“Vou agora estender-me em detalhe sobre o Egipto, porque, comparado com qualquer outro país, tem muitíssimas maravilhas e oferece obras que superam toda a ponderação; por esta razão falarei dele com especial cuidado.” – Heródoto
O Egipto é seguramente um destino presente no imaginário de qualquer viajante. Com mais de 5000 anos de história, as pirâmides, os faraós, os templos, os túmulos e o rio Nilo são elementos suficientes para encantar e fazer sonhar. A grandiosidade e longevidade é tal que custa a acreditar que da época dos construtores das pirâmides à época de Cleópatra, a última rainha do Egipto Antigo independente, dista mais tempo do que daqui até aos nossos tempos. Dito isto, ainda que não seja correcto tomar-se toda a sua história por igual, o certo é que este território foi palco de uma civilização misteriosa cujas artes, monumentos e deuses ainda hoje despertam fascínio.

E Egipto Antigo é, também, uma ideia essencial para a história da humanidade, seja como formação de governo, de florescimento da religião ou de desenvolvimento da agricultura. É a fonte de histórias, onde tudo começou.

As pirâmides são dos monumentos mais longínquos e enigmáticos. A estas construções não é alheia a cosmogonia egípcia, uma forma de entender o universo muito própria e muito diferente da nossa civilização (antiga e actual). O faraó era considerado um símbolo e pilar do estado e metáfora da eternidade. O intermediário entre o mundo humano e o mundo divino e o garante da felicidade da nação, permanência da ordem e da harmonia do cosmo. Daí a necessidade da preservação do seu corpo, mas também do seu nome e memória. A eterna felicidade da sociedade dependia, precisamente, de uma boa transcendência do seu chefe – alcançada com a preservação eterna dos seus restos mortais e a consagração à sua pessoa de um culto diário, garantias de constante bem-estar e tranquilidade para toda a comunidade. A técnica da mumificação surge, precisamente, da crença que depois da morte podia aceder-se a uma continuação da vida e, por isso, os defuntos deviam ser conservados da melhor maneira possível.

No planalto de Guiza, no deserto à beira Cairo, resistem três das mais impressionantes pirâmides: a de Khufu, Khafré e Menkauré – pai, filho e neto -, pertencentes à 4ª dinastia do Antigo Egipto, Império Antigo. A grande pirâmide de Khufu é a única das Sete Maravilhas da Antiguidade que sobreviveu até aos nossos dias e é guardada pela Esfinge, retrato do faraó e metade leão metade homem, a qual rende homenagem ao sol. Mas é em Sakara que encontramos a mais antiga das pirâmides e, ao mesmo tempo, a mais antiga estrutura feita pelo Homem ainda de pé e a primeira a ter sido construída inteiramente em pedra.

Obras imensas, não é à toa que o adjectivo faraónico tenha entrado no léxico de muitos para designar algo enorme e fabuloso. No entanto, as pirâmides não são as únicas obras de arte egípcias que fazem parte do imaginário de todos os humanos. Muitas delas vimo-las até antes mesmo de colocar pé no Egipto, como o obelisco na Praça da Concórdia, em Paris, o busto de Nefertiti no Neues Museum, em Berlim, ou a Pedra de Roseta no British Museum, em Londres. E a riqueza dos túmulos e sarcófagos dos faraós cativam todos nós. Em Novembro de 2022 fez, precisamente, 100 anos da incrível descoberta do túmulo intacto de Tutankhamon. Descobertas que não cessaram ainda, e a todo o tempo vão surgindo novos tesouros e informações trazidos pelos arqueólogos e estudiosos da história do Antigo Egipto.


O fascínio da Europa pelo Egipto levou à criação da egiptologia, e para isso muito contribuiu a expedição de Napoleão ao Egipto no final do século XVIII. Acompanhado de uma vasta equipa de cientistas e eruditos, dela resultou a obra “Description de l’ Egypte”, uma verdadeira enciclopédia que veio preencher lacunas do conhecimento deste país, do seu povo, das suas artes, da sua flora e fauna e dos seus monumentos antigos. E assim foi despertada a curiosidade e atenção do mundo face ao Egipto, tendo muitas das artes decorativas desde aí criadas buscado inspiração no mundo oriental e árabe.

