Junto ao Largo Trindade Coelho, dominado pela Igreja de São Roque, fica o Palácio dos Condes de Tomar e o Palácio Portugal da Gama. Num instante, o largo que os lisboetas conhecem como o do Cauteleiro, pela estátua do senhor a vender cautelas que aí está instalada, tornou-se num pólo cultural, na sequência do restauro de uma série de elementos arquitectónicos, uma iniciativa da Santa Casa da Misericórdia.


Em 2017, diante da Igreja de São Roque, havia sido instalada a estátua do Padre António Vieira, lisboeta nascido nas cercanias que se tornaria no famoso jesuíta dos sermões, aquém e além mar, tendo um desses sermões tido lugar, precisamente, nesta igreja. A Igreja de São Roque dispensa apresentações, sendo uma das mais fabulosas da cidade, incluindo o seu museu. Do lado contrário da Rua da Misericórdia a tornar-se Rua de São Pedro de Alcântara, Chiado a subir para o Príncipe Real com o Bairro Alto de permeio, estão o recém restaurado Palácio Portugal da Gama / São Roque (actual Casa Ásia – Coleção Francisco Capelo) e o Palácio Condes de Tomar (Brotéria).



O Palácio Condes de Tomar foi construído no século 19, sobre um edifício quinhentista de que ainda restam vestígios da cisterna e a galilé com azulejos. Foi um rico comerciante da Baixa lisboeta que legou o edifício ao pai de Adelaide Dias e Sousa, a futura Condessa de Tomar por via de casamento com o filho de Costa Cabral, o político setembrista e 1.° Conde de Tomar. Mais tarde, e até 1950, o palácio acolheu o Royal British Club e em 1973, depois de adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa, foi nele instalada a Hemeroteca Municipal. Em 2013 a Hemeroteca mudou-se para as suas actuais instalações, no Rego, e a Comunidade Brotéria da Companhia de Jesus tomou o seu lugar no Palácio Condes de Tomar, entretanto adquirido pela Santa Casa da Misericórdia. O edifício estava, então, muito degradado. Após obras de restauro, em 2020 reabriu e é hoje um espaço cultural – a Brotéria – que os jesuítas fazem questão de manter de portas abertas para todos os que o queiram visitar, numa parceria com a Santa Casa. Para além disso, existem com frequência visitas guiadas ao edifício – e foi à boleia de uma delas que o visitámos.

Os jesuítas possuem uma longa história. Fundada em 1534 por Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus seria reconhecida pelo Papa em 1540. Expulsos em 1759 pelo Marquês de Pombal, voltaram a Portugal, mas foram novamente expulsos logo após a implantação da República, em 1910; regressaram novamente na década de 1920. Conhecida desde sempre pelo seu espírito missionário e pelo empenho no conhecimento e no ensino de base humanista, os membros da Companhia de Jesus destacaram-se em diversas vertentes, como a arte, arquitectura, ciência, pedagogia e, claro, espiritualidade. Brotéria é o nome da comunidade de jesuítas hoje instalada no Palácio Condes de Tomar, dedicando-se à investigação e à produção literária e crítica. Foi criada no exílio do início do século passado, na Bélgica, e a ideia era a de continuar a obra de Avelar Brotero, o grande impulsionador da botânica em Portugal. Para tal, criaram a revista Brotéria, uma revista científica fundada em 1902 e que entre 1980 e 2002 foi o órgão oficial da Sociedade Portuguesa de Genética, por decisão do então seu director e jesuíta biólogo Luís Archer. A publicação cultural de inspiração cristã continua até hoje com edição mensal. E, agora, o espaço cultural Brotéria propõe-se acolher e fomentar diálogos entre a fé e as culturas urbanas contemporâneas.




O edifício da Brotéria possui uma livraria, uma cafeteria, um pátio acolhedor, uma biblioteca e um espaço de exposições. Até um atelier de restauro de livros (SalvArte). Há ainda diversas salas, para se estar a ler e/ou pensar e onde são promovidos cursos, conferências e seminários. Cada uma das salas / espaços tem um nome: Pátio das Cecilias, Aula da Esfera, Homem Espuma, Brotéria Genética e Casa de Escritores, todos nomes baseados nas vivências da comunidade. E em todas as salas se veem obras de arte contemporânea, todas elas emprestadas, incluindo obras de Lourdes Castro. Logo à entrada, junto à imponente e elegante escadaria, vê-se uma obra de Rui Chafes.


Esta escadaria é o elemento de maior carácter cenográfico, em curva e com medalhões decorativos com representação das 4 estações do ano, para além de decorações em estuque nas paredes e um lanternim no topo que a ilumina de forma natural.


Já no andar nobre, os frescos dos tectos das salas produzem novo encanto, um elemento romântico com a representação de cenas variadas.

Na antiga sala de jantar do palácio, o Sala dos Couros, as paredes, revestidas a couro, estão decoradas com imagens de cabras e o brasão dos Costa Cabral, família que, por via de casamento, se tornou proprietária da casa.


Por fim, destaque para a Capela: é aqui que o propósito de diálogo entre a fé e as culturas urbanas atinge a perfeição. A fotografia de João Penalva, a imagem do emaranhado de fios de Osaka, num Japão tão histórico para os jesuítas, representa o encontro de culturas, uma metáfora para o diálogo pretendido.

Ao lado do Palácio Condes de Tomar está o Palácio Portugal da Gama / São Roque, tendo ambos em dado período da história pertencido à mesma família – e são ambos agora propriedade da Santa Casa da Misericórdia. O edifício será do século 17 e terá sido pertença dos frades trinos e, depois, propriedade da família Portugal da Gama, que lhe conferiu a arquitectura tardo-barroca. Restaurado e reabilitado pela Santa Casa, abriu em 2024 como Casa da Ásia. Abriu discreto, num Abril em que a Santa Casa atravessava polémica pelo afastamento da sua provedora pelo novo governo.




Desde então, a Casa da Ásia apresenta a Coleção Francisco Capelo, constituída por cerca de 1300 objetos que o colecionar foi juntando ao longo de 25 anos, doada à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em 2017. Apaixonado pela arte oriental, este acervo abrange uma diversidade de obras de arte de várias regiões da Ásia, do século III a.C. aos inícios do século XX. Procurando representar o melhor que foi feito por asiáticos para asiáticos, e não um olhar português ou uma relação entre os mundos ocidental e oriental, apresenta peças provenientes de catorze países da Ásia: Índia, Nepal, Sri Lanka, Tailândia, Myanmar, Laos, Vietname, Camboja, China, Coreia, Japão, Indonésia, Timor-Leste e Filipinas.




E são peças bem bonitas, como uma estátua de Buda a caminhar (da escola de Sukhotai, do século XIV), um biombo namban (dividido em 6 partes, com a representação da cidade de Edo / Tóquio), uma máscara noh (teatro japonês), um cavalo em terracota da China (e outros animais), um pagode chinês, várias estatuetas da Índia, pinturas e outros objectos de arte mogol, um conjunto de chá e têxteis da Tailândia, diversas cerâmicas, caixas de laca e jóias. Até um pé de um Buda de meia tonelada. Gostei. Para todos aqueles que não podem viajar até à Ásia ou visitar um dos museus dedicados à arte oriental nas maiores cidades europeias, este é um museu imperdível.