O Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa

O Aqueduto das Águas Livres é uma obra extraordinária cuja construção decorreu entre 1731 e 1799. Com o objectivo de abastecer Lisboa de água, criou-se um enorme sistema de captação e transporte da água até à capital, proveniente das nascentes das Águas Livres, em Belas. Com isso, o Aqueduto atravessa vários concelhos, para além de Sintra e Lisboa, também Odivelas (anteriormente Loures), Amadora e Oeiras, onde são visíveis diversas estruturas a ele pertencentes, algumas delas de uma monumentalidade que ainda hoje inquieta. Está classificado como Monumento Nacional.

Foi no século 16 que surgiu a necessidade de abastecer Lisboa de água, dada a expansão da cidade para ocidente, mas só a partir de 1728 foi efectivamente proposta a construção de um aqueduto que cumprisse tal demanda. Na época, os lisboetas acediam à água vinda de algumas nascentes em Alfama, bem como alguns poços e fontes ou pelos aguadeiros que a traziam em cântaros de barro. O que era manifestamente insuficiente. E assim, por decreto de D. João V, em 1731, e depois de lançados e cobrados os impostos que custeariam a obra, vindos em especial do vinho, azeite, carne, sal e palha, foi então iniciada a obra do Aqueduto das Águas Livres, que correu sem impedimentos em terrenos públicos e particulares. O trajecto coincidia, em muitas partes, com o percurso do antigo aqueduto romano. E, a partir de 1738, alguns troços do aqueduto principal foram sendo concluídos, sendo que em 1744 foi fechado o Arco Grande sobre o vale de Alcântara, unanimemente considerado o elemento mais monumental deste conjunto. Nesse mesmo ano correu pela primeira vez água num tanque improvisado nas Amoreiras, apesar de só em 1748 ter a água oficialmente chegado a Lisboa. Entretanto, foram sendo construídos outros aquedutos e redes de distribuição, bem como os 24 chafarizes que “inundaram” Lisboa. A exploração de água do aqueduto de Lisboa só terminou em 1967, levando ao encerramento do Aqueduto das Águas Livres e do Reservatório da Mãe de Água, nas Amoreiras, passando desde aí a integrar o conjunto do património do Museu da Água.

O sistema do Aqueduto das Águas Livres resistiu ao Terramoto de 1755 e atingiu, no seu todo, uma extensão de 58 km, sendo composto por um troço principal de 14 km (com início na Mãe de Água Velha, em Belas, e final no reservatório da Mãe de Água das Amoreiras, em Lisboa), diversos troços secundários de transporte de água desde cerca de 60 nascentes e 5 galerias para abastecimento dos muitos chafarizes de Lisboa. Ou seja, a água vinha até às Amoreiras de forma gravítica e daí era redistribuída pela capital através dos chafarizes, sendo também conduzida aos hospitais, palácios, conventos e fábricas.

A pedra usada na estrutura do Aqueduto foi o calcário lioz proveniente de pedreiras locais, com construções em cantaria e alvenaria, e a execução das obras foi longa no tempo. Resultou numa arquitectura barroca e neoclássica, mais erudita e cuidada dentro de Lisboa do que fora. A ideia era a de no seu percurso inicial de transporte da água desde as nascentes até à sua entrada em Lisboa as estruturas do Aqueduto tivessem uma função essencialmente utilitária e que, uma vez na capital, para além dessa função utilitária se-lhe juntasse também um carácter simbólico e artístico. Grandes nomes da engenharia e da arquitectura estiveram envolvidos na sua concepção, como António Canevari, Manuel da Maia, Custódio Vieira, Carlos Mardel, entre outros.

