Já que estávamos com a bicicleta no Porto, com o objectivo de na volta pedalar daí até Espinho, aproveitámos para no dia anterior nos deslocarmos na cidade também através desse modo suave. E a verdade é que da Rua de Santa Catarina é possível seguir até à Praia da Boa Nova, em Leça da Palmeira, sempre em terreno plano junto ao rio / mar e daí voltar igualmente sem esforço e atravessar o Parque da Cidade, visitar Serralves e a Casa da Música e chegar sãs e salvas à casa partida.
Descendo pela Avenida dos Aliados e seus edifícios de decoração elegante, deixamos a Estação de São Bento e seus deliciosos azulejos para trás e num ápice estamos cá em baixo junto ao Palácio da Bolsa e à Igreja de São Francisco. A partir daqui é sempre a pedalar com a água por companhia. A água do Douro que nos transporta pela Alfândega, Miragaia, Massarelos, Ponte da Arrábida e Cantareira até chegarmos à Foz e passarmos a ter a água do Atlântico como companheira.
E a partir do Jardim do Calém, onde fica o Observatório de Aves do Rio Douro, temos já uma ciclovia ao nosso dispor até à entrada do concelho de Matosinhos.
A Cantareira é um excelente aperitivo da Foz. Terra do Chico Fininho, o freak da Cantareira, é uma antiga zona portuária onde não é preciso entrar no rio para se pescar. Mas, claro, são os barcos que dominam a bela paisagem aberta ao Douro e ao Atlântico, porque a pesca tradicional ainda tem aqui raízes, bem como a reparação de barcos e redes. Do outro lado fica a Afurada, sua parceira piscatória.
O Jardim do Passeio Alegre é muito bonito, com as suas frondosas palmeiras a chamarem a atenção, mas vale a pena passar dentro do jardim e ver as suas esculturas e chafariz.
E já com o muito fotografado Farolim das Felgueiras ali à mão de semear começam então a suceder-se as famosas e concorridas praias da rica Foz (Ourigo, Ingleses e Luz). Ramalho Ortigão, autor de “As Praias de Portugal”, não é esquecido e uma placa lembra-nos que a Foz é a “residência querida da minha (sua) infância”.
Seguimos no caminho sempre plano, ideal para nos concentramos ora na paisagem natural do mar ora nos elementos criados pelo Homem e bem cuidados, como a octogenária Pérgola da Foz e os jardins do Homem do Leme e Montevideo. Não faltam sequer uns assentos artísticos para melhor contemplarmos o cenário.
Mas eis que chegamos ao Castelo do Queijo e num repente se instala uma furiosa neblina. Mal se viam os muitos surfistas ali na Praia de Matosinhos, a gigante Anémona só demos por ela por que a rasámos e o novo edifício do Terminal de Cruzeiros perdeu-se na totalidade naquele nevoeiro cerrado. Pudemos, no entanto, pisar as areias desta praia, típica pela sua paisagem industrial das infra-estruturas do Porto de Leixões. E observar compungidas a Escultura Tragédia no Mar. Esta é uma homenagem aos 152 pescadores, e suas viúvas e órfãos, que perderam a vida no maior naufrágio da costa portuguesa, que aconteceu nesta região em 1947.
E já que estávamos em Matosinhos pela hora do almoço, nada melhor do que uma paragem num dos seus muitos restaurantes na rua junto à Docapesca. Peixe fresco e doses generosas é o que nos espera.
Atravessado o Rio Leça chegamos a Leça da Palmeira.
A Avenida Marginal de Leça tem o traço de Álvaro Siza Vieira, um projecto de 2005. Zona pedonal por excelência, onde as pessoas e bicicletas se confundem numa área larga, por ela afora temos o prazer de visitar ou rever dois dos primeiros projectos de Siza, a Piscina das Marés (1966) e a Casa de Chá da Boa Nova (1963), ambos classificados como Monumento Nacional.
O complexo da Piscina das Marés funciona de acordo com a época balnear. Fora desta época a entrada não é paga, o bar mantém-se aberto, mas não há vigilância dos banhos das duas piscinas e de mar. As piscinas são de água salgada e confundem-se com as rochas à beira mar, numa integração preciosa com a paisagem natural. O próprio acesso ao espaço desde a Avenida não forma nenhuma ruptura com a vista do horizonte, já que é feito por uma rampa que nos deixa junto ao nível dos vestiários, das piscinas e do mar.
A conexão plena entre arquitectura e natureza é igualmente soberba no projecto da Casa de Chá da Boa Nova e o desígnio de Siza de “construir na paisagem” terá tido aqui o seu maior alcance. Tendo crescido na zona e sendo esta bastante familiar ao arquitecto, Siza integrou de forma majestosa o edifício na vegetação e nas formações rochosas aí existentes, tendo igualmente analisado o clima e as marés locais. Chá e neblina condizem, mas o restaurante Boa Nova que o chef Rui Paula dirige desde 2014 e que o levou a alcançar uma Estrela Michelin também não destoa nada do ambiente. O edifício foi recuperado e o mobiliário interior reproduzido conforme os originais desenhados pelo próprio Siza. Desta vez não entrámos, mas não é necessário fazê-lo para perceber que as salas de refeições estão envolvidas nas rochas e apenas o suficientemente enterradas nelas para que deixe as vistas de janelas livres para contemplar o mar. Podemos percorrer as rochas no exterior para melhor apreciar os planos da implantação deste edifício, mesmo se isso implique alguma intromissão nas refeições e trabalho de quem está no interior. Os preciosos detalhes deste projecto, à semelhança do da Piscina das Marés, estão igualmente no acesso ao edifício. A ele chegamos discretamente depois de atravessado um pequeno parque de estacionamento e ao subir dois patamares de escadas e só aí nos apercebemos da obra-prima: uma casa branca com telhado de madeira que quase beija as rochas. Um momento de delicadeza junto a uma paisagem bravia.
A envolvente da Casa de Chá são as rochas e o mar, já se disse. Mas próximos temos ainda a Capela da Boa Nova e o Farol da Boa Nova, uma estrutura de 46 metros que faz deste o segundo maior farol da nossa costa.
Chegadas a este ponto, a Praia da Boa Nova, Matosinhos continua por aí adiante, mas estava na hora de regressar ao Porto. Desta vez já não pela Foz e natureza marítima e fluvial, mas antes por aquela criada pelo Homem. O Parque da Cidade e os Jardins de Serralves são momentos de recato no Porto. A Casa da Arquitectura, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves e a Casa da Música são ícones de um novo Porto moderno.