Na Aldeia da avó, onde passámos verões intermináveis, havia um edifício por concluir e abandonado mesmo no adro da igreja, lugar central para todas as brincadeiras. Betão à vista, rectângulos a preparar as janelas que nunca o vieram a ser, chão do primeiro andar apenas com algumas tábuas de madeira, este era um lugar não apenas perigoso como assustador para qualquer criança. Esconderijo perfeito e vencedor no jogo das escondidas, porque se alguém ali se arriscasse esconder ninguém o ousaria buscar. Dito isto, raras vezes lá entrámos, mas muitas o espreitámos e até hoje juramos a pé juntos ter visto fantasmas a vaguear pelos cómodos não construídos da casa. Perigo e susto, de mãos dadas, dá mistério e imaginação.
Este era um lugar sem graça, mas foi provavelmente a semente que germinou o meu interesse por lugares abandonados. Podem ser aldeias inteiras, ruas, complexos ou edifícios (deixamos de fora deste texto os inúmeros castelos e vilas muralhadas espalhadas por Portugal, por mais óbvios). Deixados à sua sorte e ao correr dos tempos, exemplos da impermanência das coisas e da vida, são muitas das vezes espaços mágicos onde a curiosidade nos move para descobrir a história e as histórias de quem por eles passou. São memórias do que ficou para trás, outros tempos, outras vidas, outras necessidades. Lugares ideais para deixar a imaginação fluir e, quem sabe, sermos nós próprios parte das histórias. Mas muitas das vezes, também, é com lamento que nos indignamos e não chegamos a compreender como foi possível chegar-se a um determinado estado de degradação. São, pois, sentimentos diversos e até contraditórios os que se experimentam ao descobrir e visitar os espaços abandonados: curiosidade e espanto, encanto e horror.
Em alguns dos lugares abandonados, a Natureza encarregou-se de os devorar, apropriando-se deles e cobrindo-os com as suas ramagens feitas garras. Noutros, é o próprio Homem que os volta a tomar para si de uma forma criativa e transformadora, dando-lhes uma nova e inesperada vida.
Eis alguns exemplos de lugares abandonados, de norte a sul de Portugal, incluindo ilhas.

– este solar em Vila Boa de Quires, Marco de Canaveses, mais conhecido por “Obras do Fidalgo”, nunca foi terminado mas está, ainda assim, classificado como Imóvel de Interesse Público. Apreciado apenas o corpo principal da sua longa fachada percebe-se o porquê: a monumentalidade e até requinte são evidentes mesmo em forma de ruína. Por entre o esqueleto da pedra envelhecida vemos claramente a brilhante decoração em estilo rocaille e barroco. A construção deste palácio terá começado entre 1740 e 1760 e terá sido interrompida por morte do autor do projecto. Aqui pode dizer-se à vontade que a Casa Inacabada de Vila Boa de Quires é só fachada.

– a aldeia mágica de Drave, concelho de Arouca, é uma aldeia escondida nos montes graníticos e xistosos da Serra da Freita. Com referências já desde o século XIV, no ano de 2000 perdeu o seu último habitante, sem que nunca lá tivesse chegado a electricidade. Fica a 4 quilómetros de distância a pé da povoação mais próxima, Regoufe. As casas de xisto construídas em patamares nas encostas entrecortadas pela Ribeira de Palhais foram deixadas aos elementos e em ruína constituem hoje um lugar absurdamente pleno de ambiente cénico.

– as Minas de Rio de Frades são um dos vários complexos industriais, neste caso mineiro, espalhados pelo país que testemunham um tempo que já lá vai. Igualmente situadas no concelho de Arouca e em plena Serra da Freita, a exploração de volfrâmio e de estanho teve aqui o seu início em 1915. Nos anos 20 foi fundada a Companhia Mineira do Norte de Portugal, com capitais alemães, e durante a II Grande Guerra Mundial a actividade na Mina foi intensa, correspondendo ao esforço de guerra com a exportação do material para a Alemanha (como curiosidade diga-se que as Minas de Regoufe, não muito longe daqui, eram exploradas pelos ingleses). As antigas instalações mineiras estão hoje abandonadas e em ruínas, espalhadas ao longo do vale do rio de Frades. O que resta das paredes deste núcleo – que não sei a que corresponderia -, completamente imerso na vegetação, permite-nos perceber alguma da dimensão e ambiente do lugar. Algures por aqui há até uma galeria que pode ser atravessada e onde à saída nos espera uma queda de água.

– o Palácio Conde de Farrobo, na ruralidade com ares de serra de Vila Franca de Xira, é um edifício residencial em estilo neoclássico construído no século XIX. O 1° Conde de Farrobo, que tinha também palacetes em Lisboa (Palácio Quintela e Palácio e Jardins do Conde de Farrobo, onde se encontra instalado o Jardim Zoológico), construiu aqui o seu refúgio fora da grande cidade. Tinha uma enorme quinta onde produzia vinho, organizava caçadas e grandes festas para a alta sociedade lisboeta – havia até um pequeno teatro que, crê-se, seria uma réplica do São Carlos. A partir de 1874 seria vendido em hasta pública sucessivas vezes, a primeira delas para pagar as dívidas dos Condes, e em 1957 acabaria por ser doado à Caritas Diocesana de Lisboa. Pilhado e vandalizado, hoje é uma ruína propriedade da Misericórdia de Vila Franca de Xira.

