Solares da Ribeira Lima – Paço de Vitorino, Casa das Torres, Casa da Carcaveira e Solar de Sá

Continuando a visita aos solares nas margens do rio Lima, no âmbito da iniciativa levada a cabo, em Setembro de 2024, pelo projecto Vinculum “Vínculos com (a) história: à descoberta das casas históricas da Ribeira Lima”, mais beleza se nos apresentou.

Paço de Vitorino

O Paço de Vitorino, em Vitorino das Donas, está suficientemente afastado do núcleo central da povoação para lhe conferir um ambiente isolado. Na margem esquerda do Lima, quase à sua beira, a primeira imagem que obtemos do conjunto palaciano é a da sua impressionante capela barroca. Dá ares da Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, e foi, com efeito, encomendada para parecer o mais possível com esta. O altar, em carvalho português pintado, foi restaurado em 2016.

Paço de Vitorino – capela
Paço de Vitorino – capela

À entrada do Paço, veem-se as armas da família fundadora, provavelmente aquela que tem a história mais curiosa e exótica de todos os solares do Lima. António Ramos, natural de Viana, possuía origens algo obscuras e não seria nobre, sendo certo que enquanto mercenário serviu Castela e juntou-se ao conquistador Francisco Pizarro na tomada de Cuzco, no Peru, em 1533. De volta ao Minho, da aventura no Novo Mundo trouxe, para além de uma vasta riqueza que lhe permitiu construir este Paço, a sua mulher, uma princesa inca que seria da família do imperador inca Huayna Capac. Ou seja, Catarina Kapa Yupange foi a primeira morgada do Paço de Vitorino, tendo-o administrado por morte do marido e feito sepultar-se junto a ele numa ermida ainda existente nos jardins (em ruína, estava em restauro por ocasião da nossa visita). O Paço de Vitorino é um dos melhores testemunhos de uma época do Minho que permitiu a prosperidade de alguns dos seus naturais. O espírito de aventura levou muitos a buscarem riqueza na América do Sul, neste caso primeiro no Peru e mais tarde no Brasil, mas eram igualmente comuns ligações comerciais com a Flandres, como aconteceu nesta Casa desde o seu primeiro proprietário. Uma das suas descendentes acabou por casar com um mercador desta região do norte da Europa, e é por isso que nas armas da família consta também esta casa flamenga, uma de entre as quatro que a compõem, prova da estratégia das ligações entre famílias poderosas como forma de garantir continuidade e prosperidade.

Paço de Vitorino
Paço de Vitorino – terreiro
Paço de Vitorino – pátio interior

Passado o portão do Paço (ladeado pela sua capela, com porta aberta à povoação, como é usual nestes solares), uma largo terreiro deixa-nos diante uma maravilhosa fachada, obra já do século 18, após a reinvenção da família com o Brasil. Em forma de U, ao centro está a residência, onde uma escadaria dupla nos transporta para o piso nobre, em arcadas e com o topo com merlões e ameias, dando-lhe um ar militar. Os corpos nas alas destinavam-se aos serviços de apoio ao Paço, com a curiosidade de os portões em arco respeitarem a passagens e os portões verticais a entradas.

Paço de Vitorino
Paço de Vitorino – interior
Paço de Vitorino – vista

A casa de família foi convertida em unidade hoteleira (aliás, este foi o único solar que visitámos cuja visita não foi acompanhada por um elemento da família, antes do hotel), forma encontrada para manter a propriedade. Com efeito, no antigamente estas casas eram mantidas pelo campo, mas esse, hoje, só dá despesa – as queixas relativas à dificuldade de manutenção destes solares do Lima foram transversais e unânimes. No caso do Paço de Vitorino, com cerca de 20 hectares, a parte agrícola está hoje dedicada à pecuária, nomeadamente à vaca barrosã, não possuindo já vinha.

Paço de Vitorino – interior
Paço de Vitorino – interior

O interior da residência, agora a afecto a hotel, é composto por um rico recheio, com tapeçarias, marfins africanos, caixas do Japão – sabemo-lo graças ao inventário e registos destas famílias (com a curiosidade de, numa das salas de estar, ver-se as origens da primeira casa num espaço musealizado abaixo solo; e de o lagar ter sido transformado em biblioteca). Acontece que, com a Guerra Civil que opôs absolutistas a liberais (o Paço foi quartel general miguelista), e também com as Invasões Francesas, ambas no século 19, muito do seu património foi pilhado e destruído. De tal forma que, após o incêndio que resultou das revoluções liberais, acabou conhecida como a “Casa Queimada”.

Paço de Vitorino – jardim
Paço de Vitorino – jardim
Paço de Vitorino – jardim

O jardim é outro dos pontos altos do Paço de Vitorino. Do século 18 e de características barrocas, o seu traçado costuma ser atribuído a Nicolau Nasoni. Possui canteiros, bancos, dois tanques decorados e estatuária vária, de figuras mitológicas e dos continentes, agora dominando as camélias. E o elemento água é aqui utilizado não apenas como ornamentação, mas também como parte de um vasto sistema hidráulico, que servia a Casa em todos os seus domínios. Há ainda um pomar e uma mata murada, com oliveiras, laranjeiras e castanheiros.

