A Carta de Pero Vaz de Caminha

À semelhança do Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia (1497-1499), atribuído a Álvaro Velho, a Carta de Pero Vaz de Caminha está inscrita na lista da Unesco “Memória do Mundo”. Pero Vaz de Caminha era o escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral que em 9 de Março de 1500 saiu do Restelo para aportar em Terras de Vera Cruz em 22 de Abril desse mesmo ano, 44 dias de viagem pelo Atlântico depois.

A Carta é um documento fundador da história do Brasil, a sua certidão de nascimento. Dirigida a El Rei D. Manuel, dando “nova do achamento desta vossa terra nova”, a Carta pode ser considerada literatura de viagem. Este é, na realidade, o primeiro olhar sobre um lugar até então desconhecido e um encontro de culturas tão diferentes, expresso no relato das primeiras impressões e contactos com o outro.

A escrita de Pero Vaz de Caminha começa humilde, notando que escreverá o melhor que puder e que “não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu”. Seguiu a frota pelas Canárias e Cabo Verde, onde se perdeu uma nau para sempre. A umas 660 ou 670 léguas de São Nicolau avistaram finalmente terra, “primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com muitos arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz”, onde ancoraram. Terra de Vera Cruz, isto é, terra da verdadeira cruz, a primeira das muitas referências religiosas da Carta. Uma espécie de aliança da cruz e da espada, à semelhança do que já tínhamos presenciado com o Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia. Mas ao contrário desta, na viagem que deu origem à Carta não havia a mínima ideia do que se iria encontrar, a novidade movia os integrantes da frota de Cabral, daí também a humildade de Caminha.

A Carta é um relato informativo e descritivo da nova terra. Demonstra curiosidade, revela superioridade (eurocentrismo) e é imbuída de um primitivismo, mas também de uma visão paradisíaca das Américas. Ao mesmo tempo que as consideravam sociedades sem cultura, sem uma organização social, havia também a ideia do “bom selvagem”, de paraíso na terra. Uma sociedade sem roupas e sem constrangimento algum, onde o pudor não existe, vivendo-se de acordo com a natureza. Sem propriedade privada, sem hierarquização social, sem proibições, sem religião.

Depois de ancorarem perto da cidade que haveria de se chamar Porto Seguro, no actual Estado da Bahia (mais precisamente na Praia Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália), avistaram homens que andavam pela praia. “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”. “Nas mãos traziam arcos com suas setas”. “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos”, “traziam os beiços de baixo furados, metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento de uma mão travessa, da grossura de um fuso de algodão, agudos na ponta como um furador.” Prossegue a descrição, agora das mulheres indígenas: “ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”, “tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como a dela”. A comparação entre o conhecido e aquilo que se estava a conhecer pela primeira vez não pode faltar, seja nas “vergonhas” das mulheres, seja na fauna (“vimos algumas pombas-seixas e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal”), na flora (“não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e fetos muito grandes, como Entre Douro e Minho”), no clima (“terra de muitos bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho”), nos modos de fazer (“eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas”).

Os primeiros contactos entre “nós” e o “outro” foram estabelecidos mostrando bens, uma vez que a comunicação falada era ainda impossível. Se a impressão da comparação entre o clima da Bahia e do Minho, sabemos hoje, é um engano, também os primeiros contactos resultaram em algumas percepções erróneas. Com efeito, mostrado um colar, o índio “começou de acenar com a mão para terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata”. Mas Pero Vaz de Caminha terá acertado com as impressões dos índios face aos animais apresentados pelos portugueses: reagiram bem ao papagaio, não fizeram caso do carneiro e tiveram medo da galinha. Quanto ao vinho, “mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais”. Mas no que respeita ao ouro, Caminha é mais uma vez humilde e até cauteloso, acrescentando “isso tomávamos nós assim por o desejarmos”.

O fascínio da terra achada é revelado pela descrição da abundância. Papagaios e aves haverá muitos, o arvoredo “é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar” e a terra “será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. […] De ponta a ponta, é toda praia parma, que nos parecia muito chá e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver terra senão com arvoredos, que nos parecia muito longa”. E, “as águas são muitas; infindas […] dar-se-á nelas tudo”.

Visitada uma povoação de nove ou dez casas, Caminha descreve-as como sendo “tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas de uma só peça, sem nenhum repartimento, tinham muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e a outra no outro”. Os índios não lavraram nem criavam, “não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam”.

A catequizaçao era um ponto fundamental nas missões da Coroa Portuguesa e a confirmar o messianismo de D. Manuel está o facto de aqui logo ter sido mandada rezar uma missa. “Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou” – a madeira usada para esta construção foi o pau-brasil, nome que inspirou a designação da terra achada, o Brasil. Então, a mando do Capitão, puseram-se todos de joelhos e beijaram a Cruz, “para eles verem o acatamento que lhe tínhamos”. Continua, “parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença”. Os indígenas, em número de 50 ou 60, assistiram à missa de joelhos, como os portugueses, e Caminha escreve “à qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção”.

“Esta gente é boa e de boa simplicidade”, “a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior”, “são muito mais nossos amigos que nós seus”, são elogios do escrivão português, mas realizados com uma clara intenção de superioridade, acreditando na diferença civilizacional de ambos, referindo por diversas vezes ao longo da Carta a vontade de os “amansar”. Este é um denominador comum na literatura de viagens da época, e não exclusivamente portuguesa, a da caracterização do outro, ainda que com fascínio, sempre como alguém selvagem que carece de salvamento, ou seja, pronto a ser dominado. E, por isso, Pero Vaz de Caminha remata a sua Carta a D. Manuel escrevendo que “o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente”.

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