Drave, a Escondida

Tinha prometido a mim própria que voltaria à Serra da Freita para conhecer a Drave, aquela a que chamam a “Aldeia Mágica”. Os caminhos por vales e montanhas da Freita, em Arouca, são cenários impressionantes, mas também o secretismo e misticismo da povoação da Drave me impressionou. Em tempos tinha tentado percorrer de carro as estradas de asfalto pelas montanhas que lhe são próximas, mas nada de a conseguir vislumbrar.

Parte da atracção da Drave é precisamente esta, a de não se deixar ver nem pisar a não ser caminhando directamente até ela. Encaixada num vale e protegida por montanhas, a este lugar encantado apenas se chega depois de percorrer a pé os 4 quilómetros que a separaram da aldeia de Regoufe (bem marcados pelo PR14 – “Aldeia Mágica”).

Regoufe, a visigótica “rei dos lobos”, é também um lugar que merece ser visitado e explorado. Ao descer de carro até à aldeia percebemos logo a ocupação do vale com terras de cultivo. Um desvio à direita (onde estacionámos) sinaliza as Minas de Regoufe, hoje uma impressionante ruína cheia de ambiente desta antiga indústria de extracção de volfrâmio explorada pelos alemães durante a época da II Grande Guerra Mundial.

Descemos mais um pouco, agora a pé, e a entrada na aldeia permite-nos conhecer um exemplo singular de autêntica ruralidade bem no centro do nosso país. Casas de granito onde o piso térreo ainda é efectivamente usado para guardar os animais são uma realidade. Assim como o é a partilha das suas ruinhas entre os homens e as vacas, cabras e galinhas.

O percurso pedestre que nos leva até à Drave tem início à entrada do casario de Regoufe. São 4 quilómetros para cada lado, cerca de 1h 15m de caminho em cada sentido. É um percurso relativamente fácil, onde na ida a única parte cansativa é precisamente a primeira, aquela que após atravessar a ribeira da aldeia de Regoufe nos leva a enfrentar uma subida inclinada com muita pedra no terreno. Acontece que, na subida somos tentados a olhar para trás, para espreitar a implantação geográfica de Regoufe no vale, e de tão bela que é temos a desculpa perfeita para não apenas caminharmos lentamente como também forçarmos as paragens para descanso ver as vistas.

A chegada ao cimo desta subida dá-nos ainda um cenário maior, a junção das Serras da Freita e da Arada, e mais à frente ainda de São Macário, aquilo que há séculos era designado como o Monte Fuste. E a partir daqui o caminho é quase sempre relativamente plano e em bom piso, com excepção da aproximação a Drave, em que teremos que descer um empedrado.

A vista é fabulosa. As montanhas verdes com rasgões fazem lembrar as do Cáucaso. É impossível deixar de contemplar as enormes paredes montanhosas que se erguem desde abaixo no vale até tocarem no céu. E elas, camaradas, vão nos acompanhando pela nossa caminhada afora.

Começamos a avistar a Drave ao longe quase ao mesmo tempo que percebemos uma ribeira no fundo do vale em curva. Iniciamos a descida e em breve chegamos à Aldeia Mágica.

As casinhas escuras construídas em xisto e lousa confundem-se com as paredes rochosas. Esta é uma zona de transição de granito e xisto, mas o casario de Drave é todo em xisto, à excepção de um ponto branco correspondente à capela caiada. Impressiona como uma povoação implantada a 600 metros de altitude pode estar numa cova, rodeada de montanhas mais altas do que ela.