Casa das Torres

A Casa das Torres, na Facha, também na margem esquerda do Lima, está mais no interior. Situada numa encosta sobranceira ao vale do Lima, com vistas privilegiadas para ele e para a Serra de Arga, acedemos ao solar pela sua parte traseira, cujo muro dá para a estrada – daqui, passa discreto.

Casa das Torres

É outro dos grandes testemunhos do poder e riqueza que alcançaram os chamados “brasileiros” ou “torna-viagem” minhotos. André Pereira da Silva regressou à sua aldeia natal, em 1750, e investiu parte da riqueza conquistada no Brasil numa imponente obra arquitectónica, onde cada detalhe da sua Casa foi construído para impressionar – o mestre responsável pela obra havia trabalhado na Falperra, sob orientação do grande André Soares, a grande figura do barroco regional do Minho. Veem-se, ainda, influências de Nasoni. Acontece que, afinal, a fortuna não era suficiente, e o proprietário foi forçado a contrair dívidas e voltar novamente ao Brasil em busca de novas riquezas, aí perdendo-se o seu rasto. Vendida em hasta pública, em 1770 a Casa foi adquirida por uma família rica de Viana do Castelo, a Rite de Figueiroa, que terminou a obra, permanecendo a propriedade na posse dos seus descendentes. Fomos (muito bem) recebidos por um deles, que com gosto nos mostrou a Casa e contou pormenores da sua história. Por exemplo, a Casa das Torres não mais é dedicada ao turismo de habitação, optando, ao invés, por proporcionar almoços ou lanches a grupos, americanos à cabeça, que valorizam a experiência dos momentos passados em casas históricas enquanto descansam do seu périplo pelos Caminhos de Santiago – pois é, a Casa não fica longe da passagem dos peregrinos.

Casa das Torres
Casa das Torres
Casa das Torres
Casa das Torres

Entrámos na Casa das Torres pela fachada traseira, com escadaria monumental e piso superior nobre alpendrado. Na visita ao interior, feita de divisões grandes, impressionou perceber a enorme dimensão das suas paredes divisórias em granito, com 1,20 largura, óptimas para conservar a temperatura. Outra curiosidade da Casa é constatar que aquilo que pode, à partida, parecer uma só residência, correspondia, na verdade, a duas casas. A parte de cima era a residência, ainda hoje mais apalaçada, e a parte de baixo os apoios agrícolas e adega, agora transformada numa segunda casa, mais rústica, perfeitamente individualizada.

Casa das Torres
Casa das Torres
Casa das Torres
Casa das Torres

Já diante da fachada principal, recolhida da estrada e virada ao Lima e Serra de Arga, a tal das vistas deslumbrantes, sentimos na perfeição todo o poder e qualidade artística deste solar. É acompanhado de um jardim com algumas árvores de fruto e a vinha anda mais para baixo. Mas o mais especial da visita foi, sem pressa dos visitantes nem do visitado, deixar-nos estar aqui num fim de dia de Setembro solar.

Casa da Carcaveira

Depois de espreitarmos o Miradouro de Santo Ovídio, seguramente um dos mais bonitos da região do Vale do Lima, seguimos para a Casa da Carcaveira, agora na margem direita do rio. À semelhança da anterior, também nesta fomos muito bem recebidos, plenos de simpatia por parte dos proprietários. A entrada na propriedade é monumental, com uma alameda de oliveiras centenárias a desempenhar as funções de teatralidade tão caras ao barroco.

Casa da Carcaveira
Casa da Carcaveira

Construída no final do século 18, as origens da Casa da Carcaveira estão, porém, no início do século 16, tendo talvez possuído uma torre apalaçada de que já nada resiste. Desses tempos mais antigos, resta o brasão na fachada lateral da Casa, trazido do Paço do Anquião, em Fornelos, na época propriedade da mesma família. Esta fachada, com escadaria cenográfica, é antecedida por um terreiro, junto ao qual estava o estábulo e cavalariça. Até época relativamente recente, a Casa da Carcaveira estava dividida em três, em resultado de família desavinda. Hoje, já reunida a propriedade num só ramo, os proprietários têm vindo a restaurá-la com empenho. Os salões, ainda algo despidos de mobiliário, revelam, no entanto, a grandeza de outros tempos. Destaque para a cozinha velha, com uma enorme lareira / chaminé. A Casa da Carcaveira está no limite de duas freguesias de Ponte de Lima, mas como a cozinha está implantada na freguesia de Sá, assim a Carcaveira ficou pertença desta freguesia, ou não fosse este considerado o espaço central da Casa.

Casa da Carcaveira
Casa da Carcaveira
Casa da Carcaveira

Inesquecível, porém, a varanda traseira, com uma vista tranquila para a Serra de Arga. Ali perto está a eira e um espigueiro, testemunhos da ruralidade da propriedade, a qual possui ainda terrenos agrícolas e espaços de apoio a essas actividades.

