Khiva

Khiva compõe o trio das antigas cidades da Rota da Seda no Usbequistão, juntamente com as mais conhecidas Samarcanda e Bucara. Entalada entre dois grandes desertos da Ásia Central, o Kyzlkum (areias vermelhas) e o Karakum (areias pretas), esta cidade na região de Khorezm funcionava como um oásis na recepção aos viajantes da Rota da Seda e nela comerciava-se de tudo, desde camelos, café e carpetes até concubinas e escravos. Por ela passaram persas, gregos, zoroastras, turcos, árabes, mongóis e russos. Arrasada e reconstruída várias vezes ao longo dos tempos, o que vemos hoje terá cerca 300 anos e Khiva foi entretanto restaurada e transformada como que num museu a céu aberto, mas um daqueles cheio de ambiente.

Escolhida capital turística do mundo islâmico para o ano de 2024, Khiva não está ainda dotada do comboio rápido, pelo que alcançá-la implica um caminho mais longo do que às suas parceiras Samarcanda e Bucara, sendo por isso menos visitada do que estas. De qualquer forma, quer o avião desde Tashkent quer o comboio nocturno desde uma daquelas outras cidades são boas opções, constituindo este último meio sempre uma boa experiência em terras da Ásia. Distinguida pela Unesco como património da humanidade em 1990, a grande atracção de Khiva é a Itchan Kala, a pequena cidadela fortificada com ruas estreitas, e por vezes labirínticas, onde desfilam dezenas de monumentos, entre mesquitas, minaretes, madraças e palácios. Antes dessa distinção, porém, o governo soviético (na época o Usbequistão era parte integrante da União Soviética) colocou em acção o projecto de deslocalização dos habitantes da cidadela para fora das muralhas, no sentido de restaurar o imenso património, preservando a memória de outros tempos. Perderam-se os residentes, não restando mais do que umas poucas centenas, embora eles continuem a entrar todos os dias às centenas por uma das quatro portas da cidadela para trabalhar (seja nos restaurantes, lojas ou nos estúdios de artesanato), mas conseguiu-se manter a ideia dos tempos em que Khiva era atravessada pelas caravanas de mercadores, dando cor a um lugar que, ao contrário de Samarcanda, é monocromático nos seus edifícios de tijolo e barro – com a enorme excepção de dois dos seus belíssimos minaretes e dos azulejos de dois dos seus palácios. Parece que a felicidade, em Khiva, vem aos pares. É, em resumo, um lugar encantador, sem ponta de artificialidade que se poderia esperar de uma cidade-museu.

Madraça Kutluq Murad Inaq
Ichan-Kala

Conta a lenda que Khiva foi fundada por Sem, um dos filhos de Noé, que aqui terá escavado um poço e, assim, permitido que a cidade fosse crescendo. Bebendo água do dito poço, alguém terá exclamado “khey vakh!”, de significado “que prazer!”, e assim se nomeou a cidade como Khiva. Praticamente certo é que no século 6 a.C. já existiria e que antes de conquistada pelos árabes era uma cidade zoroastra, dos adoradores do fogo. Com os muçulmanos, que chegaram no século 8, Khiva desenvolveu-se e entre os séculos 9 e 11 era um dos grandes centros religiosos e de ciência, com muitos dos grandes cientistas medievais a terem trabalhado por lá. Como Al-Khwarizmi, por exemplo, considerado o pai da álgebra e o criador do número 0, cujo nome deu origem à palavra “algarismo”. Até que chegou Gengis Khan, por volta de 1220, e destruiu a cidade, à semelhança do que aconteceu com Samarcanda e Bucara. No século 16, tribos nómadas usbeques chegaram e acabaram por formar o Khanato de Khiva, tendo-a tornado um dos centros islâmicos da região, construindo-se então diversas mesquitas e madraças. Os palácios são, porém, posteriores, dos séculos 18 e 19. Até que, depois de quase 50 anos de esforços e influência, em 1920 as tropas russas tomaram definitivamente o khanato, integrando-o na república soviética do Usbequistão em 1924. Desde 1990, já se sabe, com a implosão da União Soviética o Usbequistão tornou-se independente e Khiva é parte do novo país. Não surpreende, pois, constatar que tirando o centro histórico Khiva seja uma cidade de silhueta claramente soviética.

