“Cidade suspensa em palavras / As ruas são cordas vocais / E o silêncio é o bode expiatório” – Edmond Jabes Les Clefs de la Ville
O Cairo é a capital do Egipto e a maior cidade do Médio Oriente. Estamos em África, mas o ambiente sentido ao caminhar pelas ruas transporta-nos para outras paragens onde a cultura árabe e islâmica é dominante. Há muitos Cairos, o faraónico, o romano, o copta e até o europeu, mas é o Cairo Islâmico que mais seduz.

Durante o Egipto Antigo, as povoações iniciais na região do Cairo eram Heliópolis (On) e Mênfis, a poucos quilómetros de distância da hoje capital. Quando Alexandre, o Grande, chegou ao Egipto e fundou Alexandria, Mênfis acabou por entrar em declínio e nos nossos dias dela pouco mais resta do que ruínas – no entanto, a expansão actual do Cairo é tal que avança em força em direcção a Mênfis. Após a chegada dos romanos ao Egipto, em 30 a.C., foi fundada Babilónia e a correspondente fortaleza, ainda visível no que é agora o Cairo Copta. Foi aqui, fora das muralhas, que no ano de 640 os árabes chegaram trazendo consigo o islão e, em poucos meses, caiu Babilónia e o Egipto cristão, logo sendo fundada Fustat e construída a primeira mesquita do Egipto, a Mesquita de Amr – o significado de al-Fustat é “tenda”, em alusão ao facto de Amr Ibn al-As aqui ter instalado a sua tenda quando chegou para conquistar a região. Três séculos mais tarde, em 969 seria instituído o Califado Fatimida de al-Mu’izz e fundado “oficialmente” o Cairo, absorvendo as povoações vizinhas. Esta é a origem do Velho Cairo, uma cidade que, como escreve Max Rodenbeck em “Cairo, a Cidade Vitoriosa”, foi renascendo das próprias cinzas, sobrevivendo a inúmeras invasões, expansões e falências, fome, pragas e calamidades e a tudo resistindo, “à medida do seu clássico nome árabe, al-Qahira – a vitoriosa”. Serve esta pequena introdução para mostrar não apenas o cruzamento de culturas na região como também a antiguidade do Cairo. E, claro, em comum com todas estas povoações esteve sempre a sua proximidade ao rio Nilo.

A primeira ideia assim que chegamos ao Cairo é a de que a cidade não dorme. São quase três da madrugada e o ritmo citadino ainda se sente; mesmo num décimo andar de hotel com janelas fechadas o ruído dos carros ainda se faz sentir. Já de manhã, a deambular por qualquer rua da cidade, uma segunda ideia nos invade e será a que certamente mais perdurará na memória: a simpatia dos cairotas (que nos dias seguintes viríamos a saber ser extensiva aos demais egípcios); curiosos, perguntam de onde vimos e à resposta segue-se sempre um bem-vindas. Logo seguimos para o “Cairo Islâmico”, coração da capital e grande responsável pelo epíteto de “a cidade dos mil minaretes”.

O “Cairo Islâmico” ou Cairo Histórico” é parte da Lista do Património da Humanidade da Unesco e esta antiga e enorme parte da cidade acolhe um sem fim de monumentos que vão desde o século VII ao XX, com o apogeu a ter sido vivido no século XIV. Uma série de mesquitas, madraças, palácios, hammans, fontes e bazares fazem as delícias de qualquer viajante.

Começámos por entrar pela Bab Al-Fotuh com destino à Bab Zuwayla, prosseguindo pela rua Al-Muizz li-Din Allah al-Fatimi (uma das mais antigas do Cairo, com origem na Dinastia Fatimida que tomou a cidade no século X) e suas paralelas. Um labirinto de ruas estreitas e irregulares onde a qualquer momento aparece uma mesquita, umas vezes discreta e outras majestosa. À esquerda da primeira das Bab, ambas portas da antiga cidade muralhada Fatimida, logo nos deparámos com a Mesquita Al-Hakem.

Esta é uma área pedonal e percebem-se os trabalhos de reabilitação da zona histórica, embora muita ruína ainda persista, bem como uma intolerável lixeira para os padrões ocidentais.



