Qualquer viagem ao Cairo não pode deixar de contemplar a visita aos seus museus de arte egípcia antiga. Por enquanto são pelo menos dois, o Museu Egípcio e o Museu Nacional da Civilização Egípcia, mas em breve se lhes juntará outro, o Grande Museu Egípcio.


O Museu Egípcio é conhecido como o Museu do Cairo e é o mais antigo museu arqueológico do Médio Oriente. Inaugurado em 1902 e localizado na Praça Tahrir, possui uma extensa colecção de antiguidades egípcias desde o período pré-dinástico ao período greco-romano, o que é o mesmo que dizer que é um dos mais fabulosos museus de arte faraónica. É uma viagem na história através das suas cerca de 120 mil peças que mostram a vida do dia a dia do Egipto Antigo e há que lhe dedicar muitas horas e, até, repetidas visitas. E o mais curioso é verificar como a arte é aqui exposta e visitada, numa autêntica forma popular de a viver: há peças de arte por todos os cantos, algumas delas até amontoadas, e os visitantes não se coíbem de as admirar com a maior das proximidades, tocando-as até quase as fazerem suas. Tudo muito longe do respeito que nos habituámos a demostrar pela arte. E uma curiosidade relativamente a grande parte destes objectos de arte está no facto de eles terem sido criados para não serem vistos; antes, o seu destino era serem “usados” no outro mundo, guardados no túmulo para servirem o defunto na eternidade.

Dito isto, eis alguns dos pontos altos do Museu Egípcio:
Máscara funerária do Faraó Tutankhamon – É o objecto mais famoso do museu. A máscara dourada do faraó menino, da 18ª Dinastia, foi descoberta por Howard Carter em 1922 num túmulo quase intacto no Vale dos Reis, Luxor, hoje designado por KV62. Tem 54 cm de altura, 39,3 cm de largura e 49 cm de profundidade e pesa 10,23 kg. Possui duas camadas de ouro e várias incrustações de pedras preciosas. É encimada pelas insígnias reais que representam uma cobra e um abutre, símbolos do governo quer do Baixo quer Alto Egipto.
Tesouro de Tutankhamon – Ficaram famosas as palavras de Howard Carter quando Lord Carnarvon, seu mecenas, lhe perguntou se podia ver algo no momento da entrada no túmulo de Tutankhamon: “sim, coisas maravilhosas”. O tal túmulo praticamente intacto do rei Tut, como passou a ser carinhosamente tratado, tinha 5398 objectos. Uma riqueza fabulosa. Para além da referida máscara dourada, o defunto era acompanhado pelo deslumbrante trono dourado, carruagens – incluindo uma com o elegante cão / chacal Anubis (o deus do Além, protector dos defuntos) -, vasos canopos, estátuas, shabtis (pequenas figuras cujo significado é “repostas”, que trabalhariam para o defunto no Além), barcos funerários, diversas jóias e amuletos, roupa e têxteis, objectos de cosmética, jogos, instrumentos musicais, mobiliário como camas, cadeiras, arcas de ébano e de madeira e muitos outros objectos. No fundo, tudo o que fosse necessário para esta vida e a outra. Incluindo comida.

Paleta de Narmer – Descoberta em 1898 no Templo de Hórus, em Nekhen (Hieracompolis), capital do Alto Egipto na época pré-dinástica. Datada do século 31° a.C., é considerada a primeira obra de arte e o primeiro documento histórico do mundo e nela está representada a unificação do Alto e Baixo Egipto sob o governo do rei Narmer que, assim, tornou-se o primeiro rei do Egipto unificado e fundador da 1ª dinastia. Entre várias cenas, numa das faces Narmer aparece a usar a coroa branca do Alto Egipto (sul) e na outra a coroa vermelha do Baixo Egipto (norte) – juntas simbolizam a unificação das duas terras.
Estátua de Ka-aper – Do Império Antigo, data de 2540-2505 a.C. Esculpida em madeira de sicómoro, representa Ka-aper, em pé, chefe dos sacerdotes responsável por recitar rezas para os mortos nos templos e capelas funerárias. O incrível pormenor dos olhos, feitos de cristal, calcite e cobre, faz dela uma estátua super expressiva e realista, o que contrasta com o idealismo da representação dos reis e sua família. Foi encontrada em 1860 perto da pirâmide do rei Userkaf, em Sakara.

