O Aqueduto das Águas Livres, fora de Lisboa e seus subsidiários

O Aqueduto das Águas Livres pode ter os seus momentos mais emblemáticos na cidade de Lisboa, mas nem por isso é uma obra exclusivamente sua. O troço principal corre ao longo de 14 kms, entre a Mãe de Água Velha de Belas, em Sintra, e a Mãe de Água das Amoreiras, em Lisboa, e 8 desses kms são no concelho da Amadora. No entanto, há ainda que contar com os cerca de 58 kms da totalidade da rede, composta por vários aquedutos subsidiários e galerias, partilhada pelos concelhos de Sintra, Odivelas e Amadora.

A finalidade da construção do Aqueduto das Águas Livres, no século 18, foi a de prover de água a capital, lugar cada vez mais habitado e com escassez desse bem. Pelo contrário, nos arredores de Lisboa eram muitas as nascentes de água e recaiu em algumas delas a escolha para abastecê-la. De Belas, concelho de Sintra, lê-se no volume dedicado a Lisboa e Arredores do Guia de Portugal, editado em 1924, ser esta uma “vilazinha aprazível e de águas correntes nas abas da serra da Carregueira, pequena estação de vilegiatura cujas quintas históricas, alfombradas de pinheirais, lhe dão o perfume da tradição e as sombras espessas. Por toda a parte se surpreende o fio das fontes nas veredas silenciosas que, entre as árvores centenárias, levam a alturas dominantes, com panoramas de uma sóbria e plácida grandeza.” Uma destas quintas era conhecida como a Quinta das Águas Livres, lugar de nascentes e onde passa a ribeira de Carenque.

Perto, no vale da Ribeira de Carenque / vale de Belas existia há muito a Antiga Barragem Romana, que já aproveitava as ditas nascentes para alimentar o aqueduto romano da Amadora que, por sua vez, transportava as águas para Lisboa, a então Olissipo. Construída no século 3, desconhece-se a data do seu abandono. Mas sabe-se que em 1571 Francisco d´Holanda, arquitecto real, sugeriu ao rei D. Sebastião que o aqueduto romano fosse reaproveitado para trazer a água a Lisboa. Dois séculos depois, a construção do Aqueduto das Águas Livres destruiu parte da barragem romana, que não foi considerada, e já no século 20 a construção da estrada de Caneças – Belas, fez o resto, destruindo e soterrando mais da muralha. Hoje apenas subiste uma ruína composta pela sua parte central com cerca de 15,5 metros de comprimento, 8 metros de altura e 7 metros de maior espessura. Acredita-se que originalmente a Barragem Romana de Belas se estendia pela agora estrada e iria até ao monte, onde estaria a muralha, indo também para o outro lado do vale, e armazenaria cerca de 125 m3 cúbicos de água. Não é fácil perceber tudo isto, não só porque já pouco resta, mas também pela vegetação que toma o lugar, ainda eminentemente rural. Mas, apesar de não estar devidamente cuidado, permanece um vale de uma beleza ímpar.

Vale de Belas
Mãe de Água Velha
Mãe de Água Nova

E foi neste vale de Belas que se decidiu implantar duas das três mães de água principais, peças indispensáveis ao Aqueduto das Águas Livres cujo troço principal, como se disse, tem aqui o seu início rumo à Mãe de Água das Amoreiras. As duas mães de água da nascente são a Mãe de Água Velha e a Mãe de Água Nova, ambas no limite do concelho de Sintra e Odivelas, respectivamente, cada uma de um lado da ribeira de Carenque. A Mãe de Água Nova está mesmo junto à estrada nacional e é mais imponente do que a sua vizinha de frente, sendo ambas de inspiração barroca com cobertura / clarabóia octogonal em forma de zimbório e encimadas por lanternins com pináculos. No interior estão pias circulares, que não conhecemos. Dito isto, de referir que a arquitectura do Aqueduto não se mostra uniforme, tendo sido usadas fora da cidade estruturas desprovidas de decoração ou de decoração menos cuidada do que dentro da cidade, sendo a Mãe de Água Nova uma das raras excepções.