Esta primeira visão frontal e mais próxima de Drave impressiona ainda porque aqui percebemos de forma esmagadora o seu isolamento. A povoação da Drave tem como referência mais antiga uma dos tempos de D. Dinis, no século XIV, e em 1527 aparecia registada no Cadastro da População do Reino como contando com dois vizinhos e oito pessoas (por comparação, Regoufe tinha oito vizinhos e trinta e duas pessoas). Foi no ano 2000, depois de a linha telefónica ter chegado apenas 7 anos antes e de a electricidade não ter chegado nunca, que o último habitante deixou a aldeia. Era um Martins, descendente da família mais antiga e representativa do lugar, dona do Solar dos Martins, o maior edifício de Drave. Os habitantes de Drave dedicavam-se em exclusivo à agricultura, em especial à cultura do milho e batata, e possuíam algum gado e cabras. Foi a fertilidade do vale, pela confluência de algumas linhas de água, que aqui fez estabelecer as pessoas, mas nas últimas décadas o tempo, “esse grande escultor”, foi afastando os habitantes mais novos, em busca de melhores condições de vida ou tão somente de escolaridade – nunca houve escola na aldeia.

Hoje praticamente tudo está em ruína e não fossem os escuteiros esta seria uma aldeia fantasma. São eles que têm vindo a reabilitar alguma das casas, tendo feito da Drave a Base Nacional da IV Secção do Corpo Nacional de Escutas e é por sua responsabilidade que a Drave ainda não morreu, preservando não apenas o edificado mas também as memórias do lugar com as suas iniciativas.

Um dos prazeres desta caminhada é deambular pelo casario de Drave. Assim o fizemos, primeiro do lado de cá da Ribeira de Palhais e, atravessada a pequena ponte, depois do lado de lá. É uma atmosfera incrível, espreitar pelas portas ou janelas já idas, ou até pelos pedaços de pedra que faltam nas fachadas, e ver a montanha diante nós.

Não se pense que são meia dúzia de casas. Não, a Drave era uma povoação grande e com muitas habitações. Implantadas em pequenas plataformas adaptadas ao terreno, quase como se de socalcos se tratassem, estão construídas em xisto e com telhados em lousa e possuem anexos de apoio à agricultura, como palheiros, currais, azenhas e espigueiros. Podemos ver um espigueiro maior abaixo da Capela, um espigueiro que servia toda a comunidade, exemplo do espírito comunitário destas povoações isoladas.

Um lamento, porém. Ao deixarmo-nos perder por entre as ruinhas e casinhas, percebemos que nem toda a gente que se propõe vir até Drave compreende este legado que mais uma parceria brilhante entre Homem e Natureza nos deixou. Inúmeras casinhas escancaradas pela falta da cobertura e partes da fachada estão repletas de lixo e, sobretudo, de papel higiénico. Está bem que temos de fazer as nossas necessidades fisiológicas, mas como se explica que haja gente que se abale a caminhar esforçadamente durante algum tempo para não respeitar o lugar de destino, por sinal incrível e único? Não desejo que optem pelo depósito deste tipo de resíduos na ribeira – há alternativas – até porque depois do passeio pelo casario de Drave ainda há que mergulhar na Ribeira de Palhais.

Este é outro dos pontos altos desta caminhada. As inúmeras poças e cascatas que se vão formando ao longo do vale. O Verão não é o melhor momento para as ver na sua máxima ou média força, daí que Maio ou Junho sejam os meses mais aconselhados para quem quer caminhar e mergulhar. Não nos tocou essa pujança ribeirinha, pelo contrário, a ribeira estava bem vazia e até dava para caminhar por ela.

Ainda assim, arranjámos um poço sem ninguém e com uma água transparente bem apelativa, para além de um recanto para um piquenique.

Depois de um merecido momento de descanso e reflexão por esta dádiva, iniciámos o caminho de volta. Mais custoso, uma vez que se na vinda havíamos descido, agora haveria que subir. Nada que os momentos relaxantes e de felicidade vividos anteriormente não nos tenham preparado para encarar.

Esta caminhada foi, em conclusão, uma das mais fantásticas que tive oportunidade de percorrer. Trilho com cenas grandiosas de montanha, povoação de construção vernácula em ruína, curso de água com poços cristalinos para tomar banho, tudo reunido, faz deste o passeio perfeito.

Se quiser saber mais sobre Drave pode assistir ao filme “Uma Montanha do Tamanho do Homem”, de João Nuno Brochado, lançado em 2014 e disponível em RTP Play aqui.

Trilho no Wikiloc

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