O seu longo e sinuoso percurso corre em grande parte de forma subterrânea, ligado a uma rede de ramais laterais. Quanto corre debaixo do solo, há diversos respiradouros ou clarabóias (alguns com elementos eruditos e decorativos, como pilastras, volutas ou concheados) que asseguram a iluminação e oxigenação das galerias, no sentido de garantir a salubridade da água. Mas nas zonas de vales (como Carenque, Reboleira, Damaia e Alcântara) optou-se pela construção de arcadas (em volta perfeita, arco abatido ou arco quebrado), onde a água corre por força da gravidade – daí o nome “Águas Livres”. Estes troços em arcaria são dos mais estimulantes em termos visuais, mas os mais importantes em termos decorativos são as Mães de Água (em número de três, duas iniciais nas nascentes e uma final nas Amoreiras) e as clarabóias, com pormenores como pináculos, frontões e pilastras. E optou-se por soluções inovadores para a época, como a opção pela construção de galerias com pé-direito à escala humana, o que permitia a sua manutenção e realização de obras sem necessidade de interromper o abastecimento de água.

É difícil conhecer no terreno com exactidão a totalidade do seu percurso. Em Lisboa será mais fácil, mas fora da capital há muitas zonas rurais e pertencentes a particulares onde não conseguimos chegar. O mais magnificente é, como já referido, o Vale de Alcântara. O Aqueduto das Águas Livres entra em Lisboa pela Buraca e Parque de Monsanto, passa pelo Bairro da Serafina e encaminha-se para Campolide, já do outro lado do dito vale. É aqui, com acesso pela Calçada da Quintinha, que podemos iniciar um caminho sobre a arcaria do Aqueduto até ao Alto da Serafina, embora qualquer lisboeta esteja habituado a passar de carro sob eles e, no nosso caso, nunca deixamos de nos extasiar com tamanha monumentalidade.

A que era conhecida como “Ponte dos Arcos”, porta de entrada e saída a Lisboa por parte de pessoas e animais até 1852, tem uma extensão de 941 metros ao longo de 35 arcos de diferentes dimensões. Um deles, o Arco Grande, é o maior arco de pedra em ogiva do mundo, com 65,29 metros de altura e 28,86 metros de largura. No topo do caminho / canal, sustentado pelos pegões em cantaria, vemos lanternins de inspiração clássica com pináculos e frontões flanqueados por pilastras toscanas. E clarabóias, umas mais simples do que outras e algumas de clara inspiração barroca, com cobertura em cúpula e encimada por pináculos.

O panorama é enorme. O pulmão verde de Monsanto, as torres das Amoreiras, a Ponte 25 de Abril e o Cristo-Rei ao fundo e, claro, o largo vale de Alcântara mesmo em baixo, ocupado por uma intensa e intrincada rede viária e ferroviária. Debruça-se, ainda, sobre o Bairro da Liberdade, gritante exemplo de descaso habitacional e social da nossa Lisboa.

Uma curiosidade relativamente a este troço: diz a lenda que a passagem esteve interrompida a partir de 1852 por um tal Diogo Alves ter aqui roubado e assassinado uma série de pessoas – sobretudo lavadeiras e hortelãos provenientes da zona saloia que utilizavam esta passagem – e lançado-as aqueduto abaixo. Verdade ou não, esta personagem terá sido condenada à morte em 1841 e a sua cabeça está conservada em formol na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Depois de passar por Campolide, o Aqueduto das Águas Livres chega ao seu reservatório terminal nas Amoreiras e oferece-nos novos momentos altos. O Reservatório da Mãe de Água das Amoreiras é antecedido por um arco triunfal, que celebra simbolicamente a chegada da água a Lisboa. Concluído em 1748, o Arco das Amoreiras possui elementos decorativos dóricos e duas inscrições laudatórias em memória de D. João V e da entrada das Águas em Lisboa, “vencida a própria natureza”.