Estrada das Águas Livres
Arco em Carenque
Arco na Gargantada
Gargantada

Este troço principal do Aqueduto das Águas Livres segue, então, no seu caminho final até às Amoreiras, Estrada das Águas Livres afora. Aqui o canal está visível e conduz a água a certa altura, por vezes até a uma altura considerável, aparecendo amiúde alguns arcos e clarabóias, nomeadamente em Carenque e na Gargantada, lugares que apesar dos muitos prédios preservam ainda hoje um carácter rural – é possível admirar-se uns cavalos sobre o verde por onde passa a descoberto um longo troço do Aqueduto.

Igreja de Nossa Senhora da Lapa, Falagueira
Chafariz da Porcalhota

Já na Amadora, na freguesia da Mina, desaparece “comido” pela Avenida General Humberto Delgado, já sem os respiradouros, e volta a manifestar-se de forma curiosa na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, na Falagueira, com um respiradouro do aqueduto como companheiro, para onde converge também o Aqueduto das Galegas (com uma extensão de 1427 metros, é um dos maiores aquedutos subsidiários). Aqui fica ainda o antigo chafariz da Porcalhota.

Damaia

Mais adiante, junto ao Parque da BD Turma da Mónica, na Rua das Indústrias, está bem visível um troço que segue à superfície e atravessa a Damaia com a sua arcaria, sendo este um dos troços mais monumentais do Aqueduto na Amadora – são 19 arcos, o maior com 18 metros de altura, e diversos respiradouros.

Buraca

Depois disso entra, por fim, em Lisboa pela Buraca / Monsanto. Frente ao restaurante David da Buraca e adossado ao troço do Aqueduto está o Chafariz da Buraca, setecentista, em estilo barroco e com brasão com as armas de D. José.

Caneças
Caneças

Mas há mais troços, construídos posteriormente ao aqueduto principal, após 1764, divindindo-se e estendendo-se em aquedutos subsidiários de transporte de água desde as dezenas de nascentes, em número aproximado de 60, que vão alimentar o Aqueduto das Águas Livres. Ou seja, são todos eles parte do complexo sistema do Aqueduto das Águas Livres e, muitas das vezes, com ele confundidos. Por exemplo, a norte do vale de Belas estão as povoações de Dona Maria, Olival Santíssimo e Caneças.

Fonte dos Passarinhos
Fonte dos Passarinhos
Fonte das Fontainhas

Caneças, no concelho de Odivelas (anteriormente Loures), que o mesmo Guia de Portugal dizia ser uma “pequena povoação sem nada de especialmente pitoresco, mas de bons ares e de água” e que “as águas têm grande consumo na capital, para onde são exportadas em garrafões.” Assim era. De Caneças vinham muitos dos aguadeiros que transportavam até Lisboa cântaros de barro com água da melhor qualidade vinda de uma das fontes da povoação (estão classificadas como património de interesse municipal 5 delas, sendo a Fonte dos Passarinhos deliciosamente decorada com embrechados e a Fonte das Fontainhas acompanhada de diversos painéis de azulejo que contam a história da água e suas gentes), uma vez que a água do Aqueduto das Águas Livres não chegava para tudo e todos.

Fonte das Fontainhas

De Dona Maria lembro que há anos fui até lá numa anterior vida profissional, e pude testemunhar no quintal de uma casa um respiradouro do aqueduto donde irradiava uma couve do seu revestimento em alvenaria. Ele há acções incríveis da natureza sobre jóias da arquitectura portuguesa.

Olival Santíssimo

Há uma série de nomes que confundem quem não esteja habituado a andar por estas paragens (nosso caso) e que identificam diferentes troços / ramais do aqueduto, extensões do troço principal e parte de uma lata rede subsidiária. É caso do aqueduto do Olival do Santíssimo (também conhecido por aqueduto do Caneiro), que tem início pouco a norte e a montante das Mães de Água de Belas e envolve os ramais dos aquedutos da Quintã, do Casal Bretão, do Vale de Moura, de Dona Maria, do Salgueiro, dos Carvalheiros e da Câmara, entre certamente outros. Foram desativados na década de 1970, em consequência quer da diminuição dos caudais das suas nascentes quer da qualidade das águas. Dos mencionados aquedutos, quase sempre enterrados, veem-se algumas clarabóias e respiradouros por entre um ambiente absolutamente rural quebrado por pitadas de urbanizações empoleiradas umas nas outras ou nos singelos montes. Na zona do Olival Santíssimo fica a nascente a mais alta, a 178 metros de cota, tendo de vencer um desnível de 84 metros até chegar a Lisboa.

