Um Passeio pelo Rio Alva

Adoro rios. A terra rasgada por um pedaço de água, seja ele um fiozinho estreito ou um braço largo, faz com que a paisagem, aos meus olhos, ganhe logo outro encanto.

Vivo à beira Tejo, exemplo de braço largo, de tal forma que por vezes sem se ver a outra margem mais parece um mar. Mas o rio da minha infância, aquele onde dava infinitos mergulhos e nadava entre ambas as margens, é o Alva.

O rio Alva nasce em plena Serra da Estrela, a 1651 metros de altitude, perto da povoação mais alta de Portugal, o Sabugueiro. O local exacto onde começa o Alva não é unânime, uma vez que existem algumas dúvidas sobre qual dos troços da Ribeira de Fervença escolher para seu início. De qualquer forma, são cerca de 115 os quilómetros que percorre até se encontrar com o Mondego em Porto da Raiva, perto de Penacova, a menos de 100 metros de altitude. Para além da Serra da Estrela, o Alva corre sob a protecção da Serra do Açor, atravessando ou passando ao largo de aldeias dos concelhos de Seia, Oliveira do Hospital e Arganil.

Umas vezes sobe, outras desce, numas flui espaçoso, noutras mais encaixado, quase que furando a terra para ganhar espaço para passar. Sereno nuns casos, inquieto noutros. O Vale do Alva é, quase sempre, sinónimo de belas paisagens. A Estrada da Beira deixa-nos à porta de várias aldeias que cresceram à beira rio, mas para além delas surgem outras alcandoradas na montanha verdejante salpicada por pedras de xisto ou granito.

Por estas terras estiveram outrora os romanos a explorar o ouro, nomeadamente junto a Côja, e muito depois deles criou o salteador João Brandão a sua fama. Terra de lendas, deixaremos para o fim a história da criação do Alva junto dos seus irmãos Mondego e Zêzere, os três rios que orgulhosamente nascem na Serra da Estrela.

Após nascer no Sabugueiro o Rio Alva desce, mas não muito, até à Senhora do Desterro e, logo depois, mais abruptamente, até à Lapa dos Dinheiros, a cerca de 600 metros de altitude. Eis a nossa primeira paragem nesta jornada acompanhando o Alva. E esta paragem é logo um magnífico cartão de visita para o que mais haverá para vir. Com praias fluviais de excelência ao longo do rio, a da Lapa dos Dinheiros é um recanto escondido por entre a vegetação para lá da aldeia de mesmo nome. A aldeia de casas brancas fica bem no alto da montanha, quase custa a crer que o motor do carro aguente a viagem até lá. Mas por uma boa paisagem e uma boa praia fluvial tudo se aguenta. Até mesmo umas cobras no caminho (é isso, as cobras gostam de rios, pelo que há que partilhar o espaço com elas).

A pequena lagoa de água translúcida com umas rochas cénicas faz-nos esquecer tudo o mais e a indicação das Quedas da Caniça faz-nos seguir caminho sem temer. Uma levada estreita transporta-nos pela mata e o muito arvoredo e vegetação não nos permitem mais do que ouvir o barulho das quedas. Até que uma pequena aberta aparece e vemos então ao fundo a água a despenhar-se dos rochedos. Na verdade, estas são águas do Rio Canção que metros abaixo desaguará no Alva.

A próxima paragem é Vila Cova à Coelheira. O nome não engana, esta aldeia está mesmo instalada numa cova e uma daquelas bem fundas. À sua entrada vê-se um conjunto de edifícios abandonados e em ruína, de uma antiga fábrica de lanifícios. Por aqui fica ainda uma central hidroeléctrica. E Vila Cova à Coelheira tem uma praia fluvial tranquila como a paisagem que a circunda e adornada por uma ponte romana que cruza a água do Alva.

Uns 10 kms adiante, por estradas onde a vista do Vale do Alva enquadrado pela Serra da Estrela é épica, surge Sandomil. A sua ponte pode não ser romana (apesar de os romanos por aqui terem andado, a ponte será medieval), mas a sua beleza não é menor. São três arcos que produzem uns reflexos incríveis na água do rio, devidamente vigiados por uma pequena capela.

