
Vidigueira, no Baixo Alentejo, é região de planície e de serra, dona de um microclima por conta da Serra do Mendro que permite desde há muito o desenvolvimento de culturas mediterrâneas em pequenos talhões, como a oliveira e a vinha, outrora explorados por frades e agricultores. A vinha, por exemplo, remonta aos tempos pré-romanos e ainda hoje é produzida segundo tradições ancestrais. Qualquer povoação tem a(s) sua(s) adega(s). Mas também a água marca presença, com o rio Guadiana e as albufeiras do Alqueva e do Alvito a não andarem longe. E tem também os seus personagens, como os romanos na vila de São Cucufate e Vasco da Gama como conde da Vidigueira.

Comecemos pela vila romana de São Cucufate, as ruínas do que seria uma importante casa agrícola da época romana. Perto de Vila de Frades, está situada num lugar pouco elevado, mas onde a paisagem se abria (e abre) para sul em direcção a Pax Iulia (actual Beja), a mais importante cidade do sul da província da Lusitânia. O lugar já teria tido ocupação, ainda que temporária, por volta do IV milénio a.C. (neolítico final), mas certo é que os romanos chegaram no século I d.C. e após três fases construtivas a vila romana alcançou a sua época de maior esplendor no século IV. Esta vila integra-se no tipo das villae céltico-romanas, comum nas Gálias, Germânia e Britânia, mas não tanto em Portugal. Com efeito, no nosso país é mais comum encontrarmos vilas romanas em tornos de perístilos (como aconteceu com São Cucufate na sua primeira fase de construção) e esta, pelo contrário, no seu resultado final desenvolve-se em altura.



Bem conservada, a mansão senhorial possuía dois pisos, o inferior com divisões abobadadas que serviam de celeiro ou adega e o superior reservado a residência. Havia ainda um templo, termas, tanques e zona de produção agrícola – eram as estruturas agrárias que permitiam a subsistência dos seus habitantes, dedicando-se à produção de vinho, azeite e cereais. No entanto, desconhece-se ainda a real extensão da “pars rustica”.

Abandonada no século V, a vila romana foi mais tarde ocupada por frades beneditinos que aí instalaram o seu mosteiro dedicado a São Cucufate, provavelmente no século IX e que terá durado até ao século XII. Outras comunidades monásticas se seguiram, permanecendo até ao século XVII. Terá sido algures por esta época que o antigo celeiro / adega dos romanos, adoptado por estas comunidades como capela, foi objecto de pinturas murais que ainda hoje podemos admirar – vemos frescos com motivos com figurações do sol, o escudo da ordem de Santiago e representação de santos.

A importância desta vila romana de São Cucufate advém do facto de ser um testemunho da organização social e económica romana, para além de ser considerada a estrutura deste tipo em melhores condições de conservação em Portugal e até no estrangeiro, graças à utilização quase permanente do edifício residencial desde a antiguidade até muito tarde. Por outro lado, e no caso específico da Vidigueira e do Alentejo, esta vila romana é igualmente importante por permitir traçar uma ligação com um método de produção de vinho muito particular, o vinho de talha. Embora não se saiba quem introduziu a cultura da vinha na região, sabe-se que ela era já parte dos hábitos e tradições das populações locais quando os romanos chegaram. De qualquer forma, eles prosseguiram com esta cultura, cultivando novas castas e implementando práticas inovadoras como a poda e o sistema de condução e usando lagares cavados na rocha e vasilhas de fermentação e conservação.

Na Vidigueira, o método de produção romano manteve-se quase inalterado até aos nossos dias e esta é uma especificidade da região. Em especial, Vila de Frades é a terra do vinho de talha, um saber-fazer ancestral que passou de geração em geração e se mantém vivo até aos nossos dias. É conhecida a forte ligação entre vinha e propriedade rural, bem como o vinho ser um símbolo da cultura cristã – daí que seja comum a existência de mosteiros com vinhas. E nisso Vila de Frades saiu favorecida, pois os frades instalaram-se nela. Não espanta, assim, que seja nesta freguesia da Vidigueira que encontremos o Centro Interpretativo do Vinho de Talha e que o escritor local Fialho de Almeida tenha nomeado uma das suas obras “O País das Uvas”.

