Alcochete

A vila de Alcochete, na margem esquerda do rio Tejo, é uma daquelas povoações que sabe sempre bem visitar. Com uma bela implantação natural, um núcleo urbano pitoresco e um ambiente tranquilo, é também terra de bons restaurantes. Tudo isto a menos de meia hora da capital, separada por uma travessia na Ponte Vasco da Gama sobre um dos pedaços mais bonitos do estuário do Tejo.

Vila de reis, tendo mesmo D. Manuel I nascido em Alcochete, o povoamento da região é, todavia, anterior à época medieval. Há registos que o datam ao Paleolítico e Neolítico e é igualmente seguro que os romanos também por aqui andaram, deixando vestígios de uma olaria romana em que se fabricaram ânforas no Porto dos Cacos, parte da Herdade de Rio Frio, uma das maiores do país. Da existência dos fornos desta e de outras olarias romanas que laboraram ao longo da Ribeira das Enguias terá surgido o topónimo Alcochete, cuja palavra derivará do árabe “al-kusat”, de significado fornos. No entanto, a ocupação árabe da região não é segura. Certo é que, após a Reconquista Cristã em Portugal, em 1224 D. Sancho II doou o lugar de Alcochete à Ordem de Santiago. Nessa época, havia já vários povoados ribeirinhos cuja actividade se desenvolvia ao redor da produção de sal e de vinho. Mas o núcleo urbano de Alcochete terá surgido no século XV, data em que D. João I aqui construiu um paço real, reconhecendo os seus bons ares e adoptando-o como lugar de refúgio. O seu filho, o infante D. João, mestre da Ordem de Santiago, elevou Alcochete a sede da Ordem e D. João II, seu bisneto, elevou-a a vila. Sendo lugar de residência régia, algum rei haveria de nascer aqui, o que aconteceu com D Manuel I, em 1469. Foi ele que concedeu foral a Alcochete e, de caminho, foram construídas igrejas e capelas e a nobreza instalou-se na vila, edificando os seus solares. O Solar dos Pereiras, por exemplo, é actualmente o edifício dos Paços do Concelho. Mas outros até são anteriores a esta época, como era o caso do Solar dos Monizes de Lusignano, actual edifício da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898. O crescimento económico e populacional aconteceu, sobretudo entre os séculos XVI e XVII. A partir daí, no entanto, e sobretudo com a substituição do transporte fluvial pela ferrovia, que não chegou ao concelho, e a consequente dificuldade de fazer chegar os produtos a Lisboa, a povoação entrou em decadência. Nem o sal nem a seca de bacalhau, que trouxe alguma vida à economia local no século XX, foram suficientes para fazer deste um concelho apelativo e dinâmico, o que só voltou a acontecer neste século XXI, à boleia da construção da Ponte Vasco da Gama em 1998. Não apenas a grande via que traz os visitantes vindos de norte, é ela que domina quase sempre a paisagem.

O centro histórico de Alcochete é compacto e fácil de percorrer. Não há melhor forma de começar uma visita do que iniciando-a caminhado pelo Passeio do Tejo, junto ao Jardim do Rossio / Jardim da Av. D Manuel I. A vista de rio vai-nos enchendo as medidas, mas desviamos breve o olhar para o monumento ao rei aqui nascido, acompanhado por um pavimento em calçada portuguesa com desenho de ondas e umas exuberantes palmeiras das Canárias. Nas suas costas está a fachada principal do seiscentista Solar da Quinta da Praia das Fontes, também conhecido por Solar dos Soyos, que chegou a albergar a família real e é hoje um hotel. No século XIX, o então Marquês de Soydos doou à Câmara parte do seu terreno para nele se fazer um passeio público.