Estátua de Djoser – Esta estátua do antigo faraó da 3ª dinastia, Império Antigo, é a mais antiga estátua em tamanho real, encontrada em 1925 junto à sua Pirâmide Escalonada de Sakara. Sentado, é aqui apresentada com o painel de faiança azul que estaria na sua pirâmide, pretendendo significar o paraíso eterno e não apenas um propósito decorativo.

Tríades de Menkauré, Hathor e Deusa – Encontradas no Templo de Menkauré, em Guiza, mostram o rei que construiu a terceira pirâmide de Guiza entre duas figuras femininas, à direita Hathor, coroada com o disco solar entre dois cornos de vaca, e à esquerda personificações de diferentes nomes (províncias) do Egipto com os seus símbolos escritos acima da cabeça. O rei Menkauré usa a coroa branca do Alto Egipto e o shendyt-kilt, pretendendo usufruir da ressurreição e da fertilidade de Hathor através das oferendas eternas.


Estátua de Khafré – Esta estátua em pedra de diorito de Tushki, recolhida próximo de Abu Simbel, mostra que o poder de Khafré se estendeu até ao sul do país. Foi encontrada no templo deste rei da 4ª dinastia, junto à sua pirâmide em Guiza e é uma das mais icónicas estátuas do Antigo Egipto. É diante de obras destas que somos gratas pela oportunidade de perceber na perfeição os seus pormenores, como o magnetismo desta pedra robusta e escura e o belíssimo falcão Hórus de asas abertas na parte posterior da cabeça de Khafré, protegendo-o e legitimando o seu estatuto real. O rei Khafré está sentado no trono e usa ainda os nemes de cobra na sua cabeça, também símbolos de realeza e protecção. A flor de lótus e a planta do papiro juntos no símbolo do trono representam a unificação do Alto e Baixo Egipto.

Estátuas do príncipe Rahotep e sua mulher Nofret – Encontradas em 1871 na sua mastaba em Meidum. Rahotep seria filho do rei Senefru e irmão do rei Khufu. Esta obra deixa-nos ficar a pensar sobre elementos interessantes, como a cor de cada personagem: mais escura a pele do homem e mais clara a da mulher – há quem defenda que é porque eles sairiam mais à rua, mas o mais provável é que não seja assim, antes uma convenção da arte egípcia. E, uma vez mais, destaque para a expressão muito realista dada pelo vidro nos olhos das estátuas.

Estátua Colossal de Amenhotep III e Tiye – Esta escultura imensa em pedra calcário do rei Amenhotep III e sua mulher e três das suas filhas domina o hall central do Museu Egípcio e é considerada a maior estátua representando um par de figuras. Foi consideravelmente restaurada e as cabeças estão intactas, mas numa das suas laterais conseguimos perceber os veios da pedra quebrados, espécie de cicatrizes ainda com pontos, e espanta que após tantos milénios ainda consiga manter-se íntegra e conservada. Veio de Madinet Habu, em Luxor.

Máscaras funerárias de Yuya e Thuya – Pais da rainha Tiye, mulher de Amenhotep III, e avós do faraó Akhenaton, o seu túmulo descoberto em 1905 no Vale dos Reis, Luxor, continha muitas maravilhas e muitos desses elementos estão aqui expostos, funcionando como que uma antecâmara ao tesouro mais famoso de Tutankhamon – antes da descoberta deste havia sido o túmulo mais rico encontrado. As duas máscaras funerárias de ouro nas múmias são “apenas” um dos seus fantásticos objectos, entre os quais se inclui ainda um papiro completo e bem preservado que contém o livro dos mortos escrito em hieróglifos e com imagens coloridas e detalhadas.