Numa espécie de quarteirão na ruela al-Darb al-Asfar fica a Bayt al-Suhaymi. Esta casa otomana é o único exemplo de residência privada dessa época no Egipto que sobrevive completa até aos nossos tempos. A ala sul da casa data de 1648 e a ala norte de 1797, mas o nome vem do seu último residente, Sheik Muhammad Amin al-Suhaymi, professor e empreendedor têxtil. Hoje restaurada pelo estado egípcio e tornada monumento, por entre as suas cerca de 100 salas, com zonas de estar separadas para homens e mulheres, resiste alguma decoração e dois pátios. Entre diversas inovações em termos arquitectónicos e decorativos que trouxe ao Cairo podem ver-se os elementos esculpidos no mármore – uma importação turca -, os padrões nas grades das janelas, os motivos nas pinturas dos beirais de madeira e nos painéis com caligrafia escrita em otomano-turco com versos poéticos. E não faltam as maravilhosas mashrabiyas, uma técnica que desenvolveu uma arquitectura e estética únicas onde se joga de forma magistral com a luz. Estas janelas de madeira apareceram durante o século XIII e floresceram durante os períodos mameluco e otomano e estão organizadas de forma a permitir não apenas a ventilação, mas também a luz natural através dos seus rendilhados, para além de permitir às mulheres verem para fora sem serem vistas.


Apesar de ser domingo, dia em que as lojas encerram, ainda assim as ruas tinham movimento e cativou-nos ver como em qualquer lado se transporta e pousa o pão que há de ser vendido.

A tranquilidade acabou por ser ideal para perceber a arquitectura dos edifícios, mais livres do bulício e da confusão que sempre tomam as ruas do Cairo. Um bilhete único dá-nos acesso a uma série de monumentos do Cairo Islâmico (a Bayt al-Suhaymi não está incluída) e com ele pudemos visitar o Complexo do Sultão Qalawun, o Complexo do Sultão Barquq e o Palácio Beshtak (infelizmente acabámos por perder o Hamman Inal – banhos públicos).


O Complexo do Sultão Qalawu foi construído em 1283 por um dos mais famosos sultões mamelucos, Malik al-Mansur Saif al-Din Qalawun de seu nome. É considerado um dos grandes testemunhos da época mameluca e possuiu uma madraça, um hospital e o mausoléu do sultão e de sua família. Ibn Batuta, o viajante magrebino da época medieval, deixou-se deslumbrar por este complexo, em especial pela grandeza do seu hospital. A nós, hoje, são os seus elementos decorativos e as inscrições que produzem maior encanto – e os mirabes são uma verdadeira delícia.

O vizinho Complexo do Sultão Barquq, inaugurado em 1384, também com madraça e mausoléu, pareceu-nos ainda mais fantástico na sua decoração e sobretudo no seu belo pátio.

Do Palácio Bashtak, para além de algumas salas bem restauradas, retivemos a vista do último andar sobre o Cairo: uma cidade extensa onde se destacam as mesquitas e minaretes. E muita ruína. E mal suspeitaríamos a vista que nos esperava daí a poucas horas.

Chegadas ao Khan el-Khalili, a ideia de labirinto ganha ainda mais força. É o bazar mais famoso da cidade, com origem no distante ano de 1382, época em que os comerciantes paravam nos caravançarai para descansar. Foi a partir daqui que se criou este bazar, que foi crescendo e crescendo, de tal forma que dizem ser impossível não encontrar qualquer objecto ou bem que nos satisfaça. Para quem, como nós, não é muito dada às compras e os bazares costumam antes de mais causar uma enorme confusão interior, tomámos a decisão de ir directamente até ao Café El Fishawi. Uma instituição da cidade, até há poucas décadas era o lugar de reunião de escritores, poetas e músicos. Naguib Mahfouz, o Nobel da Literatura egípcio, parava por aqui. O El Fishawi pode ser um dos mais famosos e carismáticos, mas cafés é o que não faltam na cidade. O já citado Max Rodenbeck escreve que “no Cairo apenas uma instituição é mais comum do que as mesquitas: o qahwa, ou café. As estatísticas são menos precisas actualmente do que quando o exército de Napoleão contou 1359 cafés na Cidade dos Mil Minaretes, mas a proporção de 200 cidadãos para cada café não se alterou muito. (…) Estes locais de uso masculino são a principal fonte de negócios e recreio do Cairo. Os cafés desempenham a função que nas cidades ocidentais está a cargo dos bancos de jardim, das bancas de jornais, dos engraxadores de sapatos, dos bares locais e das casas da maçonaria.”.

À saída do Khan el-Khalili, a Mesquita Hussein está fora dos limites para não muçulmanos. Em contrapartida, pouco mais adiante encontramos a Mesquita Al Azhar, à disposição do encanto de qualquer crente ou não crente. “A esplêndida”, como é conhecida, foi construída no período Fatimida, em 968, mas reconstruída ao longo dos séculos. É uma das mais antigas do Cairo e a sua madraça evoluiu cedo para universidade, sendo a segunda mais antiga do mundo ainda em funcionamento. E o seu pátio revela uma harmonia incrível, com os minaretes a sobressaírem da elegante arcaria.