Muralha
Muralha
Muralha
Muralha
Ichan-Kala

Ichan-Kala, a cidadela fortificada, terá tomado o lugar de uma antiga fortificação do século 5. A actual começou a ser construída em 1598 e o conjunto histórico com 26 hectares é rodeado a toda a volta por uma longa muralha com uma largura de 5-6 metros, altura de 8-10 metros e comprimento de 6250 metros – não resistimos a percorrê-los todos pelo seu exterior. É uma beleza. E ainda para mais pode caminhar-se durante uns bons metros sobre ela, experiência melhor apreciada ao pôr-do-sol. Aliás, o pôr-do-sol é um dos momentos mais esperados em Khiva, quando a luz toma uns tons dourados que atingem a sua máxima expressão reflectidos nos edifícios cor de areia da cidadela.

Convívio junto de samovar
Minarete Kalta Minor
Minarete Kalta Minor

A cidadela possui 4 portas / torres. Entrados pela Ata-Darvaza, a principal, logo ficamos extasiados diante a elegância e formosura do Minarete Kalta Minor, de significado “minarete curto”. Com efeito, o então governador, Muhammad Amin Khan, iniciou a sua construção por volta de 1852 e tinha como plano que o minarete atingisse cerca de 70 metros de altura, fazendo dele o mais alto do mundo. A sua ambição não se cumpriu, porém, uma vez que o reinado e construção do minarete foram interrompidos pela sua morte numa batalha na Pérsia, deixando o minarete com “apenas” 29 metros. Decorado de alto a baixo com uns penetrantes mosaicos majólica em tons azuis, verdes e brancos, sob diversos padrões geométricos, arriscamo-nos a afirmar que poucos minaretes há mais bonitos do que este.

Madraça Mohammad Amin Khan
Madraça Mohammad Amin Khan
Madraça Mohammad Amin Khan

Ao lado está a Madraça Mohammad Amin Khan, construída na mesma época conforme estilo timúrida já nosso conhecido: portal monumental a anteceder pátio rectângular com 125 celas / dormitórios ao redor divididos por 2 pisos e em cada canto uma espécie de torre encimada por cobertura com mosaicos índigo e cobalto. Hoje, aquela que é a maior madraça de Khiva foi transformada em hotel.

Mohammad Rakhim Khan

Perto esta outra grande madraça, a Mohammad Rakhim Khan (para além de governante, um poeta e filósofo, o primeiro a introduzir a litografia na Ásia Central e um impulsionador da fotografia e filme na região), uma das últimas a serem construídas, entre 1871-76, imediatamente antes de Khiva se juntar ao Império Russo. Diante si, com uma larga praça de permeio, está o Kuhna Ark, junto à porta ocidental da cidadela.

Kuhna Ark – entrada
Kuhna Ark – Mesquita de Inverno
Kuhna Ark
Kuhna Ark
Kuhna Ark – Mesquita de Verão
Kuhna Ark – Sala do Trono
Kuhna Ark – interior

Kuhna Ark é a cidadela fortificada dentro da cidadela fortificada. A origem desde palácio vem do século 12, mas começou a tomar a forma actual a partir de 1688, servindo de residência exclusiva dos khans de Khorezm, o lugar onde o governador mantinha os membros da sua família, o seu harém e os seus servidores públicos. O complexo, amplamente restaurado no século 19, na sequência de invasão e destruição por parte dos persas, é composto por duas mesquitas, uma de Verão e outra de Inverno, um salão de recepções / sala do trono, uma casa da moeda e o dito harém, entre outras divisões. Entramos pela sua porta monumental, ladeada por duas torres cilíndricas, donde saem os muros que protegiam a antiga cidadela. No interior, vários pátios se apresentam, o primeiro deles o correspondente ao pátio das recepções, com um bonito iwan (espécie de espaço alpendrado) suportado por pilares de madeira esculpidos e uns bonitos mosaicos azuis a revestir as paredes, onde se abrem umas molduras de janelas também em madeira. É parecido com o pátio da Mesquita de Verão, mas neste o iwan possui um mihrab, virado para Meca. Em ambos o resultado é um belo contraste, muito bem conseguido em termos visuais. Diversas salas foram transformadas em museu, mas uma delas é uma recriação da sala do trono, uma vez que o trono original foi levado para a Rússia, estando hoje no Hermitage de São Petersburgo. Num dos pátios vê-se ainda um género de yurt, onde os khans levavam a cabo julgamentos sumários.

Bastião Ak Sheikh Bobo
Bastião Ak Sheikh Bobo
Bastião Ak Sheikh Bobo – vista

Também parte do palácio, apesar de ter entrada diferente, podemos subir ao bastião Ak Sheikh Bobo, mesmo junto à muralha de Ichan-Kala e com ela quase se confundindo. Funcionava como torre de vigia do palácio e fortaleza e hoje é um bom miradouro sobre a cidade.

