeu era trácio. Mas não tinham grandes preocupações de união política e cooperação e Heródoto chegou a escrever que se os trácios se unissem e subordinassem a um só líder político seriam imbatíveis. Acreditavam na imortalidade, não tendo, por isso, medo da morte. Os túmulos trácios chegaram até aos dias de hoje e podem ser visitados no hoje denominado Vale dos Reis Trácios, ao redor de Shipka e Kazanlak. Nesta última povoação visitámos o túmulo de um rei trácio do século 3 a.C., descoberto acidentalmente em 1944 por soldados que cavavam fossos para protecção de raids aéreos, e que possui um corredor e uma câmara mortuária redonda decorada com pinturas de cenas de batalha. Os defuntos faziam-se acompanhar por objectos para o além, à semelhança do que acontecia com os antigos egípcios, e também este exemplar de arte trácia é património mundial da Unesco – embora o que se visite seja uma exacta réplica do original situado mesmo ao lado.

Túmulo trácio de Kazanlak

E Kazanlak, juntamente com outras povoações próximas, é ainda conhecida por estar no chamado Vale das Rosas. Aqui é fabricada 60% da produção mundial de óleo de rosa, e este é um dos produtos mais distintos da Bulgária. Já a Odisseia, de Homero, escrito na Grécia Antiga, falava nas rosas e no óleo de rosa, sendo esta a imagem de inocência e beleza. O seu cultivo vem dos fenícios, os gregos usavam métodos dos egípcios para obterem produtos da rosa e os árabes criaram uma florescente produção de rosas. A água de rosa era muito procurada e o mercado da China, Índia, Pérsia e Bizâncio seus destinos e, depois das cruzadas, também a Europa. Embora se desconheça quando e por quem foi trazida para a Bulgária, certo é que a produção de rosas é tradição antiga e parte importante desde há muito na economia búlgara, com aplicação do óleo de rosa nos perfumes de luxo, cosméticos e até na produção do tabaco. Maio e Junho são os meses mais indicados para ver o vale em flor, enquanto que em Julho – mês da nossa visita – já só são vistas rosas no jardim de Kazanlak. Em compensação, sao muitos os girassóis à beira das estradas.

Voltando à historia e à Trácia, há que dizer que esta antiga região corresponde hoje, grosso modo, ao nordeste da Grécia, Bulgária e Turquia europeia. Na época, os gregos estavam mais preocupados com a ocupação junto à costa, enquanto que os trácios viviam no interior, sendo vistos pelos vizinhos gregos como bárbaros na verdadeira acepção da palavra que lhe damos hoje e eram usados como mercenários e escravos. Ameaçados e invadidos por gregos, persas e macedónios, acabaram por aceitar o domínio destes últimos, e os seus elementos fizeram parte do exército que levou Alexandre, o Grande às portas da Índia. Seguiram-se-lhes os celtas e, depois, os romanos, que tomaram os trácios para gladiadores (e voltamos a pensar em Spartacus), domaram-nos e trouxeram a civilização às suas terras. No século 1 toda a península dos Bálcãs a sul do Danúbio estava sob o seu domínio e com os romanos a região viveu tempos de prosperidade, unidade e estabilidade nunca antes vivida (e até agora). A presença romana em terras búlgaras é poderosa e surpreendente; o seu poder declinou no século 4, mas persistem os testemunhos do seu tempo. Serdica (Sofia) e Plovdiv são disso exemplo.

Antigo Teatro de Plovdiv
Mosaicos da Basílica do Bispo, Plovdiv

Seguiram-se invasões dos alanos, godos e hunos. No século 5 os eslavos, sedentários, estabeleceram-se neste território e no século 7 vieram outras tribos eslavas, os proto-búlgaros, originários das terras entre o Volga e os Urais com vários elementos étnicos. Estes estabeleceram a sua capital em Pliska, perto da Shumen de hoje, e assim nasceu o Primeiro Império Búlgaro (681-1018). O nome “bulgar” deriva de um verbo turco que significa, precisamente, mistura. As mudanças do território do novo estado foram muitas, com sucessivos alargamentos e contracções, e atingiu a sua máxima dimensão em meados do século 10, quando chegou a incluir a Transilvânia (hoje Roménia) e Ohrid (hoje Macedónia do Norte) e parte do sul da Albânia – foi aqui, durante o primeiro império búlgaro, que a Bulgária teve a maior dimensão do seu território; até se esvaziar por completo com a integração no império bizantino. Antes, porém, adoptou o cristianismo, uma vez que na época quase todo o mundo civilizado era cristão, e se a Bulgária, até então pagã, queria ser aceite como estado teria que fazer parte da sua comunidade religiosa e cultural, pelo que em 865 o cristianismo tornou-se religião do estado. O Mosteiro de Rila, uma das maiores imagens da Bulgária e momento alto da viagem pelo país, está situado nas montanhas de mesmo nome, escolhidas pelo asceta Ioan Rilski (João de Rila), uma das maiores personalidade búlgaras, para viver um caminho espiritual em total isolamento. Este mosteiro belíssimo foi, durante o longo jugo otomano, um lugar de resistência e de fé cristã, assim se mantendo até hoje.