Atravessando mais uma zona de mercado, a atestar que não é apenas fama o carácter comerciante dos egípcios, logo ficamos diante da Mesquita do Sultão Al Ghouri. Nesta, o destaque vai todo para a incrível vista do seu minarete: impressionante a malha urbana esventrada, um cenário que parece de guerra que no momento da nossa visita foi acompanhado pelo som da chamada para a oração.


Mais umas centenas de metros e chegamos, por fim, à Bab Zuwayla e suas torres-minarete gémeas, mas pouco antes, porém, passamos pela antiga fonte pública Sabil Muhammed Ali Pasha, construída em 1820. As fontes são uma das características mais importantes da arquitectura islâmica, especialmente nos períodos mameluco e otomano. Estava, sobretudo, junto aos mercados e nos cruzamentos e em frente às mesquitas, no sentido de providenciarem água potável para pessoas e animais e para as abluções. A típica sabil possuía dois andares, o primeiro abaixo da terra com uma cisterna para preservar água fresca e o segundo uma sala com um painel de mármore esculpido chamado Selsabil. Mas esta tinha ainda um terceiro andar com o kuttab, sala que servia para memorizar o Corão e ensinar as crianças os princípios da leitura escrita e aritmética. Destaque para a sua fachada em mármore belamente decorada e restaurada, preservando ainda as grades de janelas douradas e os painéis caligráficos em turco-otomano, e para a “pala” do seu telhado em madeira.
Este passeio pelo Cairo Islâmico é coisa para demorar todo um dia e dificilmente se vê sequer metade das suas maravilhas – diz-se que a escala do Cairo medieval ultrapassava todas as cidades conhecidas e não custa a acreditar que assim fosse. Nas imediações muito mais haveria a explorar, mas infelizmente por falta de tempo não o conseguimos, tendo perdido a visita ao Museu de Arte Islâmica, um dos mais fantásticos do género.

Também parte do Cairo medieval, mas numa vertente altaneira à zona anterior, vale muito a pena conhecer a Cidadela. Erguida no Monte Mokattam, um promontório rochoso já de si fortaleza natural, em 1166 Saladino decidiu-se a construir a Cidadela como parte do plano geral de reforço da cidade e no sentido de a proteger de invasões, em especial dos cruzados do Levante. Diz-se que na construção dos palácios e mesquitas e outros edifícios foi usada pedra trazida das pirâmides de Guiza. E foi casa dos governantes egípcios durante sete séculos, mesmo após a tomada do poder pelos mamelucos e otomanos, quando o neto de Mohamed Ali se decidiu a mudar a sede do governo para o Palácio Abdeen, em baixo na cidade. Nos dias de hoje, tirando as pirâmides e o Museu Egípcio, é aqui que veremos mais turistas no Cairo.


E o sítio vale mesmo a pena, em especial pela vista esmagadora que daqui se alcança. Dos seus terraços, o Cairo estende-se aos nossos pés, numa vastidão imensa que Florence Nightingale não hesitou em qualificar como a melhor vista de todo o mundo, “uma floresta de minaretes e cúpulas e torres”. Vê-se o Nilo e, nos dias de maior visibilidade, até as pirâmides, símbolos inalterados há milénios que foram ganhando a companhia de outros elementos nos últimos séculos que agora procuramos identificar; a Mesquita do Sultão Hassan está logo abaixo e a Torre do Cairo mais lá para diante e por entre o castanho claro do mar de edifícios vemos a mancha verde do Parque Al Azhar, contraste singular na cidade onde raramente chove.



No interior dos muros da Cidadela encontramos o Palácio Gawhara (fechado), alguns museus militares e mesquitas. No lugar do que era o palácio de Saladino foi construída a Mesquita Mohamed Ali por ordem deste, fundador do Egipto moderno ao derrubar os mamelucos em 1811, tomando então o poder e instituindo a sua dinastia. Mohamed Ali acabou por falecer antes da sua conclusão, em 1857, e a sua mesquita acolhe o seu túmulo. Dominando o Cairo e de clara influência turca, é conhecida como a “mesquita de alabastro”, uma alusão a esta pedra aqui usada, entre outros materiais nobres. O seu pátio é rodeado por uma série de colunas e arcos e a sala interior é hiper decorada nos candelabros e nos tectos-cúpulas. Vê-se ainda a torre-relógio que arquitectonicamente não joga com o conjunto – é o relógio oferecido pelo rei francês como contrapartida pela oferta egípcia do obelisco da Praça Concórdia, em Paris.


E não deixámos a Cidadela sem antes espreitar a vizinha mesquita com a atraente cúpula verde. É a Mesquita Al Nasir Muhammed, mameluca, única que Mohamed Ali não destruiu, preferindo-a utilizar como estábulo.