Do conjunto fazem ainda parte nova arcaria, composta por 10 arcos de volta perfeita junto ao Jardim das Amoreiras, e, claro, o próprio reservatório. Projecto do arquitecto húngaro Carlos Mardel, começou a ser construído em 1746 mas com a sua morte a obra acabou retomada por Reinaldo Manuel dos Santos, em 1771, tendo sido introduzidas algumas alterações ao projecto original. O Reservatório da Mãe de Água das Amoreiras servia para receber e distribuir a água em Lisboa e o seu edifício acabou por ser aproveitado para nele se explanar uma faceta mais artística, embora o edifício possua linhas arquitectónicas sóbrias e clássicas, com alguns elementos decorativos manifestados nas gárgulas na cornija.

O interior da cisterna, que mais parece uma igreja, tal é a sua solenidade, tem a abóbada suportada por colunas e um grande tanque central que recebe água através de uma cascata com um golfinho a encimá-la, elemento tipicamente barroco. Esta cascata foi construída com pedras vindas das nascentes Belas e Carenque. A cobertura / terraço, apenas terminada em 1834, é ao mesmo tempo um belo miradouro de Lisboa.

Arco e Chafariz de São Mamede
Chafariz da Mãe de Água (antigo Chafariz da Praça da Alegria)
Chafariz de São Pedro de Alcântara
Chafariz do Carmo
Chafariz do Arco do Carvalhão

Da Mãe de Água das Amoreiras partiam quatro galerias subterrâneas, parte desta complexa rede de distribuição de água: a Galeria de Santana (início no Arco do Carvalhão e final no chafariz do Campo de Santana, donde partiam dois ramais, um para o antigo Colégio de Santo Antão-o-Novo, actual Hospital de São José, e outro para o Intendente, abastecendo o respectivo Chafariz; abastecia ainda de água os chafarizes de São Sebastião da Pedreira, de Entrecampos, da Cruz do Taboado e do Socorro), a Galeria das Necessidades (início no Arco do Carvalhão e final na Tapada das Necessidades, donde partia um outro ramal à superfície que atravessava a Avenida Infante Santo até às Janelas Verdes, onde abastecia o respectivo chafariz e os de Campo de Ourique, da Estrela, da Praça de Armas e das Terras; a abertura da Avenida Infante Santo implicou a sua demolição), a Galeria da Esperança (início no antigo Arco de São Bento, na Rua de São Bento, e final no Chafariz da Esperança, junto ao antigo Convento da Esperança, abastecia os chafarizes do Arco de São Mamede, Arco de São Bento, do Cais do Tojo e da Esperança; o Arco de São Bento tem uma história curiosa: construído em 1758 em estilo neoclássico, lembrando os arcos triunfais romanos, este arco de passagem do aqueduto sobre a rua de São Bento foi desmontado em 1938 e assim permaneceu por décadas até ter sido reconstruído e colocado na Praça de Espanha em 1998, lugar onde permanece) e a Galeria do Loreto (final no Largo do Directório, em frente do São Carlos, donde partia outro ramal para a Cotovia, actual Praça da Alegria, abastecendo o respectivo chafariz e o chafariz da Rua Formosa, existindo ainda uma terceira derivação que conduzia a água até ao Chafariz do Carmo; alimentava de água o chafariz do Rato, de São Paulo, do Loreto e de São Pedro de Alcântara).

Junto ao Reservatório da Mãe de Água das Amoreiras está a Casa do Registo, a qual servia para regular o caudal de água deste reservatório, destinado ao abastecimento dos chafarizes, fábricas, conventos e casas nobres em Lisboa. Daqui pode aceder-se a três galerias subterrâneas: uma galeria de ligação ao reservatório do Arco (500 metros) e duas galerias do Aqueduto das Águas Livres, a do Loreto (2835 metros) e a da Esperança (1425 metros).

Parte do Museu da Água, percorremos a Galeria Subterrânea do Loreto, com início, como referido, nas Amoreiras e final no Largo do Directório, junto ao Teatro Nacional São Carlos, embora tenhamos caminhado por ela apenas até ao Reservatório da Patriarcal, no Jardim do Príncipe Real. Ainda em bom estado de conservação, foi construída a partir 1746 e tem uma extensão de 2835 metros totalmente enterrados – a não ser que se sofra de forte claustrofobia, é um passeio tranquilo e nada desconfortável.