Aqui perto, neste Rossio / Largo Barão de Samora Correia, para além do Asilo Lar Barão de Samora Correia (Santa Casa da Misericórdia de Alcochete), fica a Escola Primária Conde de Ferreira de Alcochete. Este edifício foi construído no final do século XIX segundo o projecto tipo de uma escola primária em Portugal que havia sido fixado em 1866. Esse plano propunha a construção de escolas em lugar aprazível e com os meios financeiros do legado do conde de Ferreira que, com 144 contos, serviria para construir e mobilar 120 escolas. Foi o caso desta, em Alcochete, uma das primeiras escolas do país, uma vez que até aí o ensino era ministrado em salas particulares, e que funcionou até 1997.

Estamos junto ao rio e já a um passo da Ponte-Cais. Deixámos o Bote Leão para trás, ancorado num canto da baía, a embarcação tradicional do Tejo cujo primeiro registo data de 1781 e que serviu de transporte de pessoas e sal até 1960. Esta é uma réplica da original, propriedade da Câmara Municipal de Alcochete, tendo sido construída de raiz segundo técnicas antigas no estaleiro naval de Jaime Costa, destinando-se hoje a passeios turísticos pelo estuário do Tejo.

A Ponte-Cais, o pontão de Alcochete, é um longo caminho flutuante com um farol na ponta. Primeiro construída em madeira, no século XIX, como apoio ao transporte fluvial de bens e pessoas entre a vila e Lisboa, no século XX foi reconstruída em betão e há poucos anos foi remodelada. Dela se observa uma linda panorâmica do Tejo e margem norte, com Lisboa de um lado e Vila Franca de Xira do outro, Ponte Vasco da Gama a separá-las e barquinhos a testemunhá-lo. E a vista para a parte antiga de Alcochete não é menos engraçada.

Destaca-se, junto ao início do pontão e à água, a Igreja da Misericórdia, hoje Museu Municipal. Seria a antiga capela do Paço Real. Não se sabe com exactidão onde se localizaria este paço, mas há fortes suspeitas de que seria mesmo ali ao lado, no lugar do Solar dos Netos, recentemente denominado Paço de São João, e, assim, lugar de nascimento do futuro rei D. Manuel I. Um padrão comemorativo é-lhe dedicado, justamente entre estes dois edifícios, no Largo da Misericórdia – não é pelourinho; desse resta apenas o fuste, exposto no museu municipal. Um dos edifícios deste largo leva ainda na fachada a pedra de armas da família Beliago, quase encoberta pelo toldo de um dos muitos (bons) restaurantes da povoação.

Nas traseiras da Igreja Misericórdia fica o Bairro das Barrocas. É o mais popular e pitoresco da vila, com ruinhas estreitas paralelas entre si e que desembocam na frente de rio e casas pequenas e coloridas, muitas delas com painéis de azulejo dedicados ao Padre Cruz, ícone local. Foi construído na primeira metade do século XIX num aterro entre os dois promontórios da vila, aquele ocupado pela Igreja da Misericórdia e o outro pela Capela de Nossa Senhora da Vida. Esta, de 1577, tem uma implantação tocante.

Logo adiante está o Miradouro Amália Rodrigues, face a face com o Tejo. Daqui adentramos no casco interior da vila, infelizmente sem poder provar uma das fogaças da padaria Piqueira, junto com a vizinha Popular o lugar para provar a doçaria local (convém fazê-lo a um dia de semana ou na manhã de sábado, de contrário apanhamo-las fechadas, como sempre me tem acontecido).

No jardim com coreto está a Igreja Matriz de São João Batista, do século XV, em estilo tardo-gótico e manuelino, com rosácea a encimar o portal. Esta igreja estava originalmente fora dos limites da vila, junto a um dos rossios, e embora se pense que possa ter sido erguida sobre uma primitiva mesquita não há provas concretas disso.

Ao seu redor vemos alguns edifícios em arte deco, revestidos a azulejo e de platibandas decoradas. Um deles é a Casa dos Bustos, do século XX, com figuras no terraço como Marquês de Pombal, Camões, Nuno Álvares Pereira, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Vasco da Gama.