Segue-se a praia fluvial de São Gião. Com um parque de campismo e uma extensa área de apoio a que não faltam sequer umas pranchas de salto para o rio, esta zona tem tudo para ser um sucesso recreativo. Neste fim de tarde, porém, menos de dois anos após os assoladores fogos de Outubro de 2017, não pude deixar de focar a atenção na desolação da paisagem circundante, despida da frondosa vegetação de outros tempos, feita de muitos pinheiros e castanheiros, mas também choupos e salgueiros.

Esta região é o troço de Alva que melhor conheço, mas a paisagem está em muito irreconhecível. A terra queimada deixou à vista rochas que antes estavam tomadas pelo intenso arvoredo, há cabeços despidos que embora já não estejam negros se percebe que lhes falta algo e aproveitou-se o corte das árvores para se alargar a estrada em alguns pontos. As memórias de outros tempos não dizem respeito apenas a uma paisagem perdida. Normalmente ficávamos pelo rio da Ponte das Três Entradas, mas quando nos juntávamos a pessoal que tinha carro podíamos seguir até à Rapada. Mas onde, exactamente, fica a Rapada (e o Pego? e a Moenda?)? Antes, as zonas mais acessíveis de rio não tinham infra-estruturas. Conhecíamos o lugar, descíamos por atalhos e aí nos deixávamos estar, ao fresco das árvores e da água do rio. Os nomes dos lugares vinham de longe, ouvidos aos antepassados. Hoje, quase todas as aldeias à beira Alva têm um acesso de luxo ao seu rio, com áreas de lazer a condizer e bem sinalizadas.

É o caso de Penalva do Alva e de Santo António do Alva, com as Caldas de São Paulo pelo caminho e seu conjunto pitoresco de pedrinhas a fazer a água rolar de forma diferente antes de chegar ao Aqua Village, o projecto turístico de maior renome da região.

A praia fluvial de São Sebastião da Feira é hoje uma das minhas preferidas. Tem um língua de areia onde podemos estender a toalha e o cenário que nos rodeia é o ideal para nos fazer alhear do bulício citadino: vegetação intensa cortada por uma linha de água clara e fresca com uma nora a adornar o postal.

A Ponte das Três Entradas continua linda, embora sem o esplendor de outros tempos, onde debaixo das suas árvores ou no seu açude intacto aguardávamos intermináveis horas de digestão impostas pela avó até que pudéssemos finalmente dar um mergulho. Diz a sabedoria popular que é aqui que o Alva deixa de ser ribeira e ascende à categoria de rio. Uma ponte com um desenho único, com três arcos sob os quais se juntam as águas do Alvôco e do Alva para que este possa então correr sozinho em nome próprio.

A Ponte gira à volta da sua sempre magnífica praia fluvial, mas esta povoação é como que uma centralidade, com parque de campismo, restaurantes e um hotel que actualmente consegue até superar os bons velhos tempos de ontem.

E daqui para a frente o Alva passa por duas aldeias que valem muito a pena serem exploradas e apreciadas para além do rio: Avô e Vila Cova de Alva. A sua implantação geográfica encaixada no vale do Alva é uma inspiração.

Vasco Campos, médico e poeta reputado da região, dedicou-lhe vários dos seus versos, como este:

“Do Rio Alva princesa,

Castelã do verde manto;

Deu-lhe o passado a nobreza

E a natureza o encanto.

No seu quieto abandono,

Senhora de antigo brio,

Servem-lhe os montes de trono,

Canta-lhe trovas o rio!”

A surpresa está ainda em encontrar, em cada uma destas povoações, um núcleo urbano feito de casas apalaçadas e até um castelo, caso de Avô.

Avô, que chegou a ser considerada uma das mais belas aldeias de Portugal, têm uma deliciosa praia fluvial à qual não falta sequer uma ilha, a ilha do Picoto.