Chafariz do Rato

Vai havendo indicação do lugar exacto por onde vamos passando, quase sempre coincidente com as saídas de água para abastecimento de chafarizes ou palácios e mosteiros. Passamos pelo Largo do Rato (o chafariz do Rato, em estilo barroco, foi construído em 1754 sob projecto de Carlos Mardel e tinha dois níveis de água: um elevado para utilizadores e aguadeiros e outro inferior ao nível do solo para animais; aqui ficava antiga Fábrica Real das Sedas), rua da Escola Politécnica (a Casa da Água da Rua da Escola Politécnica funcionava como ponto de acesso ao interior da Galeria do Loreto para efectuar a vigilância e limpeza do espaço e nas imediações a galeria do Loreto abastecia a imprensa régia – actual Imprensa Nacional Casa da Moeda – e o antigo Colégio dos Nobres – actual Museu Nacional de História Natural) e, enfim, Reservatório da Patriarcal, no Príncipe Real. Daqui a Galeria continua, passando pelo Convento de São Pedro de Alcântara, Largo do Chiado e Largo de São Carlos. São muitos os chafarizes que no caminho eram abastecidos, como o da Cotovia de Baixo (hoje conhecido por Chafariz da Mãe d’Água, transferido do desaparecido Passeio Público, actual Praça da Alegria, para o final da Rua da Alegria, abaixo do Príncipe Real), do Século (com Convento dos Cardais), de São Pedro de Alcântara, do Carmo, do Loreto e de São Paulo.

O Reservatório da Patriarcal, sob o Jardim no Príncipe Real, proporciona uma visita surpreendente. O jardim é bonito e agradável, mas certamente que a esmagadora maioria dos muitos que o frequentam desconhecem a monumental cisterna escondida sob si. Foi construído entre 1860 e 1864 e passou a ser o elemento mais importante na rede de distribuição de água na zona baixa da cidade, sendo a sua principal função a regulação da pressão entre o Reservatório do Arco (na Rua das Amoreiras) e a canalização da zona baixa da cidade.

De forma octogonal, é uma cisterna em alvenaria de pedra, com dois compartimentos com capacidade total de 884m3 de água. São 31 os pilares de 9,25 metros que suportam os arcos em cantaria, que por sua vez sustentam as abóbadas. É um espaço maravilhoso. Inicialmente era abastecido pelo Aqueduto das Águas Livres e a partir de 1833 pelo sistema do Alviela. Na década de 1940 o reservatório deixou de abastecer a rede pública de distribuição de água. Integrado no Museu da Água, dá acesso subterrâneo à galeria do Loreto ligando-o ao jardim São Pedro de Alcântara (410 metros).

Por fim, uma referência para outro espaço parte do Museu da Água, a Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos, embora já não parte do Aqueduto das Águas Livres. O crescimento da população de Lisboa em meados do século 19 tornou o abastecimento da água pelo Aqueduto das Águas Livres insuficiente, pelo que foi decidida a construção de um novo aqueduto. Assim, entre 1871 e 1880 foi construído o Aqueduto do Alviela, com a captação da água nas nascentes dos Olhos de Água do rio Alviela, 114 kms a norte da capital. E o reservatório final foi instalado no antigo convento franciscano dos Barbadinhos Italianos, que aqui estiveram entre 1747 e 1834, data da extinção das ordens religiosas em Portugal, tomando o nome de Reservatório dos Barbadinhos. Junto a ele foi construída uma estação elevatória a vapor, inaugurada em 1880, que bombeou água do aqueduto do Alviela para a cidade de Lisboa até ao seu enceramento, em 1928, data em que passou a funcionar apenas com máquinas eléctricas, sendo assim inaugurada a Estação Eléctrica. A Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos acabou musealizada e é um testemunho da arqueologia industrial de outros tempos, aqui estando preservadas as antigas máquinas a vapor e as respectivas bombas.

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