E o centro histórico possui diversos largos e praças acolhedoras. O Poço de São João, no largo de mesmo nome, é um testemunho com séculos do abastecimento público de água em Alcochete – um ditado diz que quem beber da água deste poço nunca mais sai de Alcochete. É aqui o lugar dos actuais Paços do Concelho, no Solar dos Pereiras, um edifício oitocentista em estilo neoclássico erguido sobre um outro quinhentista. Na verdade, em cada largo haveria pelo menos um solar a marcar presença, testemunho de uma vila outrora de casas abastadas.

O edifício primitivo dos paços do concelho ficava no actual Largo da República, ali perto, que constituía o centro da vila quinhentista, lugar ainda do pelourinho de que hoje nada resta para além do fuste referido anteriormente. Agora um monumento ao salineiro domina o Largo.

Aliás, ciosa da sua história, património e gentes, Alcochete é dona de diversos monumentos em forma de escultura a prestar-lhes homenagem, como este ao salineiro e outros ao forcado e ao Padre Cruz.

De volta à frente ribeirinha, a Praia dos Moinhos é a praia da vila. O nome é óbvio e deve-se aos vários moinhos de vento aqui existentes. Acredita-se que a sua origem seja quinhentista, embora tenham sido sucessivamente reconstruídos ao longo dos tempos.

Já fora da vila de Alcochete, as Salinas do Samouco são outro dos lugares de visita obrigatória no concelho. Já aqui se falou do sal e da sua importância histórica na economia da região. Este complexo das Salinas do Samouco remonta ao século XIII e foi durante muitos anos o principal produtor de sal de Portugal. Numa escala muitíssimo diferente, mantém-se ainda em actividade, sendo aqui extraído e produzido sal segundo modos artesanais.

A partir da década de 1950 esta actividade entrou em declínio, substituída em relevância pelas fábricas de seca de bacalhau. Aqui chegou a existir o maior centro de secagem em Portugal, favorecido pelo clima e pela facilidade de descargas dos navios bacalhoeiros, e dos seus edifícios hoje em ruína damos conta ao percorrer as Salinas: a entrada é paga e existem 3 percursos pedestres marcados no interior da sua área.

Mas a grande piada deste complexo é o facto de estar em plena Reserva Natural do Estuário do Tejo, a maior e mais importante Zona Húmida do nosso país. Embora desprovida de grande vegetação (à excepção do sapal nas margens dos esteiros), a paisagem é muito bonita e tão tranquila que centenas de espécies de aves procuram o lugar em busca de alimento, refúgio e nidificação. Temia-se que a construção da Ponte Vasco da Gama pudesse inverter esta busca, mas tal não aconteceu e este novo elemento veio trazer uma graça diferente ao enquadramento das aves. A melhor época para observação das aves é nos meses de Inverno, de preferência na maré-baixa. De entre as 203 espécies identificadas nas Salinas destaca-se o flamingo, mas, curiosamente, apesar de facilmente o vermos ao atravessar a Ponte, fez questão de estar ausente durante esta nossa visita às Salinas. Ao invés, fizeram questão de se deixar ver a tarambola-cinzenta, a perna vermelha, o borrelho-de-coleira-interrompida, a garça-branca-pequena, o pernilongo e o colhereiro. Uma dica: não esqueça os binóculos, para melhor mirar estes outros habitantes de Alcochete. E ouvidos atentos, quer para escutar as suas melodias quer para apreciar o sotaque alcochetano; tão perto de Lisboa e todo um outro encanto na forma de falar.

Por fim, no Samouco, uma praia fluvial com parque de merendas e outras comodidades está à disposição dos veraneantes. Não sei se a água será da melhor qualidade, mas a vista é mais uma vez imbatível. E agora faz-se acompanhar de um cais palafítico, onde meia dúzia de madeiras fazem caminhos que dão acesso aos pequenos barcos. Os homens da apanha dos bivalves andam por ali, metidos na água. E a Base Aérea n.º 6, uma das localizações de que se fala para novo aeroporto, está mesmo ao lado, pista escondida para lá do longo areal deserto, à excepção de umas quantas aves, sempre com vista para Lisboa. Mais uma vez, a natureza a um passo de casa.

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