E, depois, como se não fosse suficiente o atrás descrito, temos o Nilo. O mais longo rio do mundo é também ele fonte de vida e encanto. 95% da população do Egipto vive à beira Nilo (como curiosidade, registe-se que apesar de 90% do seu território ser deserto, apenas 1% da população aqui vive). Heródoto definiu o Egipto como um “dom de Nilo” e, efectivamente, sem o Nilo não haveria Egipto. Esta faixa no deserto via, a cada ano, as suas águas transbordarem as margens, inundando as terras e assim regenerando e fertilizando os campos agrícolas. A zona fértil estendia-se por uns 800 kms entre Assuão e o Cairo, com um enorme delta a norte cheio de braços com uma extensão de 23 000 km2 formado pelo mesmo Cairo, Alexandria e Port Said. Nos dias de hoje, 70% da população egípcia vive neste delta. A construção de uma primeira barragem em Assuão, no começo do século XX, terminou com este fenómeno de sucessivos alagamentos, uma irrigação natural, substituídos por fertilizantes que juntamente com altos índices de salinidade e uma terra intensamente cultivada fez com que o solo perdesse qualidade. Mas ainda capaz de gerar culturas de arroz, trigo e milho. Assim como colocou fim à passagem dos crocodilos nas águas do Nilo (o rio toma o nome deste réptil e o templo de Kom Ombo, por exemplo, é dedicado a Sobek, o deus crocodilo), agora encravados no Alto Nilo e seus afluentes. Muito antes disso, porém, já o leito do Nilo havia mudado cerca de 1,5 kms para leste, levando à seca do antigo porto de Mênfis. Na época antiga, o Baixo Egipto ia do delta a Mênfis e o Alto Egipto compreendia o Vale do Nilo desde Mênfis à primeira catarata de Assuão.

Diz-se que a beleza do Nilo faz com que os problemas dos homens pareçam ilusórios. Muitos foram os que se prestaram a por ele deixar-se levar, em especial transportados por uma felucca ou dahabiya, as embarcações tradicionais do Nilo. Gustave Flaubert e Agatha Christie deixaram-se por ele inspirar. Calouste Gulbenkian deixou-se fotografar em Edfu, junto à estátua do deus-falcão no templo de Hórus. E Indiana Jones encontrou a Arca Perdida em Tanis. E foi no delta do Nilo que a descoberta da Pedra de Roseta por um soldado de Napoleão levou à decifração da escrita hieroglífica. E se no Vale do Nilo abunda uma série de vestígios arqueológicos, com as pirâmides e templos à cabeça, no delta só não haverá testemunhos comparáveis, não porque não tenha aqui vivido a cultura faraónica, mas pelas constantes alterações do curso do Nilo que as terão feito desaparecer.

A Península do Sinai, a nordeste do Egipto, é também lugar da humanidade, traçando a divisão entre África e Ásia e uma ponte onde se cruzaram êxodos, conquistas e colonizações. Esta terra de montanhas e geografia bruta é património comum das três grandes religiões monoteístas, e aqui os cristãos coptas mantém a sua fé e os beduínos resistem a abandonar a vida nómada. A ocidente fica o Deserto Líbio e seus oásis. O de Siwa, dito por Heródoto “ilhas de benção”, foi onde Alexandre, o Grande veio a consultar o oráculo que lhe garantiu a legitimidade das suas conquistas por ser o filho de Amon / Zeus (nota: não visitámos nem o Sinai nem os oásis).

E o Mar Vermelho, uma língua de água entre o continente africano e a península arábica, é também parte do imaginário judaico-cristão, o mar bíblico onde as águas se abriram à passagem de Moisés. Apesar de as suas águas serem acompanhadas por um deserto rochoso onde as condições de vida são extremas, os fundos deste mar são donos de formas e cores inimagináveis, onde uma explosão de vida pode ser observada apenas com uns óculos e tubo.

Já o Cairo é uma mescla de sensações e culturas – o antigo e o novo, o moderno e o decadente – e presta-se a inúmeros epítetos: “a Mãe do Mundo”, “a cidade das mil e uma noites” e “a cidade dos mil minaretes”. Nas palavras de Naguib Mahfouz, o escritor egípcio Nobel da Literatura em 1988, o Cairo era como encontrar o amor na velhice. Cidade que se vem reinventando desde sempre, sobreviveu a inúmeras invasões, expansões e falências, e foi On (Heliópolis para os gregos), a seguir Mênfis, depois Fustat ou Misr al-Qadima – a al-Qahira, “a Vitoriosa” dos árabes. Ao longo da sua distante história, a maior cidade do Médio Oriente, há pelo menos 1050 anos no cruzamento das civilizações, foi acumulando muito pó e lixo, de tal forma que nos velhos bairros da moderna Cairo séculos de detritos provocaram uma subida do nível da rua de cerca de 7 metros em mil anos – ao passarmos hoje em Bab Zuwayla, andamos à mesma altura a que andaria alguém que por ali passasse em cima de um camelo no século XI.