Casa da Carcaveira – capela
Casa da Carcaveira – capela

Outro dos elementos de mais valia da Casa da Carcaveira é a Capela de Nossa Senhora do Loreto, de 1763, que, diz-se, terá servido de inspiração para a Capela de Santo António, situada junto à ponte romana de Ponte de Lima. Em estilo barroco e rococó, tem também acesso pela parte superior da casa, de onde os proprietários podiam, separadamente da populaça, assistir à missa.

Casa da Carcaveira – jardim

E a Casa da Carcaveira possui ainda uns bonitos jardins, lugar ideal para a contemplação da paisagem envolvente. Como curiosidade, após o derrube da antiga muralha medieval de Ponte de Lima, muitos dos seus blocos de pedra vieram à posse do então proprietário da Carcaveira, que os usou para as obras na Casa.

Solar de Sá

Para o final ficou a visita ao Solar de Sá, vizinho do anterior. Neste, fomos guiado por Miguel Aires de Campos, historiador de arte e investigador do projecto Vinculum e também proprietário deste Solar. A sua implantação é auspiciosa, numa mata a fazer lembrar Sintra, quer pela sua exuberante vegetação quer pelos grandes blocos rochosos. É por ela que adentramos no Solar, ultrapassado o portão com pedra de armas, de 1714. Seguindo rodeados dessa vegetação, logo chegamos a uma bonita eira com espigueiros, datados de 1760.

Solar de Sá
Solar de Sá
Solar de Sá

A primeira referência escrita a esta propriedade, porém, data de 1501, quando era habitada por um estrato mais baixo da nobreza minhota, uns aforeiros de um mosteiro de Arcos de Valdevez. Até que no início do século 18 fixou-se na posse dos Araújo de Azevedo, responsáveis pelo edifício actual, com a fachada virada ao Lima, capela e jardins em socalcos. Um destes senhores da casa, António de Araújo de Azevedo (1754-1817), foi o primeiro e único Conde da Barca, importante político, diplomata, botânico, escritor e coleccionador de arte, ministro do Reino de D. João VI e defensor da mudança da corte para o Rio de Janeiro, onde veio a morrer.

Solar de Sá
Solar de Sá
Solar de Sá

Os jardins do Solar de Sá são uma delícia, os mais bonitos das Casas da Ribeira Lima que visitámos, apesar da afirmação do seu proprietário de que constituem um exemplo modesto de um jardim clássico. Pode ser, mas o suficiente para deslumbrar as almas da plebe. São dois os jardins: o jardim velho, do século 18, com tanque e simetria marcada pelos buxos, mas também pelas árvores de fruto que lançavam um odor especial pela casa – é um jardim mais feminino, que junta recato e lazer, sem grande preocupação de paisagem; e um segundo jardim, do século 19, de cariz romântico, onde a naturalidade é manifestada através do lago artificial. As hortênsias, ainda em flor aquando a nossa visita, embelezavam ainda mais o lugar.

Solar de Sá
Solar de Sá – capela
Solar de Sá – capela

Junto à residência, e parte da fachada traseira, está a Capela, das partes mais antiga da quinta, construída cerca de 1729. A sua padroeira é Nossa Senhora do Rosário, mas a imagem que aí vemos é a de Nossa Senhora da Conceição, mais fácil de representar. À semelhança da Casa da Carcaveira, também aqui existe um acesso à parte superior da capela pelo interior da residência.

Solar de Sá

Das que visitámos, as salas do Solar de Sá são das mais bonitas, umas do século 19 e outras do século 20, cheias de ricas peças de mobiliário e decoração trazidas de aquém e além mar, fruto das vivências dos seus proprietários. A biblioteca, um ambiente escuro cheio de livros velhos e caótico, mostra ser vivida pelo seu proprietário historiador e investigador. A um canto, que poderia pensar-se propositadamente escondido (ou talvez não), um retrato de Salazar, talvez demonstrativo do conservadorismo dos seus proprietários, assumidos miguelistas, mas a quem podemos agradecer permitir-nos conhecer o nosso passado e arquitectura históricas.

Solar de Sá – adega
Solar de Sá – adega
Solar de Sá – adega

Esta Casa foi vítima das Invasões Francesas, em 1809, resistindo-lhes. Conta-se que terão por lá ficado dois soldados de Napoleão mortos e as suas tropas deixado um sabre. Ao redor da residência, diversas casinhas destinadas aos caseiros. E uma bela adega, do início do século 19, onde era armazenada a riqueza da casa: o vinho. Mas também cereais, em especial o milho. Resiste muito do material original, como arcas e pipas e um lagar monumental, enorme, datado de 1805, diz-se que uma criação do Conde da Barca.

Solar de Sá

A experiência de visita a estas Casas Históricas da Ribeira Lima foi enriquecedora e um privilégio para quem tanto aprecia arquitectura e paisagem, indo para além da costumeira curiosidade de beira de estrada, não nos limitando desta vez a observar a fachada destes solares. Com este memorável projecto, demos consequência a essa curiosidade e pudemos testemunhar presencialmente parte da história do nosso país, guiados pela eloquência e disponibilidade dos seus proprietários. A continuar, esperemos.

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