Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia

Sendo eu uma apaixonada por relatos de viagem, não podia deixar de referir aquele que será provavelmente o primeiro na história da literatura de viagens em Portugal: o Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia (1497-1499), atribuído a Álvaro Velho.

Uma cópia daquele que seria o manuscrito original está depositada na Biblioteca Municipal do Porto, um dos poucos documentos desta viagem que resistiram no tempo, e, apesar de anónimo, crê-se que a sua autoria seja daquele marinheiro ou soldado natural do Barreiro que seguiu na frota de Vasco da Gama, a qual viria a descobrir o caminho marítimo para a Índia. A importância da empreitada, não apenas para Portugal, mas para o mundo todo, foi um critério para que a Unesco inscrevesse este documento na lista “Memória do Mundo”, onde está igualmente a Carta de Pero Vaz de Caminha (onde este escreveu as primeiras impressões da chegada ao Brasil, em 1500).

Foi em 1838 que primeiro foi publicado o Roteiro, sob o nome “Roteiro da Viagem que em Descobrimento da Índia pelo Cabo da Boa Esperança fez D. Vasco da Gama em 1497”. Nele se descrevem as diversas etapas da viagem do navegador português, desde 8 de Julho de 1947, data da partida da frota de Belém, até ao dia 25 de Abril de 1499, data da sua escala na Guiné quase três meses antes do seu regresso e entrada triunfal no rio Tejo em 12 de Julho de 1499 – Álvaro Velho não regressou com a expedição, tendo optado por ficar quase uma década pela Guiné e Gâmbia. Nas 45 folhas do relato é descrita a viagem, seus principais acontecimentos e contactos mantidos com as terras por onde a expedição portuguesa foi aportando, desde a costa de África até à Índia, seus reinos, costumes, línguas e religiões dos povos, sua fauna e flora, aventuras e desafios. Tudo isto numa época que era já a dos Descobrimentos, mas numa fase inicial, ou seja, a informação disponível, quer no âmbito da navegação quer do conhecimento das gentes africanas e asiáticas não era abundante, antes vaga, confusa e fantasiosa.

Nessa época, as duas narrativas de viagem que circulavam eram apenas as de Marco Polo e de John Mandeville, já tão influentes que Cristóvão Colombo e o Infante D. Henrique, para além de outros navegadores, faziam questão de se acompanhar nas suas viagens com uma cópia das obras daqueles viajantes. No entanto, diferentemente dos de Polo e de Mandeville, os relatos dos portugueses – o de Álvaro Velho e dos que se lhe seguiram – trouxeram como novidade a informação de carácter geográfico e etnográfico nas suas narrativas, uma informação mais realista e não fantasiosa. Isto porque o objectivo das viagens onde seguiam era o de obter informação real e verdadeira sobre as circunstâncias da viagem e das terras e povos no caminho, de forma a que a Coroa Portuguesa, a mando de quem viajavam, pudesse utilizar essa informação para agir em conformidade com o seu projecto de controlo e domínio associado à Expansão – esta viagem inaugural de Vasco da Gama iria dar origem à Carreira da Índia, a ligação marítima entre o Ocidente e o Oriente que foi a percursora da globalização, ao permitir o estabelecimento de novos contactos e trocas comerciais entre diferentes civilizações e povos distantes. Nas palavras da Unesco, “um momento determinante que mudou o curso da História e que originou “uma série de acontecimentos que viriam a transformar o mundo”. Repare-se que quando se diz que a informação recolhida não era fantasiosa tal não quer dizer que não possa ser mentira, mas esta mentira não será tanto intencional, mas antes derivada de mal entendidos ou impressões erróneas. Por exemplo, à chegada à Índia Álvaro Velho pensava ter encontrado cristãos, porque viu templos hindus e terá confundido a trimurti com as igrejas cristãs e a trindade.

O que faz, então, deste Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia uma narrativa de viagem? Desde logo, a representação do outro, neste caso predominantemente o não europeu. Depois, um olhar pessoal que, como já se referiu, verdadeiro ou estereótipo, mas quase sempre estrangeiro. A descrição do local, das pessoas e seus costumes não pode faltar, mas aqui é quase sempre feita por comparação entre o sítio visitado e o lugar donde vem – o lá e o cá. O que torna estas narrativas uma agradável leitura é, na maior parte das vezes, o fascínio que os seus autores mostram pelo estranho, que consideram exótico. Ao tentarem dar uma imagem do outro, nascem os pré juízos. A esta distância, numa época em que os relatos de viagem são absolutamente comuns e qualquer um de nós se propõe a relatar as suas experiências de viagem, escrevendo por prazer, pode ser óbvio e imediato detectar os erros, as fantasias não propositadas ou os preconceitos, mas à época dos Descobrimentos tudo estava, precisamente, por descobrir. Incluindo o prazer da leitura destes relatos.

Em seguida, alguns detalhes e passagens deste Roteiro de Álvaro Velho.