Casal Bretão
Vale de Moura

A viagem pela EN 250 / Estrada das Águas Livres desde o Olival Santíssimo até ao vale de Belas, onde está a Antiga Barragem Romana, acompanhando a Ribeira de Carenque, é muito bonita, cheia de estruturas do aqueduto.

Parque Aventura – Falagueira
Parque Aventura – Ribeira da Falagueira
Núcleo Museológico do Casal da Falagueira
Núcleo Museológico do Casal da Falagueira

Para além destas extensões do aqueduto que vão dar à Amadora, até ela vai também um outro ramal para além do principal, o Aqueduto de São Brás. Perto da Ribeira da Falagueira, foi construído ao mesmo tempo do que o aqueduto principal e capta a água de várias nascentes, sendo a de maior caudal a de São Brás, que deu nome a este aqueduto. É um dos maiores aquedutos subsidiários, com 805 metros de comprimento, e os seus troços são subterrâneos, embora com estruturas visíveis no Parque Aventura, onde pode ser também visitado o Núcleo Museológico do Casal da Falagueira (sede do Museu Municipal de Arqueologia, com sala dedicada aos aquedutos, e instalado no Casal da Falagueira de Cima, um casal quinhentista que possuía azenha e terá pertencido algures no tempo à Ordem de Malta ou dos Cavaleiros Hospitalários). Este Aqueduto de São Brás entronca no principal, mas também no Aqueduto da Gargantada.

Amadora – Aqueduto da Gargantada

O Aqueduto da Gargantada foi construído entre 1790 e 1794 por ordem do príncipe D. João, que haveria de tornar-se rei D. João VI. A ideia era levar água da nascente do sítio da Gargantada, em Carenque, até ao Terreiro do Paço de Queluz, para consumo das cavalariças reais. Corre quase sempre em troços subterrâneos, mas vem à superfície algumas vezes. À entrada da Amadora, junto à Ponte de Carenque, na Venteira, tem uma arcaria composta por 14 arcos de volta perfeita à mesma altura (e 1 enterrado, sob o qual corre a ribeira de Carenque) e uma clarabóia. Tal como o troço do Aqueduto das Águas Livres, vem desde Carenque, mas diverge dele até ao Palácio Nacional de Queluz, na época terreiro real. É fácil confundi-los, mas o da Gargantada é mais rústico do que o seu companheiro das Águas Livres, e impõe-se na paisagem agora urbana, em especial com a solução da criação de ângulos.

Queluz – Arcaria na Rua Carlos Seixas
Queluz – Arcaria sobre Rio Jamor
Chafariz no Largo da Ponte Pedrinha
Queluz – Arcaria no Largo da Ponte Pedrinha
Queluz – Chafariz da Carranca

Vai seguindo o seu caminho de forma subterrânea em direcção a Queluz e, junto ao Mercado e no Largo da Ponte Pedrinha, volta a aparecer e tem novo momento alto, desta vez com 33 arcos de volta perfeita rebocados e pintados de branco, onde se veem novamente arcadas em flanco sobre o rio Jamor. Depois de cortado por uma fiada de prédios, pouco mais adiante há nova arcaria na Rua Carlos Seixas, nas traseiras da Rua Dr. Manuel Arriaga, 7 arcos de volta perfeita absorvidos por muros de separação de quintais dos prédios envolventes. Daqui, volta ao seu percurso subterrâneo até chegar ao Palácio Nacional de Queluz, onde para além das cavalariças reais alimentava também o desaparecido Chafariz das Quatro Bicas e o ainda actual Chafariz da Carranca, cuja bica permanece em estilo barroco.

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  1. É impressionante como há tantos pedaços de História que passam despercebidos em Lisboa!

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