Mosteiro de Rila

Como curiosidade, refira-se que a Bulgária foi o primeiro estado a adoptar o alfabeto cirílico – criado pelos missionários cristãos São Cirilo e São Metódio -, no final do século 9, uma língua própria e não o grego ou o latino e uma forma de não ser absorvida pelos gregos, a sul, e / ou pelos francos, a ocidente, permitindo-lhe também desenvolver uma literatura a que pudesse chamar sua.

Fortaleza Asen, montanhas Rhodope
Fortaleza Tsarevets, Veliko Tărnovo

Integrada no império bizantino em 1018, viria no entanto a re-emergir em 1185 com a criação do Segundo Império Búlgaro, com capital em Veliko Tărnovo, onde a dinastia Asen comandava os destinos do estado desde a Fortaleza Tsarevets, sítio que resiste no alto de uma colina sobre os contornos do rio Yantra. Mas em 1393 decairia novamente, para ser integrado no império otomano. Por cinco séculos. Houve estabilidade, segurança e prosperidade, embora numa forte teocracia, com os não muçulmanos a sofrerem discriminação e a serem tratados como cidadãos de segunda. O fim do século 17 e o século 18 trouxeram o declínio do império otomano, com a deterioração da coesão interna, o que levou ao germinar do revivalismo nacional na Bulgária.

mehana típica

Este revivalismo assentava no reconhecimento de elementos identitários e culturais próprios que levaram ao emergir do orgulho nacional. Almejava a liberação. Paisiy de Hilendar, padre búlgaro do século 18, defendia que dado o seu glorioso passado os búlgaros não se deviam sentir inferiores aos gregos, pelo contrário; “De todos os povos eslavos, o mais glorioso são os búlgaros; foram os primeiros a autodenominarem-se tsars, os primeiros a terem um patriarca, os primeiros a adoptarem a fé cristã, e aqueles que conquistaram a maior porção de território. De todos os povos eslavos eles foram os mais fortes e honrados e os primeiros santos eslavos lançaram o seu brilho entre o povo búlgaro e pela língua búlgara”. A surpreendente arquitectura vernacular de Plovdiv e Koprivshtitsa é o resultado do crescimento económico do século 19, onde contaram muito as influências trazidas do centro da Europa.

Koprivshtitsa

1878 foi o ano da criação da Bulgária como actual estado nação. Mas há um aspecto curioso no meio da fundação do novo país. Os russos, que pretendiam um aliado eslavo e ortodoxo após a queda dos otomanos, tendo ajudado os búlgaros a verem-se livre do jugo turco que se manteve por cinco séculos, escolheram o monarca que representaria os primeiros anos do novo país. A Constituição de Tărnovo, assinada no ano seguinte, deu-lhe forma e Sofia foi escolhida como capital – embora pequena, tinha a vantagem de estar situada no cruzamento das rotas dos Bálcãs e oferecia fácil acesso às cobiçadas e perdidas terras da Macedónia e vale de Morava. Porém, um terço da população era de origem étnica turca e quase todos muçulmanos. Houve uma enorme pressão sobre eles, diversas mesquitas foram destruídas e às restantes foi dado um uso diferente (com poucas excepções) e muitos acabaram por emigrar. Ou seja, a liberação trouxe não apenas uma grande mudança económica e social, mas também étnica. Curiosamente, no sul do país veem-se amiúde minaretes e mulheres de véu. São os designados pomak, os búlgaros cristãos que se converteram ao islão durante o período de domínio otomano. Numa terriola de nome Yundola, entre as montanhas de Rila e as Rhodope, passando por aldeias que quase nos fizeram parecer estarmos na nossa Beira, num mercado de rua estavam a ser vendidos produtos locais por mulheres em vestes tradicionais – lenço na cabeça e vestidos azuis -, provavelmente pomaks.