A chegada a Calecut, a 21 de Abril de 1498, logo depois de terem navegado junto a umas montanhas – os Gaths Ocidentais – “as quais são mais altas que os homens nunca viram”, traz-nos aquela que será a passagem mais conhecida deste Roteiro e da história da viagem, a resposta do degredado mandado pelo capitão-mor a terra à pergunta dos locais sobre o que os tinha trazido ali: “Vimos buscar cristãos e especiaria”. Antes disso, porém, logo na primeira frase e apenas em duas linhas já Álvaro Velho tinha apresentado todo o projecto e ideologia subjacente a esta missão: “Em nome de Deus, Amém. Na era de 1497 mandou El-Rei Dom Manuel, o primeiro deste nome em Portugal, a descobrir quatro navios, os quais iam em busca de especiarias”. A fé movia estes homens em busca do comércio, e o relato da viagem está repleto de alusões a santos.

Ao longo do Roteiro podemos definir três momentos: a partida de Lisboa, a passagem pelo Cabo da Boa Esperança e a chegada a Calecut.

Já se disse, a frota saiu do Restelo a 8 de Julho de 1497, um sábado, passando pelas Canárias, Cabo Verde, Costa da Mina – onde “falece-nos o vento e andamos em calmaria até quarta-feira pela manhã” – e, depois de verem muitas aves, baleias e lobos marinhos, chegam a uma grande baía “muito boa e limpa e abrigada de todos os ventos” que não era mais do que a ainda hoje remota ilha de Santa Helena. Aqui lançaram âncora e estiveram oito dias. “Nesta terra há homens baços que não comem senão lobos marinhos e baleias e carne de gazelas e raízes de ervas. E andam cobertos com peles e trazem umas bainhas em suas naturas, e as suas armas são uns cornos tostados metidos numas varas de azambujo, e têm muitos cães como os de Portugal, e assim mesmo ladram.”. Prossegue, “as aves desta terra são assim mesmo como as de Portugal: corvos marinhos, gaivotas, rolas e cotovias, e outras muitas aves”. Esta comparação entre o que se vê e o que se conhece é uma constante ao longo do Roteiro, como por exemplo, “a carne dele era saborosa como a de Portugal”, “os bois desta terra são muito grandes, como os do Alentejo”, “as palmeiras desta terra dão um fruto tão grande como melões”. Mas, claro, muito desconhecido é também presenciado, quer da parte dos viajantes portugueses quer dos locais com quem encetam comunicação. Ali mesmo, em Santa Helena, “o capitão-mor foi em terra e mostrou-lhes muitas mercadorias, para saber se havia naquela terra alguma daquelas coisas. E eles não entenderam naquelas mercadorias nada, como homens que nunca as viram”. Da parte de Álvaro Velho, “desejava muito ir com eles a suas casas para saber de que maneira viviam e que comiam ou que vida era a sua”, a destes homens que traziam conchas nas orelhas e rabos de raposas metidos nuns paus que abanavam ao rosto. Esta viagem até ao Cabo da Boa Esperança fazia nove anos que deixara de ser uma passagem pelo Cabo das Tormentas, graças a Bartolomeu Dias, pelo que agora a viagem de Lisboa até aqui era relativamente conhecida da frota portuguesa. Os locais já não fugiam e recebiam os presentes, “cascavés e barretes vermelhos”, e em troca os portugueses aceitavam deles “manilhas de marfim que traziam nos braços, porque nesta terra há muitos alifantes”.

A partir daqui é que o desconhecido se iniciava e as aventuras, descobertas e perigos seriam correntes. Terras de homens negros, de bons corpos e que andam nus. De mulheres moças de beiços furados. Onde se fala como mouros. Vestes de panos de linho e algodão, de muitas cores. Cabeças com toucas de “vivos de seda lavrados com fio de ouro, e são mercadores e tratam com mouros brancos”, os turcos. E que para lá destas terras, para onde os portugueses se dirigiam, havia muito ouro, prata, pano, cravo, pimenta, gengibre e anéis de prata com muitas pérolas e rubis. Era o que diziam os homens daquela terra. A terra que os portugueses acreditavam estar perto de Preste João, o rei cristão do Oriente que tanto alimentou a imaginação da época, tão procurado mas nunca encontrado. Mas não. A frota de Vasco da Gama estava apenas em Moçambique, a tal terra em que as palmeiras davam frutos tão grandes como melões. Daqui prosseguiram até Mombaça, cidade portuária povoada de mouros. E aqui começaram os problemas. “Os que foram em terra disseram que viram andar pela vila muitos homens presos com ferros e estes, segundo nos parecia, deviam de ser cristãos, porque os cristãos nesta terra têm guerra com os mouros” […] Estivemos ainda a quarta e quinta-feira, depois de termos conhecida a malícia e traição que estes perros quiseram por em obra contra nós”. Saíram de Mombaça e rumaram a Melinde, também na costa do Quénia, “vila numa angra assentada ao longo de uma praia, a que se quer parecer com Alcochete”. E daqui partiram em direcção a Calecut.

Depois de 23 dias sempre com o vento à popa e sem ver terra, viram finalmente terra alta, os ditos Gaths Ocidentais, cadeia montanhosa da costa indiana. “Oh diabo, que te deu, quem te trouxe cá? Vimos buscar cristãos e especiaria”. “Boa ventura, boa ventura. Muitos rubis, muitas esmeraldas”, Vasco da Gama havia chegado à “terra onde há tanta riqueza” e foi com espanto que ouviu falar, não acreditando “que homem houvesse de tão longe de Portugal que nos entendesse nossa fala”. Nascia a globalização e este Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia continuaria a contar as aventuras desta percursora epopeia.

1 Comments Add yours

Deixe um comentário