Cairo (continuação)

“Aqueles que nunca saíram das ruas direitas das cidades da Europa, não podem conceber a colorida e luminosa originalidade das cidades do Oriente” – Eça de Queiroz

O Cairo é uma cidade com 10 milhões de habitantes e a sua expansão parece não parar. Vibrante, tolhe os sentidos do visitante ocidental, pouco habituado a ambiente tão frenético. A arquitectura islâmica é dominante, com um sem fim de minaretes a rasgarem o horizonte, mas esta soube reinventar-se ao longo dos tempos e muito mais diversidade encontramos pela cidade, prova de que sempre foi lugar de cruzamento de culturas.

Em post anterior andámos pelo Cairo medieval e prosseguiremos por mais um exemplo de arquitectura islâmica na cidade, mas mais recente. O bonito Palácio Manial e seu jardim, está instalado numa ilha no Nilo próximo do centro da cidade. Sob a responsabilidade do Príncipe Mohamed Ali Tawfik, parte da família real e regente do trono até ao seu primo ter idade legal para ascender na sucessão do rei Farouk, a construção deste sítio começou em 1902 e ficou completada em 1937. Tem uma distinta Torre do Relógio, ao estilo de minarete e torres da Andaluzia e de Marrocos e um relógio construído pelo próprio príncipe com ponteiros em forma de cobras. Ao lado, uma Mesquita com uma bela decoração quer exterior quer interior e mais ao lado ainda um Museu da Caça.

Com o jardim de permeio, o Palácio fica do outro lado. Com dois andares e uma torre donde se observava o Cairo de então, este edifício servia de residência ao príncipe e mantém a decoração viva e muito pouco sóbria de outros tempos nas suas várias divisões. Gostei muito. E o Salão do Trono, edifício também com dois andares pouco mais adiante, não é maravilha menor. Em baixo, a Sala do Trono é fantástica, de arquitectura baseada no estilo dos kiosks turcos e decorada com o disco solar em cores douradas e pinturas de paisagens do Egipto e dos governantes da família de Mohamed Ali. Mostra na perfeição a ambição do príncipe em se considerar herdeiro legítimo a reinar. O segundo andar possuiu mais divisões (quartos e salas), como a sala da obsessão em estilo francês e dois salões de inverno.

Aqui perto fica o que é conhecido como Cairo Copta, lugar das mais antigas igreja, mesquita e sinagoga da cidade. Os coptas são os cristãos egípcios, tendo sido evangelizados por São Marcos, o Evangelista, logo no primeiro século. Mais tarde tomaram assentamento no Velho Cairo, no interior da antiga fortaleza romana da Babilónia construída pelo imperador Trajano, cujos restos das torres estão, precisamente, à entrada do Museu Copta.

Já centenário, este acolhe a maior colecção de artefactos coptas do mundo e é um ponto imperdível para se conhecer mais sobre esta cultura ancestral, uma cultura que a partir das influências de outras, como a faraónica, a grega, a romana, a bizantina e a otomana soube extrair elementos e desenvolver uma identidade muito própria. Neste museu podemos ver exemplos de escultura, têxteis (o produto mais característico da arte copta), pinturas (com bonitos ícones recolhidos dos antigos mosteiros e igrejas) e textos antigos. Os temas são sobretudo religiosos, mas, como curiosidade, diga-se que o clima árido do Egipto permitiu ao Egipto Copta preservar mais testemunhos para o estudo da vida do dia a dia nos tempos romanos e bizantinos do que qualquer outro país – veem-se objectos vários, como cosméticos e adereços, jogos e instrumentos musicais. A escrita copta é também um elemento em destaque, e no século III já o Antigo e o Novo Testamentos teriam sido traduzidos do grego para o copta, revelando o enorme impacto das escrituras na vida dos monges. Aliás, o monasticismo é a contribuição mais importante dos coptas para a civilização, sendo Santo António do Egipto conhecido como o “pai dos monges” por ter fundado o primeiro mosteiro do mundo no Deserto Oriental, no século III.