A talha é o recipiente onde o vinho é acolhido e desenvolvido. Feita de barro e seguindo ainda hoje o molde dos romanos, mas agora maior, possui diferentes dimensões e capacidades. E a talha da Vidigueira é considerada por muitos a mais elegante, por ter maior curvatura.


Neste Centro Interpretativo é nos mostrada a cultura da vinha sob vários aspectos, como os cuidados e procedimentos na escolha e preparação dos solos e escolha das castas, a sua plantação, poda, empa e tratamentos, os materiais e utensílios usados, até se chegar à vindima. Um túnel forrado a rolhas simula a entrada na adega para nos mostrar as diversas fases da produção do vinho de talha, um processo natural: a pesgagem (limpeza e higienização das talhas, usando-se resina natural e cera de abelha, processo ainda realizado como na época dos romanos), a colocação do mosto (vertido para dentro das talhas), a fermentação (24 a 48 horas depois de colocado o mosto dentro da talha, inicia-se este processo que dará origem ao vinho, havendo que ir mexendo as massas vínicas duas vezes por dia, durante 2 a 3 semanas, e garantir a temperatura da adega para que a fermentação aconteça a 17°-18°), a abertura da talha (terminada a fermentação, fura-se o batoque – a rolha de cortiça – onde é colocada uma torneira para que o vinho saia directamente para o copo, jarro ou alguidar). No entanto, para degustar o vinho novo há que aguardar cerca de 40 dias, que costuma coincidir com o dia de São Martinho, fazendo jus ao provérbio: “Dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho”. E, depois, na taberna reúnem-se os amigos, bebe-se o vinho, convive-se e canta-se em grupo, daí emergindo um ritual que é uma das mais fortes e típicas manifestações culturais alentejanas, o Cante.




E já que estamos por Vila de Frades, caminhemos pelas suas ruas. Terra natal do escritor Fialho de Almeida, que aqui nasceu em 1857 (a sua casa está no Largo da Misericórdia), sente-se que Vila de Frades já foi importante. Situada na encosta da Serra de Guadalupe (com Ermida abandonada no alto), o seu nome deve-se aos beneditinos que aqui tinham um convento com São Cucufate como orago. Antiga sede de concelho, recebeu foral de D. Manuel I em 1512. O seu casario é tipicamente alentejano, com casas caiadas com listas coloridas. São muitas as adegas por onde passamos, em maior número até do que as igrejas. Perto uma da outra fica a Igreja da Misericórdia e a Igreja Paroquial de São Cucufate, de que só pudemos apreciar a fachada, mais despojada a primeira e desmesurada a segunda, do século XVII uma e do seguinte a outra.



A Vidigueira vê-se da vizinha Vila de Frades e hoje as duas vilas são quase um contínuo de casas. Do alto do monte onde está instalada a Ermida de Santo António dos Açores conseguimos percebe-lo e, como bónus, ganhar ainda uma vista larga donde se vê Cuba, Alvito e até Beja. É uma paisagem rural, feita de vinhas, oliveiras e laranjas e de ovelhas e cavalos, tudo às portas da sede de concelho. Esta Ermida de Santo António dos Açores é lugar de romaria e foi construída no século XVII, segundo diz a lenda a mando de um conde da Vidigueira em consequência de uma promessa que fizera se achasse a ave açor que lhe havia desaparecido. E assim ficou o nome.


Vidigueira é a terra dos Gamas e do casario branco. Foi-lhe concedida foral por D. Manuel I em 1512, data em que ainda eram seus donatários os duques de Bragança. Em 1519 foi cedida a Vasco da Gama, feito conde da Vidigueira pelo mesmo D. Manuel I, tendo ficado na posse destas terras e de Vila de Frades.

A Praça da República, com calçada portuguesa, é o centro da vila, com o edifício da câmara municipal, fonte e Igreja da Misericórdia. Esta, construída em 1592 e reconstruída em 1688, tem no interior uns gabados painéis de azulejo que não chegámos a conhecer, uma vez que infelizmente a igreja estava fechada.