Mercado, Yundola

Mas a liberação da Bulgária não trouxe uma definição inequívoca do seu território. A independência da Macedónia e as sucessivas guerras dos Balcãs e as duas Grandes Guerras Mundiais trouxeram muitas mudanças territoriais. E nesta visita à Bulgária aprendemos que nestas duas guerras o país conseguiu estar repetidamente do lado dos perdedores. Mais exactamente, na segunda GGM tentou manter a neutralidade, mas foi forçado a alinhar com os nazis, embora no final tenha mudado a sua aliança e permitido que o Exército Vermelho dos russos entrasse no país. Em resultado, o pós-guerra trouxe o alinhamento com a União Soviética e o comunismo, sendo membro do chamado Bloco de Leste. Desse tempo temos um dos edifícios mais incríveis que já tivemos oportunidade de conhecer, o Buzludzha. No Passo de Shipka, nas montanhas da Stara Planina (a Cordilheira dos Bálcãs), no alto de uma colina a 1441 metros de altitude vai-se observando desde longe uma espécie de ovni aí instalado. Inaugurado em 1981 para servir de assembleia dos comunistas (e com fundos do povo para o “movimento socialista”), este enorme edifício de forma redonda em betão e vidro teve nos seus tempos áureos a estrela vermelha em destaque no topo. Abandonado há décadas, e com o interior vedado aos olhares curiosos, é ainda assim um lugar cheio de ambiente, um portento de arquitectura num cenário natural que impressiona.

A época comunista perdurou desde 1944 a 1989, data em que Todor Jivkov, no governo desde 1954 e um dos mais leais aliados dos soviéticos, viu a perestroika e a queda do Muro de Berlim por fim ao seu governo e ao comunismo na Bulgária – o primeiro entre os países da esfera soviética. O período que se seguiu não foi um mar de rosas e as dificuldades foram mais do que muitas. Búlgaros houve que nos disseram que o problema terá sido não ter havido uma ruptura com o passado com sangue, à semelhança do que se verificou na vizinha Roménia com o homólogo Ceausescu. Mas pacifistas como somos, e embora não especialistas em história da Bulgária, cremos que a sua implantação geográfica e topografia acidentada não dará para ser dona de uma economia pujante. E nisso olhamos para este país balcânico um pouco como para o nosso. O certo é que as mudanças foram muitas e a Bulgária entrou na Nato em 2004 e na União Europeia em 2007, pelo que esperança há que possa desenvolver-se mais à boleia destas instituições. Do que pudemos observar da nossa visita no Verão de 2023, muito caminho há ainda para percorrer para entrar no “clube dos grandes”. As auto-estradas são escassas e as horas de ligação entre cidades demasiadas; em contrapartida, sobra tempo para vermos desfilar a sua natureza pela janela do carro. A ruralidade é evidente, com sucessivos rolinhos de palha empilhados nos terrenos, e frequentes vendedores à beira da estrada, em especial de mel.

As suas gentes são simpáticas, ainda que muitas se mostrem algo introvertidas a um primeiro contacto. Não estarão muito acostumadas a um turismo externo. E talvez também por isso o serviço – sobretudo visível nos hotéis e restaurantes – nem sempre se apresenta profissionalmente imaculado. Inesquecível perceber que num hotel de 4 estrelas em Rila é a mesmíssima recepcionista que, mais tarde, servirá as refeições e, na manhã de saída do hotel, é a empregada de limpeza que faz as vezes da recepcionista. Assim se percebe melhor o porquê de termos ouvido de mais do que um búlgaro que prefere as praias da Grécia do que as do seu país, no Mar Negro, porque nelas encontra um melhor serviço.

Mosteiro Sokolski

Mais inesquecível ainda foi o primeiro contacto – e, logo, a primeira impressão – com Sofia e a Bulgária, o mesmo é dizer com os búlgaros. Entrámos na capital pelo seu lado ocidental, com um urbanismo residencial marcadamente soviético e muito deixado aos elementos, isto é, datado, e já na estação de autocarros / comboios escolhemos um táxi por o motorista nos parecer local, isto é, autêntico. Sabemos agora, demasiado autêntico. A bagageira estava cheia de tralha, típica de quem anda com a casa às costas, e parecia ser incapaz de receber mais malas, tanto assim que uma delas foi nos assentos traseiros; a minha tentativa de colocar o cinto de segurança no lugar do pendura foi tratada como desnecessária; seguimos viagem pelas ruas da cidade a ouvir em altos berros o “The Best” da recentemente malograda Tina Turner, ao mesmo tempo que me era perguntado num inglês macarrónico: smoke? (no) drink? (no) uauuu!; para completar, mesmo antes do nosso destino, uns polícias numa das ruas mereceram o seguinte comentário do nosso búlgaro “police? money! bahh!”. Estas as nossas boas-vindas à Bulgária, o que aceitámos com gosto e com um enorme sorriso no rosto.

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