– a Igreja e Convento do Carmo, em Lisboa, é um dos lugares com mais atmosfera da cidade. E é uma ruína. Construído em 1389, a mando do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, fica na colina fronteira à colina onde reina o Castelo de São Jorge. Era grandioso e monumental e ainda hoje, quando observarmos Lisboa desde o Castelo, lá surge a sua inconfundível igreja em destaque. O Terramoto de 1755 e posterior incêndio foram arrasadores e embora se tenha tentado a sua reconstrução, a extinção das ordens religiosas em 1834 e o gosto romântico da época pela ruínas e antigos monumentos medievais levou à decisão da sua manutenção no estado em que estava. Assim, hoje entramos na Igreja do Carmo, com a forma de cruz latina, e logo ficamos debaixo de céu aberto onde os arcos sustentados pelas enormes colunas nos transportam para séculos atrás e nos fazem imaginar como faz sentido o passar dos tempos. O Museu Arqueológico do Carmo está aqui instalado desde 1864.

– o Panorâmico de Monsanto, em Lisboa, foi construído em 1968. Por ocasião dos seus 50 anos o jornal Expresso apodou-o de ovni e a verdade é que a sua estrutura, projectada pelo arquitecto Carlos Oldemiro Franco Chaves Costa, não anda muito longe da forma com que imaginamos os veículos daqueles seres de outros planetas. Construído para ser um restaurante numa colina do Parque Florestal de Monsanto, lugar absolutamente rodeado de vegetação, acabou por funcionar poucos anos como tal, embora sempre se tivessem pensado em projectos grandiosos para este edifício circular com 5 pisos e uma vista de quase 360° sobre Lisboa. Foi discoteca, bingo, lugar de eventos. Depois de anos abandonado e esventrado o seu interior, mal frequentado até, o Panorâmico reabriu em 2017 como miradouro oficial de Lisboa. A vista é fabulosa. E deambular pelo Panorâmico, vendo lado a lado os painéis decorativos originais juntamente com os graffitis contemporâneos, ao mesmo tempo que nos perdemos pelas divisões escuras até darmos com a escadaria luminosa que hoje já não é suportada por paredes, é igualmente mágico.

– a Ponte de Nossa Senhora da Ajuda, foi construída sobre o rio Guadiana em 1520 como ligação entre Elvas e Olivença e era uma ponte fortificada da qual restam vestígios da sua torre e alguns arcos. As 8 arcadas na margem direita e as 5 da margem esquerda já não estão ligadas, a não ser com um imenso pulo na nossa imaginação. Imaginação esta que nos permite até ver um cavalo na ruína da antiga torre da ponte. Destruída pela artilharia espanhola em 1709, nunca mais foi recuperada e é hoje uma das ruínas com mais ambiente no nosso país.

– o Convento de Nossa Senhora do Desterro, em Monchique, está também rodeado de vegetação. A versão oficial é que foi mandado construir em 1631 por Pero Silva, um vice-rei da Índia, para lugar de uma ordem franciscana. A lenda conta-nos que foi mandado construir por dois marinheiros que perdidos e em perigo no mar prometeram construir um templo dedicado a Nossa Senhora na primeira terra que avistassem. Mas nem Nossa Senhora acabou por valer ao seu próprio Convento e o Terramoto de 1755 e a extinção das ordens religiosas atirou-o para o abandono e ruína. O claustro está ocupado com galinhas e a igreja com um altar que parece ter sido decorado por uma turma do pré-escolar. Abstraindo-nos destes dois factores, e se não pensarmos que o que resta do tecto e da fachada pode cair-nos em cima a qualquer momento, esta ruína possui ainda um certo ambiente espiritual.

– a Vivenda Vitória, em Olhão, é um palacete construído em 1918 num estilo revivalista neo-gótico. Mesmo à beira da estrada, chama a atenção a sua torre em forma cónica e os inúmeros graffitis que enchem toda a sua fachada. Deve ser o palacete mais colorido do nosso país. Diz que a Câmara Municipal de Olhão prometeu para aqui um centro de artes, mas até agora o que fez foi entregar o espaço ao artista Sen e seus amigos que em 2014 limparam o entulho do palacete abandonado e lhe deram uma nova imagem.

– o Hotel Monte Palace, em São Miguel, tinha uma das vistas mais desejadas de todo o arquipélago dos Açores. O lugar ainda a tem, mas já não é hotel. Construído na Vista do Rei, sobre a Lagoa das Sete Cidades, foi inaugurado em 1989 mas pouco tempo esteve aberto, por falta de clientes. Abandonado, manteve um segurança no local até 2010 mas desde aí todos os micaelenses e visitantes da ilha parecem fazer questão de aqui vir – e alguns deles foram pilhando e graffitando os 5 pisos do antigo hotel. O que se mantém são as formas e as vistas magníficas desde os quartos, ainda que permaneçam apenas as suas paredes. Talvez esta seja a única oportunidade para muitos de nós de ficar numa suite de hotel 5 estrelas com uma das vistas mais incríveis de todo o mundo.
Sim, há uma beleza nestes lugares que inspiram a imaginar e a vida, fluir. Grata!
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A História nunca termina, passa a cumprir outras funções 🙂
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