Acordamos, na Roça São João dos Angolares, ainda com alguns resquícios da tempestade nocturna. O céu encontra-se cinzento e pesado. Fica a dúvida se vai desabar de novo. Torcemos para que não. Queremos explorar as praias das redondezas.
A vista, com céu cinza ou menos cinza, é linda. Arrebatadora, na verdade. Numa só imagem compila e resume o que é ser tropical e exótico.
Movemo-nos pela casa principal. O tempo já não é colonial, mas toda a atmosfera criada pela arquitectura exterior e interior leva-nos até essa época.
Tomamos um pequeno-almoço carregado de produtos locais e, enquanto o céu não abre, vamos até ao centro da povoação de São João dos Angolares. Historicamente, Angolares é considerada uma terra misteriosa povoada por descendentes de escravos angolanos que se julga terão naufragado na região no século XVI. Esses escravos foram liderados por Amador, o qual se tornou o rei dos Angolares e foi imortalizado através de um busto que marca a praça principal da cidade.
Caminhamos. À saída da roça cruzamo-nos com as plantações de café, para logo entrarmos num contexto mais urbano. Ainda que o conceito urbano seja diferente dos nossos referenciais.
Deparamo-nos com várias pequenas vendas. Umas mais monofuncionais, como a banca que só tem bananas.
Mais à frente fica a escola. Os miúdos estão a ser preparados para ir dar um passeio. À frente da escola encontra-se um ponto de venda de combustível.
Para uns metros adiante darmos com uma praça.
As cores vivas, ainda que já um pouco gastas, das paredes contrastam com o cinza que marca o tempo. Na latitude a que residimos, maioritariamente, céu cinzento corresponde a frio. Porém, ali, a atmosfera é de calor. Calor húmido.
Ladeamos a praça central. A maioria das pessoas está em jeito leve-leve, a ver a vida a passar. A vida por aqui tem outro ritmo.
Decidimos, ainda, não entrar no miolo da povoação. Prosseguimos, a pé, pela estrada principal, como quem vai sair da povoação em direcção a sul. Mais à frente, uns miúdos perfilam-se à frente de uma televisão, modelo início dos anos 80 do século passado. O desafio é sintonizá-la. No meio da falta de sintonia, não se vê cor, antes cinza. Parece que há conformidade com o tempo do dia.
As crianças aguardam pacientemente e com uma alegria expectante. Do nosso lugar, olhamo-las e não temos como não questionar as nossas vidas de excessos tecnológicos.
Seguimos. Cruzamo-nos com mais um ponto informal de venda de combustível.
Pela estrada, passam por nós trabalhadores agrícolas, com o seu instrumento de trabalho mais essencial, a catana. Brinco e assinalo que esta, nestas paragens, é equivalente ao computador portátil nas sociedades mais desenvolvidas.
Enquanto isso encaminhamo-nos para o Mionga, pequeno restaurante, onde almoçaremos mais tarde, junto ao rio prestes a desaguar na Praia de Santa Cruz.
Ficamos na parte de trás da praia. À nossa frente cinco camadas: vegetação, rio, areal, mar e céu. A conjugação de todas resulta em perfeição.
Temos que voltar de novo em direcção à povoação para acedermos ao areal. Pelo meio passamos por árvores da fruta pão. Só depois acedemos à praia.
Aquela hora ninguém se encontra a brincar nas suas águas. Por sua vez, os barcos descansam em terra. Mais à frente os pescadores reparam as redes e organizam os aprestos.
Debaixo de um telheiro uns homens calmamente conversam. Há todo um outro modo da vida acontecer.
Voltamos a subir para a povoação pelo percurso de uma linha de água. O piso está escorregadio e dividimos a atenção entre o caminho, para mantermos os passos firmes, e a envolvente. Todas as habitações são muito humildes. A simpatia dos locais é inversamente proporcional à riqueza material. No campo material a palavra que mais se adequa é ausência.
Chegamos ao centro da povoação. À área do mercado. A vida corre viva. Há vendas. Há movimento. Ouvimos piropos. Vimos crianças a brincar.
Enquanto o peixe seca. À espera de entrar num calulu.
Mais além, os miúdos mais velhos estão a sair da escola. Nós voltamos à roça de São João dos Angolares. Pegamos no jipe e voltamos a encaminhar-nos para norte. Vamos rumo às praias. Faz calor e queremos um mergulho.
Vamos até à praia das Sete Ondas. A areia é escura, a água também, o tempo também. Por essa razão, o verde da envolvente, naquele dia, também se apresenta escuro.
Não há ninguém. Deixamos as nossas pegadas, numa caminhada, pelo areal virgem.
A vontade de nos fazermos ao mar aumenta.
Preparamos as barbatanas e a handplane e vamos surfar. Estreia absoluta de uma sessão de bodysurf por África. O mar não está perfeito, ainda assim apresenta-se razoável para uma sessão divertida. Enquanto deslizamos pelas paredes das ondas, castanhas, qual cacau, ao longe, junto à estrada os locais deslocam-se nos seus trabalhos a carregar coisas de um lado para o outro.
A água está quente e temos que, momentaneamente, emergir os nossos corpos para arrefecerem.
De barriga cheia de ondas, ainda tentamos esticar a toalha e deitarmo-nos na areia. Porém, o calor emanado pela areia escura é tal, que rapidamente desistimos.
Entretanto começa a pingar. Chuva que não atrapalha em nada. Deixamo-nos ficar, em pé, a absorver aquela praia só para nós.
Voltamos para sul e paramos em Ribeira Afonso. Os locais estão na rua e sente-se a vibração. A vida corre. Soa música, o peixe e o milho estão a assar nos grelhadores, as crianças brincam, os porcos e as galinhas circulam pelas ruas.
Junto à praia fica uma banda de habitações. Também ali está a igreja, um conjunto de barcos na areia e miúdos a brincar na água, também ali mais escura.
Apontamos de novo para sul e passamos por Colónia Açoriana, outrora uma roça com produção, e pelo seu secador, hoje em ruína.
A estrada, como muitas vezes, está rodeada de vegetação. E faz-se de curvas. A seguir a cada curva vislumbramos verde. Muito verde.
Sempre que passamos por um rio, lá estão as mulheres a lavar a roupa e a loiça.
A paragem seguinte é em Micondó. Outra praia. Ao longe parece-nos deserta.
Quando chegamos percebemos que é quase só para nós. Apenas três rapazes pescam. Paramos o jipe debaixo das frondosas árvores e mais uma vez entramos e nadamos nas águas quentes do Golfo da Guiné.
São todas as memórias do dia que nos embalam à noite, na Roça São João dos Angolares.