De Santa Cruz a São Lourenço (19 kms) – 1.º Acto

Saímos manhã cedo de Santa Cruz, uma das “praias obscuras” de Ramalho Ortigão. Já não será tão obscura assim, sendo desde há décadas mais central e lugar de veraneio e de casas secundárias de muitos da região de Lisboa. Mas não deixou de ser uma vila piscatória, com um centro pacato e um clima propício à melancolia que inspirou escritores como Antero de Quental, João de Barros e Kazuo Dan. Para além disso, nos últimos anos, à boleia das ondas e do recato do lugar, abriram espaços de alojamento moderno e de luxo como o Noah Surf House e o Areias do Seixo.

O tempo estava aberto desde logo de manhã, a contrariar o que se diz do clima da região, ideal para caminhar e apreciar as vistas. Deixámos, então, Santa Cruz (concelho de Torres Vedras) para trás rumo a Lisboa. A Praia Formosa, com o Penedo do Guincho quase escondido, fica mesmo abaixo dos nosso pés e aqui começámos a caminhar pelas falésias. Um miradouro com uma cruz, instalada no alto da rocha, dá-nos uma primeira panorâmica do nosso ponto inicial, quer para norte quer para sul. A paisagem promete.

Vamos pelo Alto da Vela, um caminho fácil em estrada de terra batida. A Formosa vai-se afastando, mas com pouca demora vislumbramos a Praia Azul e o seu longo areal. Não passou ainda nem meia-hora de caminho e já temos a primeira grande surpresa da jornada.

A laje, lá bem em baixo, com a forma de uma língua estendida ao mar é de uma beleza que nos deixa sem palavras. Reconhecemos seres minúsculos que parecem andar à lambujinha, ou algo assim, e dão dimensão ao cenário. Olhando ao longe, a extensa Praia Azul não tem nada de selvagem, sem paredes rochosas a protegê-la a toda a volta, mas a vertente por onde entrámos, pelo contrário, é agreste. A arriba que lhe traça o norte parece em constante desabamento e em baixo percebe-se uma série de pedras e pedregulhos. Pode não ter caído ontem nem anteontem, mas estas arribas são instáveis e todo o cuidado é pouco.

Já em baixo, junto ao areal, seguimos pelo paredão de cimento com ar de obra nova. Caminhamos encravados entre a areia e a falésia, embora esta não seja tão alta aqui. O mar está inquieto, mas muito desordenado não está com condições para o surf. A Praia Azul dispõe de bons acessos, parque de estacionamento, alojamentos vários e restaurante-bar, daí que seja uma das mais procuradas na região. Tem ainda uma escola de surf. E até um passadiço de madeira com umas curvas cénicas.

Para continuar na Praia Azul em direcção à foz do Sizandro fazemo-lo, desta vez, pela areia. É mais difícil, mas não são muitos metros até atravessarmos o rio que se junta ao mar pela ponte pedonal de madeira. O Sizandro é o lugar de um peixe único no mundo, o ruivaco-do-oeste, uma espécie endémica em perigo de extinção que só encontramos nos concelhos de Mafra e Torres Vedras. Já na outra margem do rio fazemos uma primeira paragem para um snack antes de subirmos a falésia. Lá em baixo a paisagem já era bonita, mas agora, do topo desta elevação, o cenário é fantástico. Falésia negra a norte, areia branca, espuma das ondas ainda mais branca, mar mais azul do que o céu, rio com água de cor indefinida a dividir a areia de um campo verdejante onde assentam as auto-caravanas e até umas florezinhas amarelas a compor o postal.

De volta ao topo das falésias, começa o desfile da costa selvagem, mas ainda assim com o areal acessível pelo menos na maré baixa em algumas praias. Praia Porto Chão, Praia Alto da Vela, Praia da Horta, Praia do Baio são apenas alguns lugares ali para os lados de Cambelas.

E se de um lado temos o imenso oceano, do outro vemos um par de moinhos, paisagem típica da zona saloia. As falésias de rocha escura e terra avermelhada são capazes de receber arbustos verdes e até flores amarelas com caracóis dentro. Há alguma vegetação e o caminho segue, por vezes, pelo meio dela, outras por campos floridos e ainda junto a terrenos de cultivo. Mas depois o cenário muda por completo e parece até que estamos na lua, com o solo branco ondulado moldado pela erosão que o tempo vai provocando.