Estátua do Escriba Sentado – Da 5ª dinastia, século 24 a.C., esta estátua foi encontrada num túmulo em Sakara e representa um escriba desconhecido. Os escribas tinham por função relatar as comidas armazenadas, os procedimentos da corte, os impostos e taxas e situações do dia a dia, bem como escrever os documentos legais. Estavam, pois, próximos do topo da pirâmide social. Este é representado sentado, com as pernas cruzadas, posição comum na representação destas figuras, e numa das mãos, super detalhada, segura um papiro enrolado. Mais uma vez, os olhos desta estátua são impressivos. Esta figura está representada na nota de 200 LE.
Arca Dourada com Vasos Canopos – Parte do tesouro de Tutankhamon, esta peça maravilhosa é uma arca que servia para guardar os vasos canopos onde, por sua vez, eram guardados os órgãos internos dos defuntos. Howard Carter descreveu o momento em que a viu como um dos mais bonitos que alguma vez testemunhou, de tal forma que o deixou engasgado de admiração. A arca está banhada a ouro e em cada um dos seus lados tem estátuas representando as deusas da morte de braços abertos como protecção. Os vasos canopos em alabastro são igualmente graciosos.

Cabeça de Hatchepsut – Uma das poucas mulheres faraó, Hatchepsut reinou entre 1473 e 1458 a.C. O seu sucessor, Tutmosis III, tentou apagar tudo o que lhe dizia respeito, como monumentos, estátuas, imagens e até o nome. Esta estátua escapou e estava diante dos pilares da colunada do seu templo mortuário em Deir el-Bahari, Luxor. Apesar da cabeça incompleta, percebe-se a coroa vermelha do Baixo Egipto.

Esfinge de Hatchepsut – Em pedra calcário, nesta esfinge apenas o rosto tem forma humana, e não a cabeça toda. Este exemplo é um de dois que se pensa terem flanqueado a rampa entre os terraços do templo mortuário de Hatshepsut.

Estátua do anão Seneb e sua família – Encontrada na sua mastaba em Guiza, Seneb era o sacerdote funerário dos reis Khufu and Djedefra e também responsável pelo seu guarda-roupa. Mas a maior curiosidade desta estátua é podermos perceber como se relacionava um casal no Antigo Egipto – repare-se no gesto de afecto da sua mulher – e na posse típica das crianças – nuas e com o dedo na boca.
Ao longo do museu temos ainda a possibilidade de conhecer uma série de sarcófagos lindíssimos e incrivelmente decorados. Diante deles percebemos os relevos, cores, símbolos, rosto e até cabelo com materiais que parece cortiça. Uma delícia.

Mas a obra de arte que mais cativou foi a estátua de Ramses II com falcão. É linda e perfeita, delicada na pedra imaculada em que foi trabalhada. A parte posterior, nas costas de Ramses II, possui apenas uma pena longa de falcão para nos arrebatar por completo.

O Museu Nacional da Civilização Egípcia, por sua vez, fica em Fustat, a primeira cidade fundada pelos árabes no Egipto, hoje às portas do Cairo, e abriu de forma parcial em 2017. Aliás, muito ainda está em desenvolvimento, no âmbito de um projecto mais alargado de reabilitação da vizinhança, e os seus jardins ainda não estão totalmente abertos ao público, embora possamos desfrutar do cenário incrível do seu exótico lago Ain Al-Sira.

No dia 3 de Abril de 2021 o desfile “The Pharaohs’ Golden Parade” saiu do Museu Egípcio e atravessou as ruas do Cairo com 22 múmias de antigos reis egípcios até chegar ao seu novo destino no Museu Nacional da Civilização Egípcia. A exposição das múmias reais é, pois, o ponto alto da nossa visita e nela incluem-se as múmias de reis como Ramsés II, Seti I, Tutmosis III e a rainha Hatchepsut. A mumificação devia-se às crenças do Antigo Egipto de que depois da morte podia aceder-se a uma continuação da vida, sendo por isso os defuntos conservados da melhor maneira possível de forma a que pudessem habitar o corpo eternamente – se o corpo não fosse preservado intacto, a alma estaria condenada à busca vã e eterna do seu suporte físico. As técnicas foram mudando ao longo dos tempos, mas a mumificação ideal envolvia remover os órgãos internos como pulmões, fígado, intestinos, estômago e cérebro, para evitar a decomposição do corpo, sendo depois conservados nos vasos canopos. Durante um período de 70 dias o corpo era desidratado com natrão (uma mistura de sal e bicarbonato de sódio), ungido com óleos, ervas e resinas, e envolvido em faixas. E então encerrava-se o morto num sarcófago, acompanhado pelos seus bens mais preciosos e rodeado dos ditos vasos canopos. Foi a partir de 1881 que o Serviço de Antiguidades Egípcio começou a recuperar as múmias, caixões e objectos funerários e, ao trazê-los para o Cairo, os começou a estudar e mostrar. E o estudo destas múmias possibilitou o conhecimento sobre a dieta, doenças, crenças funerárias, economia, ciência e medicina dos antigos egípcios. As múmias dos reis do Império Novo são das mais perfeitas alguma vez feitas.