Tosh Hauli
Tosh Hauli
Tosh Hauli
Tosh Hauli

O Tosh Hauli, no lado contrário da cidadela junto à porta oriental, é o outro palácio dos antigos khans cuja visita não pode perder-se. De significado “palácio de pedra”, foi construído em 1838 por Allakuli Khan, que aqui viveu com as suas 4 mulheres e 40 concubinas. É outro conjunto com diversos pátios e decoração semelhante, nomeadamente os belíssimos mosaicos azuis, que dão toda uma vida ao lugar. É de atentar ainda aos padrões geométricos dos mosaicos e às madeiras esculpidas que sustentam o iwan.

Khiva
Khiva
Khiva
Khiva
Khiva

A esta altura já tínhamos percorrido o centro histórico de Khiva de lés a lés, e por diversas vezes. Sem muitos turistas, a ocupação das ruas, quase todas elas preenchidas com bancas de venda de artesanato e souvenirs, era a ideal, num movimento tranquilo e equilibrado entre locais e visitantes. As ruas labirínticas são um convite a que nos possamos perder, também levados pela curiosidade em espreitar um e mais outro monumento que insiste em atrair-nos para algum canto, para o admirarmos sem pressa. O Minarete Khoja é disso exemplo.

Madraça Khoja
Minarete Khoja
Minarete Khoja

O Minarete Khoja é parte do complexo Islam Khoja, composto ainda por uma madraça. Construído apenas em 1910, segue o estilo e tradições do século 14 e tem 56 metros de altura, sendo o mais alto de Khiva e visível de qualquer ponto da cidade, bastando olhar para o horizonte. À semelhança do mimoso Kalta Minor, foge ao monocromatismo dado pelo tijolo cor de areia de Khiva, acrescentando-lhe listas com mosaicos em tons azul e verde.

Vista do Minarete Khoja
Vista do Minarete Khoja
Vista do Minarete Khoja

Podemos – e devemos – subir os seus 175 degraus, bem altos, para admirar as grandiosas vistas da cidadela e das aforas de Khiva, num emaranhado de edifícios e ruelas construídos no deserto. E assim descobrimos que afinal há um ponto da cidade donde não se vê o Minarete Khoja. Mas descobrem-se na paisagem mais uma série de minaretes afiados rumo ao céu, o verde intenso da cúpula do Mausoléu Pahlavan Mahmud, assim como se percebe na perfeição a forma rectângular típica das madraças.

Mesquita Juma
Mesquita Juma
Mesquita Juma

Um desses minaretes é o da Mesquita Juma, igualmente distinto no alto dos seus 33 metros, mas é o interior que mais atrai neste edifício construído no final do século 18 mas com origem no século 10. Sem portais, cúpulas ou o pátio exterior mais comum nas mesquitas de Khiva, a sala de oração é uma autêntica floresta escura (não há janelas para deixar entrar a luz), com o telhado suportado por 213 pilares de madeira, cada um esculpido por um artesão diferente. Diz-se que alguns destes pilares datam do século 10 e que a base em mármore deles está recheada de lã de camelo.

Mausoléu Pahlavan Mahmud
Mausoléu Pahlavan Mahmud

O Mausoléu Pahlavan Mahmud, poeta e lutador que viveu nos séculos 13 e 14, possui um dos interiores mais bonitos de Khiva e o único a fazer lembrar o estilo timúrida que viramos em Samarcanda. Ao redor do Mausoléu foi crescendo desordenadamente uma série de túmulos, fazendo deste mais um lugar labiríntico cheio de ambiente.

Pão nan

Intra muralhas da Ichan-Kala, muitas mais madraças e mesquitas há para conhecer. E fora muralhas, na Dishan-Kala, idem certamente, para além de portas monumentais e palácios. Khiva foi para nós a última paragem das três mais conhecidas cidades históricas da Rota da Seda, numa semana intensa pelo Usbequistão. Difícil escolher qual a preferida, mas Khiva não pode ser preterida. É talvez a mais acolhedora delas, pela escala mais pequena e condensada da sua cidadela. Daí que tenha sido aqui que mais usufruímos do espaço público, deixando-nos estar demoradamente no terraço do restaurante Terrassa, com vista privilegiada para o Kalta Minor, ou na praça diante da Madraça Mohammad Rakhim Khan, onde ainda se coze o pão à moda antiga, em fornos de pedra públicos, daí resultando o saborosíssimo nan. Khiva pode ser uma cidade-museu, mas continua a ter vida.

Deixe um comentário