Esta parte do percurso, antes de chegarmos à Assenta, foi a mais difícil de perceber. Tivemos de subir e descer, furar por entre canaviais, até dar com o caminho. Não são terrenos pisados e, provavelmente, com as chuvas da Primavera (fizemos esta caminhada em Junho) a vegetação cresceu descontrolada. Mas acabámos por não perder muito tempo nesta busca, até porque o caminho é sempre em frente, rumo a sul. A silhueta da costa, com as falésias a desenharem reentrâncias no mar ao longe, é uma belíssima guia.

No cimo da Praia das Furnas, com uma varandinha em tons azul e branco, característica das praias de Torres Vedras, fizemos o nosso almoço-piquenique.

À Assenta, mais uma das “praias obscuras”, descrevia-a assim Ramalho Ortigão: “A Assenta, a duas léguas de Torres Vedras, junto da foz do Sizandro. Meia dúzia de casas, e cerca de quatro famílias. Preços das casas: de 100 a 300 réis por dia.” E quanto a Santa Cruz, a praia onde iniciámos esta nossa etapa, “meia légua ao norte do Sizandro, a duas léguas de Torres. Belo ponto de vista das minas do Convento de Penafirme. Pouco mais casas que a Assenta. Quatro ou cinco pessoas mais na população dos banhistas.”. Tudo mudou. Santa Cruz cresceu muito mais do que a Assenta e nem numa nem noutra se arranja mais casas a 300 réis por dia. A Assenta é uma praia com um porto piscatório com casas de apoio dos pescadores. No cimo da arriba tem um farol tão pequenino que quase passa despercebido.

Passada a Assenta entramos no concelho de Mafra. A paisagem permanece grande. Ora verde, ora vermelha, ora branca. Campo, terra ou lua.

Uma comprida e larga fenda no chão lembra-nos que este é terreno instável. A falésia aqui torna-se mais e mais abrupta, quase a direito, e as paredes parecem ser feitas de rochas constantemente prontas a rolar até ao mar. Custa a crer que alguém possa aceder à estreita língua de areia por terra, mas eis que descobrimos uma escada de madeira assente na parede da arriba, a prova de que os humanos desafiam a natureza e chegam onde se duvidava que pudessem chegar, embora por vezes com custo da sua vida. Não será a despropósito que esta praia leva o nome de Praia da Escadinha.

Pouco depois surge a pior imagem do dia, a das enormes e horríveis construções mesmo em cima da arriba, ainda para mais parecendo obras paradas ou abandonadas, mais uma razão para não se perceber o porquê de ainda aqui continuarem (na verdade, percebemos tempos depois, era um hotel mesmo em cima da falésia, inaugurado em Setembro de 2022, o que não acalma o sentimento, antes o inquieta ainda mais).

A Praia da Calada vem logo depois. Protegida de um lado e do outro por arribas altas, tem um bom areal e estacionamento perto, não admirando que seja concorrida. E, bom, se descemos até à Calada, agora teremos de voltar a subir para a sua vertente sul. A subida à falésia fez-se a pique por um caminho improvisado, com a companhia da tubagem de uma qualquer infra-estrutura. Já lá no alto seguimos por um belo caminho florido, com lotes de terreno verdejantes, mas felizmente sem construções habitacionais ou outras.

Estamos quase a chegar à Ericeira e à Praia de São Lourenço, mas aproveitamos para provar e comprar umas cerejas em exposição na banca de um vendedor ambulante. Antes de descermos ao areal de São Lourenço ganhamos mais uma imagem lunar, desta vez com uma percepção clara das rochas fossilizadas na falésia.

A vista do alto para Ribamar e Praia de São Lourenço, com a baía aberta e o Forte de Santa Susana do outro lado, é muito bonita. Nem o conjunto habitacional em escadinha que corre da terra para o mar estraga a paisagem. Mas o momento mais bonito é poder apreciar a Praia de São Lourenço desde cima, com o rio Safarujo a desaguar neste pedaço revolto de Oceano Atlântico da Ericeira. Se pretendíamos mergulhar aqui no mar, a missão ficou impossível. Salva que o Safarujo tem a habilidade de criar aqui duas praias distintas e quem quiser águas calmas tem as do rio à disposição. Face à dúvida mar ou rio, há sempre a areia ou a esplanada do bar da praia para relaxar no final desta primeira etapa rumo a Lisboa.

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