Cais do Ginjal, varanda de Lisboa

É inevitável. Um passeio pelo Cais do Ginjal, em Almada, leva-nos a não tirar os olhos da vizinha Lisboa no outro lado do rio.

É sobretudo de vistas de que se trata esta viagem. Mas também de história de um pedaço de terra que até há pouco tempo foi um ponto estratégico em termos industriais e comerciais. A sua decadência e ruína são hoje evidentes e custa a crer que algo com esta localização tão fabulosa possa estar tão marginalizado.

Mas vamos à história. Espremida entre a falésia e o rio Tejo, com o Cristo-Rei à espreita, o Cais do Ginjal é uma língua de terreno que tem nas suas costas uma arriba que sobe alto e com pressa.

Sabe-se que a ocupação humana de Almada vem desde a Pré-Historia e é provável que estas terras junto ao rio também tenham sido pisadas pelo Homem desde essa época. Este porto habituou-se desde há muito a ser lugar de pesca e de embarcação de diversos produtos para além do peixe, como frutas, vinha e até ouro. A capital do reino estava mesmo diante si e o transporte fluvial era então rei.

Os tempos áureos do Cais do Ginjal aconteceram sobretudo no século XIX. Em 1845 a família de comerciantes de João Teotónio Pereira instalou-se ali e dinamizou toda a zona, criando uma indústria ligada ao abastecimento da frota pesqueira e à tanoaria e ao armazenamento de vinho, azeite e vinagre. Para além disso, construiu uma quinta de veraneio junto aos vários edifícios de armazéns ribeirinhos.

O que contribuiu decisivamente para o declínio de todas estas indústrias que empregavam uma série de trabalhadores que davam vida e alegria a esta nesga de território foi a inauguração, em 1966, da Ponte Oliveira Salazar. A ponte sobre o Tejo, hoje Ponte 25 de Abril, veio acabar definitivamente com a era em que muito do transporte de mercadorias ainda era efectuado por via fluvial. Hoje, em sua substituição, assiste-se antes à passagem dos Cacilheiros e dos veleiros e até dos grandes navios de cruzeiro. As águas do Tejo foram substituídas pelo asfalto da ponte para o transporte das mercadorias das várias indústrias que laboravam no Cais do Ginjal.

Sobram os seus edifícios decadentes, acostados na arriba também ela aos caídos. As fachadas da maior parte dos antigos armazéns foram tomadas pelos grafittis e as suas portas e janelas esventradas deixam ver a confusão de entulho lá dentro. Os avisos de “perigo de derrocada” sucedem-se, mas os caminhantes seguem no seu passo de lazer, a maior parte das vezes, já se disse inevitável, entretidos com a vista para Lisboa.

Esta pode não ser já uma localização estratégica em termos comerciais, mas continua belíssima e muito disputada. As terras do Cais do Ginjal são propriedade privada e discute-se há anos a apresentação e posterior discussão e aprovação por parte da autarquia de um plano para esta zona que prevê a sua reconversão com a construção de casas de habitação, indústrias criativas, espaços culturais, lojas, praças e passeios. E, tão importante quanto isto, um plano que garanta a estabilização da arriba.

A melhor forma de chegar ao Cais do Ginjal continua a ser por via fluvial. Aportamos no Cacilheiro laranja, símbolo do Tejo partilhado entre Lisboa e Almada, e contornamos a pitoresca Cacilhas pela sua frente ribeirinha. Os pescadores estão por todo o lado, e não sei se a vista para Lisboa os chega a distrair das mordidelas no anzol por parte das suas presas.

Vemos ao fundo o Panteão, com o já habitual barco de cruzeiro estacionado à sua porta, depois a Praça do Comércio, as torres das Amoreiras, o porto de Alcântara, a Ponte 25 de Abril e a Torre de Belém debaixo das suas asas. Esta é uma vista soberba e não cansa olhar para Lisboa, exposta por inteiro e recostada só para nós.

Os pontões enferrujados e que parecem mal se suster são pontos de vista ainda mais privilegiados suspensos no rio. Algumas praias de areia com um ar não menos desmazelado não convidam ao repouso. E a imagem graffitada do ciganito Quaresma disputa as paredes com a imagem de uns pescadores de outros tempos e com o ET. Até com Jesus Cristo. Ao Cais do Ginjal não falta uma pitada de cultura popular deste século.

Não arrisco entrar nos edifícios, levando muito a sério os avisos de perigo de derrocada. Da porta escancarada de um deles vê-se um carro em ruína, como as paredes e o tecto que (não) o abrigam.

Mas, pensando bem, talvez não estejamos todos os que aqui passamos a levar muito a sério estes avisos de perigo de derrocada, pois o passeio é tão estreito que esta caminhada não parece totalmente segura. Mas seguimos adiante.

E chegamos a uma das partes mais bonitas do Cais do Ginjal, onde ficam umas praias mais convidativas, a vista livre e total para a Ponte 25 de Abril e umas antigas casas de pasto hoje transformadas nos super concorridos restaurantes Ponto Final e Atira-te ao Rio. É difícil imaginar uma refeição mais idílica e cénica com Lisboa como panorama.

Destes restaurantes umas escadinhas sobem até Almada Velha. Mas continuando um pouco mais podemos fazê-lo igualmente através de uma viagem no Elevador da Boca do Vento. O seu jardim está muito bem cuidado e aqui, sim, temos um convite irresistível para nos deixarmos estar, sentados na relva a contemplar o Tejo e Lisboa.

Não subimos, ainda, até Almada. Em bom rigor, o solo que agora pisamos já não é mais o do Cais do Ginjal. Continuando um pouco mais junto ao rio estamos agora na Fonte da Pipa e no Olho de Boi, onde encontramos o Museu da Indústria Naval. Foi no sítio do Olho de Boi que no século XIX se instalou a Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, edifício este ocupado no século seguinte pela Companhia Portuguesa de Pescas. Hoje, os seus escritórios estão, à semelhança de quase tudo por aqui, abandonados. No seu cais restam os muitos pescadores ocasionais.

Mais à frente, logo a seguir a mais uma praia, há de vir o lugar da Arealva com a sua quinta apalaçada que em tempos serviu de armazenamento de vinhos. A Ponte 25 de Abril está cada vez mais perto, mas o caminho até lá torna-se mais e mais perigoso pela possibilidade de derrocadas quer das arribas quer dos edifícios, pelo que optei por não seguir adiante.

Meia volta volver e subindo pela estrada do Olho de Boi havemos de ganhar novas vistas fantásticas no caminho. A melhor destas vistas aguarda-nos no miradouro da Boca do Vento donde se aprecia toda esta faixa ribeirinha. Os telhados destelhados e outros edifícios com a cobertura já perdida confundem-se e deixam-se perder no verde da vegetação que cobre a arriba. Daqui, o Tejo ganha outro encanto e torna-se ainda maior.

Para rematar em mais beleza a jornada, de Almada Velha levamos ainda a vista da Casa da Cerca, o Centro de Arte Contemporânea de Almada. O seu jardim é belíssimo, um daqueles lugares ao qual se faz questão de voltar sempre e que não se esquece.

A vista brutal que daqui se alcança, essa, ainda menos se esquece. E, mesmo ao longe, aqui confirmamos o dito: “quem não viu Lisboa, não viu coisa boa”.

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