Daqui já se vê a Torre do Relógio, que já foi torre sineira de carácter civil. De finais da Idade Média, o seu sino (ainda lá está) foi mandado fazer por Vasco da Gama em 1520; crê-se que talvez o tenha oferecido a alguma igreja da vila e tenha sido mais tarde colocado neste lugar.



Depois de passarmos pela Bica da Cascata, chafariz de 1891 construído para comemorar o abastecimento de água à vila, chegamos ao Castelo. Dentro dele tinham os condes da Vidigueira o seu palácio, mas hoje pouco resta para além de parte da torre gótica do primitivo castelo, com brasão de armas dos Gama. Ao seu lado foi colocada uma janela manuelina trazida de Vila de Frades em 1970 que se julga ter pertencido ao palácio dos condes da Vidigueira. Sobra o bonito panorama para o casario da Vidigueira (embora as construções adjacentes ao Castelo sejam feias), donde rompe a Torre do Relógio, e para Vila de Frades e serras que as envolvem.

No lado oposto da vila, o Largo Vasco da Gama é imenso, em calçada portuguesa às ondas com um memorial dedicado ao navegador e o Museu Municipal instalado na antiga escola primária, agora adaptada a museu. Nele se viaja pelo passado recente do concelho, assim melhor se compreendendo a sua cultura e história do ponto de vista económico e social. A colecção etnográfica provém quase por inteiro de doações particulares, permitindo a reconstituição de serviços como sapataria, tanoaria, chapelaria, barbearia e uma incrível mercearia. Destaque para um churrião de Pedrogão datado de 1947, uma carroça puxada por mulas que era usada para as deslocações à cidade e também para a venda ambulante.


Mas, dos vários núcleos temáticos, o que mais impressionou foi aquele que nos conduz pela história do ensino na vila – a antiga escola primária foi inaugurada em 1884 e encerrou em 1991 e durante grande parte do período em que se manteve em funcionamento eram raros aqueles que completavam a 4ª classe, uma vez que eram forçados a ir cedo trabalhar na terra.
Já fora do centro da vila, há que não perder três pontos.

O primeiro, a Ermida de Santa Clara, mandada construir por D. Francisco da Gama, o 2° conde da Vidigueira, em 1555. Localizada num lugar isolado e rural, sobre um afloramento rochoso, segue o estilo manuelino e gótico e tem um “q” mudéjar, com merlões.

O segundo, a Ermida de São Rafael. De arquitectura maneirista, com pináculos piramidais e cobertura em cúpula, foi mandada construir pelo 4° Conde da Vidigueira, Francisco da Gama (outro), no século XVII, para acolher a imagem do santo que havia acompanhado o seu bisavô, Vasco da Gama, na viagem à Índia. Mas no século XIX a Ermida foi profanada e, entrada em ruína, a imagem de São Rafael foi transferida para o Recolhimento do Espírito Santo, tendo acabado por acompanhar Vasco da Gama na sua transladação para o Mosteiro dos Jerónimos e, mais tarde, transferida para o Museu da Marinha, onde está hoje.

O terceiro, o alto de um monte onde está outra ermida, desta vez a Ermida de São Pedro, mas agora com a concorrência de uma bela vista neste miradouro acompanhado do baloiço.
Deste périplo pela Vidigueira, faltou certamente muito a visitar, mas podíamos ter-lhe acrescentado a Quinta do Carmo / Convento de Nossa Senhora das Relíquias, que há anos havíamos espreitado, fundado por frades carmelitas em 1495 e em cuja igreja tiveram jazigo os condes da Vidigueira e os marqueses de Nisa. Aliás, os restos mortais de Vasco da Gama vindos de Cochim, em 1539, estiveram lá até serem transladados para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1898. Ainda, também a Quinta do Quetzal, que avistámos ao longe a caminho de Vila de Frades, é uma paragem costumeira no concelho, acolhendo uma adega, um restaurante e um centro de arte contemporânea.