Luxor e Assuão, no Alto Nilo, são dois lugares onde se podem observar dos mais deslumbrantes e imponentes templos. Luxor, a antiga Tebas, foi capital do Egipto na época dos Impérios Médio e Novo e é aqui que estão 1/3 de todos os momentos antigos no mundo. E no Vale dos Reis foi descoberto o Túmulo de Tutankhamon, paradigma do esplendor do mundo faraónico. Assuão, por sua vez, aos templos a visitar junta as vistas superiores de rio junto ao deserto, sendo considerada a mais bonita parte do Nilo. E é a capital Núbia do Alto Egipto, o povo lendário de guerreiros de pele negra, olhos claros e traços finos que desde tempos ancestrais se dedicava à agricultura e à pesca. Abu Simbel, a uma distância de três horas de carro pelo deserto, é onde encontramos os templos escavados na pedra para Ramsés II e sua amada Nefertari (não confundir com Nefertiti). A construção da barragem de Assuão levou a que fossem mudados uns metros do seu local original para o local onde estão hoje, para que não fossem inundados pela água do maior lago artificial entretanto criado pelo Homem.

O desenterrar das pirâmides e o achamento do túmulo de Tutankhamon trouxe aos egípcios a redescoberta do seu passado antigo, levando a que nos finais do século XIX e princípios do século XX crescesse a ideia de nacionalismo. Independente apenas em 1952, com o golpe de estado do general Mohammed Naguib, em 1954 subiu ao poder o coronel Gamal Abdel Nasser, que nacionalizou o Canal do Suez e fez do Egipto uma referência árabe. A Revolução de 2011, conhecida como “Primavera Árabe”, levou a protestos na Praça Tahrir até à queda de Hosni Mubarak. A instabilidade trouxe uma quebra económica e social, junto com a queda do turismo. Essa situação e a pandemia da Covid-19 foram argumentos para os sucessivos adiamentos da inauguração do novo Grande Museu Egípcio.

De qualquer forma, mesmo que não tenhamos tido a oportunidade de conhecer esta enorme estrutura museológica onde arquitectura e arte se juntam com vista para as pirâmides de Guiza, a viagem pelo Egipto encheu-nos por completo as medidas. Um conselho, porém: antes da partida, há que preparar a viagem em termos de conhecimento. Qual o sentido das pirâmides? É o mesmo que o dos túmulos? Para quem foram erguidos os templos? Tutmosis, Akhenaton e Ramsés são primos de Tutankhamon? Mênfis não era a terra do Elvis? Amon e Amen são o mesmo deus? E Khufu, Khafré e Menkauré é igual a Quéops, Quéfren e Miquerinos? Os nomes tanto aparecem com a designação dada pelos egípcios como pelos gregos e para nós, que não somos académicos mas antes meros curiosos, é fácil confundirmo-nos e não sermos exactos. Embora não tenhamos essa pretensão, as semanas de estudo prévias à viagem propriamente dita prolongam-se até hoje – a civilização do Antigo Egipto e o Egipto contemporâneo cativam-nos e fazem-nos querer saber mais. Felizmente, muito há para ler, ver e ouvir. Desde “O Egipto”, de Eça de Queirós, ao recente “Como é que a Esfinge Perdeu o Nariz”, de Inês Torres, passando por qualquer obra do incontornável Nobel da Literatura egípcio, Naguib Mahfouz, não se deixe de ler também “Os Pequenos Mundos do Edifício Yacoubian”, de Alaa El-Aswany, e “Cairo: A Cidade Vitoriosa”, de Max Rodenbeck. Faça-se um intervalo nas leituras e veja-se ou reveja-se o filme “Morte no Nilo”, baseado na obra de mesmo nome de Agatha Christie, enquanto Umm Kulthum, a grande diva do mundo árabe, não chega com a sua poderosa voz para dar toda uma nova dimensão à história.