E o próprio edifício deste museu centenário é uma beleza em si, com salas, pátios e jardins onde se percebe o cruzamento das culturas – não faltam sequer as janelas mashrabiya.

Mas o que define o Cairo Copta são as suas muitas igrejas: hoje são seis, mas já foram muitas mais, algumas com origem no século V. Visitámos o Convento de São Jorge, a Igreja de São Sérgio (a mais antiga, construída sobre uma gruta onde se crê que Jesus, José e Maria tomaram refúgio após a sua Fuga do Egipto), a Igreja de Santa Bárbara e a Igreja Suspensa – literalmente. Os ícones voltam a encantar – a palavra “ícone” vem do grego “imagem” (com imagens de Cristo, da Virgem, de Santos e cenas do Antigo e Novo testamento) -, mas também alguns pormenores, como o trabalho de decoração das portas. Os altares relativamente despojados conferem tranquilidade aos lugares. E surpreende a parecença dos interiores destas igrejas com os das mesquitas.

No Cairo Copta surpreende ainda a sua entrada, uma ruela estreita fechada que é um mercado de livros expostos em ambos os lados. Um bom prenúncio para o que nos esperava no interior deste bairro.

Um pulo de gigante e cinco quilómetros depois chegamos ao centro do Cairo. A baixa da cidade fica ao redor da Praça Tahrir, lugar das manifestações públicas na cidade. Ainda na memória de todos nós está o ano de 2011, em que a ocupação da Praça por centenas de milhares de egípcios durante 18 dias levou à deposição de Hosni Mubarak, então presidente há 30 anos. E foi da Tahrir que em Abril de 2021 saiu a Parada dos Faraós com 22 múmias desde o Museu Egípcio rumo ao Museu Nacional da Civilização Egípcia, acompanhado por milhares de cairotas no local e muitos mais egípcios pela televisão. Com um obelisco no meio da Praça Tahrir, ao seu redor ficam alguns edifícios importantes, como a Liga Árabe, o Ritz e o Palácio Amir Muhamad. E também o Museu Egípcio, o velho museu que acolhe a mais fabulosa arte egípcia antiga e que vai resistindo de portas abertas até à tão esperada – e sempre adiada – abertura do novo museu, o Grande Museu Egípcio, perto das pirâmides no planalto de Guiza.

Esta zona da cidade possui diversos edifícios do que é considerada arquitectura europeia, com alguns exemplos de arte nova. Um destes edifícios em estilo clássico europeu serviu até de inspiração ao livro “Os pequenos mundos do edifício Yacoubian”, de Alaa El Aswany, uma boa leitura para quem quer conhecer das vivências dos cairotas de diferentes classes sociais.

Não muito distante, a ilha de Gezira, no Nilo, com o bairro burguês de Zamalek e outros edifícios icónicos, é a parte mais in do centro do Cairo. É aqui que fica a Torre do Cairo, um símbolo da cidade que com os seus 187 metros faz com que seja a mais alta estrutura do Egipto e do Norte de África, 43 metros mais alta do que a pirâmide de Kufhu de Guiza. Construída em forma de flor de lótus, símbolo da civilização faraónica, desde 1961 que do topo se obtém aquele que diz ser um dos panoramas mais incríveis do Cairo – infelizmente, um problema com o elevador no momento da nossa visita impediu que o pudéssemos confirmar, mas não duvidamos que assim seja.

Também o edifício da Ópera do Cairo é já um marco da arquitectura islâmica recente. A pioneira Khedivial Opera House, construída em 1869 por iniciativa do Quediva Ismail, responsável por fazer do Cairo a “Paris do Oriente”, havia sido completamente destruída pelo fogo, pelo que em 1988 foi substituída por esta jóia plena de equilíbrio.

E, para fechar em beleza, ao entardecer pudemos testemunhar a vida e alegria que rola livre nas águas do Nilo, onde os barcos com os convivas se enchem de cor e deixam que a música contagie as imediações, tudo isto observável desde as pontes sobre o Nilo que ligam a ilha a terra firme, mostrando que este rio mítico é ainda parte fundamental do Cairo.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s