Mas este museu não se limita à exposição de múmias. Pelo contrário, a sua boa organização permite-nos acompanhar a história da antiga civilização egípcia desde a época da sedentarização das sociedades do Vale do Nilo, no longínquo Neolítico, onde a agricultura desempenhava um papel primordial na vida dos antigos egípcios e foi o motivo para o seu sedentarismo. Umas esculturas mostram a representação de figuras a fazer pão, um dos mais antigos produtos baseados em culturas agrícolas, e com elas aprendemos que os antigos egípcios conheciam mais de 40 tipos de pão, variando os ingredientes e a forma, e que já na época havia sobremesas e que a palavra egípcia que se lhe referia – ka’k – está na origem da palavra cake usada em muitos pontos do globo.

Não falta um destaque para a escrita antiga egípcia, sendo a invenção da escrita considerada uma das mais importantes contribuições do Antigo Egipto para a humanidade: no 4° milénio a.C. já tinham inventado um método de escrita pictográfica baseado num sistema logográfico em que os sinais eram desenhados para expressar não apenas imagens mas também fonemas.

Apresentam-se uns modelos de barcos, o principal e mais antigo meio de transporte no Antigo Egipto, quer de pessoas, animais, bens, pedras ou madeira. Mas também de barcos sagrados, o transporte dos deuses e suas procissões – os antigos egípcios acreditavam que o outro mundo continha um rio celestial equivalente ao Nilo, onde os deuses viajavam nos seus barcos e os espíritos se atravessavam no seu caminho da ressurreição; por isso é que modelos de barcos eram colocados nos túmulos funerários para representar a jornada dos mortos para o cemitério e seu equivalente para o outro mundo.

Como exemplo da vida quotidiana, vários instrumentos musicais antigos estão expostos (de sopro, percussão e de corda), atestando o papel essencial que a música desempenhava então, sendo um símbolo da sua alegria nas celebrações e festivais.
A exposição segue atravessando o período Greco-Romano: quando Alexandre invadiu o Egipto, em 332 a.C., o Egipto tornou-se parte da civilização helénica, tendo depois caído sob o domínio de Ptolomeu I, um dos mais proeminentes líderes de Alexandre. O reino ptolomaico independente do Egipto durou de 305 a.C. até à invasão romana em 30 a.C. Este período testemunhou muitas mudanças culturais, com destaque para o facto de Alexandria ter sido fundada como capital do Egipto e através da sua biblioteca e museu rapidamente se ter tornado um centro universal de ciências, cultura e artes no Mediterrâneo. E a arquitectura floresceu e o Farol de Alexandria foi considerado uma das Sete Maravilhas da Antiguidade.
Prossegue pelo período Copta, importante a nível religioso e artístico, e pelo período islâmico. O Egipto tornou-se um estado islâmico em 642, tendo a sua história atravessado diversos califados e dinastias, incluindo o sultanado Mameluco (1250-1517), o período otomano (1517-1805) e a dinastia de Muhammad Ali (1805-1952) até se tornar uma república em 1952. Há muito parte integrante da cultura islâmica, o Egipto é um dos mais importantes centros de ciência, literatura, arquitectura e artísticos do mundo islâmico. A pujança dos seus museus assim o confirmam.