Antes de seguirmos de Vila Cova para Coja há que fazer um desvio até Barril do Alva e à sua praia fluvial de mesmo nome e à do Urtigal. São mais um recanto de pacatez com as devidas infra-estruturas, como um parque de caravanas e um bar, para além de umas águas que permitem o justo repouso. Miguel Torga passou por aqui e diz-se que o ambiente o inspirou a escrever o seu poema “Saudação”, uma ode às aves Guarda-Rios, aí inscrito numa lápide. E sobre o Alva escreveu “É bonito, o Alva! Manso, claro, calado, sem a tragédia do Douro nem a grandeza do Tejo, é bem o rio da Beira”.

Coja, então. A “princesa do Alva” é uma das mais carismáticas e gabadas povoações da região. É mais uma das tais cujo interesse não se esgota no rio, embora este lhe dê inequivocamente uma boa parte da sua beleza. Abaixo do seu casco antigo bem preservado e pitoresco corre o Alva e podemos optar por uma das duas praias fluviais oficiais de Coja, a do Moinho de Alva ou a do Caneiro.

Esta última é das mais procuradas da região. Extensa, há lugar para todos à beira das belas águas guardadas pela floresta.

Já estamos perto de Arganil, terra da secular Comarca de Arganil e do médico Fernando Valle. O Alva não passa mesmo aqui, antes a Ribeira de Folques, um seu afluente, mas com Arganil de permeio temos mais duas boas praias fluviais, a de Secarias (Cascalheira) e a de Sarzedo.

O Rio Alva irá em breve tornar-se mais largo, mas continuará a serpentear. Atravessamos a ponte do Maladão e a zona da Albufeira das Fronhas traz-nos um outro tipo de paisagem, mais aberta e selvagem. Nestas águas do rio tornado barragem existem várias zonas de pesca desportiva autorizada como a de Sail e a de Vale de Espinho.

Moura Morta, cujo nome se dá a especulação e nos leva a deixar a imaginação solta, é uma aldeola altaneira donde se avista o Alva na sua versão novamente tranquila. Pode-se ir até à sua beira, mas a imagem de cima é imprescindível para garantir que levamos o Alva no coração.

Estamos já perto da foz do Alva, mas há que fazer mais uma paragem obrigatória, desta vez na praia fluvial do Vimieiro. No meio do (quase) nada surge um dos mais bonitos pedaços acessíveis do Alva. Com um afamado restaurante e lugar para piqueniques à beira rio e espaço fácil e sossegado para um mergulho, esta é uma boa despedida do nosso rio.

O Rio Alva desagua poucos quilómetros adiante no Mondego, no lugar de Porto da Raiva, perto de Penacova. Já misturado com as águas do Mondego, havemos de ter face a nós uma obra da natureza materializada num recorte surpreendente das rochas. É a Livraria do Mondego. Uma paisagem selvagem, talvez feita de raiva.

E aqui chegados, terminamos com a prometida lenda do Alva. Conta-se que os três rios irmãos nascidos na Serra da Estrela, o Alva, o Mondego e o Zêzere, após uma discussão nocturna decidiram disputar entre si quem seria o mais valente e chegaria primeiro ao mar. Assim, no dia seguinte cada um seguiria o seu caminho em busca dessa valentia e o Mondego, previdente madrugador, levantou-se cedo e foi deslizando silenciosamente pela Guarda, Celorico, Gouveia, Manteigas e Raiva, onde os primos ribeiros a ele se juntaram tornando-o mais forte, até chegar à Coimbra. O Zêzere, atento, não tardou a sair e escondido por entre os penhascos dirigiu-se a Manteigas, passando pela Guarda e Fundão, mas, cansado, em Constância acabou por perder-se nas águas do Tejo. Já o Alva, esse, passou a noite a contar as estrelas, e a sua veia de poeta e sonhador fez com que adormecesse. Quando acordou já os seus irmãos iam longe. Furioso, pôs-se a caminho rasgando montes e rochedos, atravessando penhascos e vales. Mas deu com o Mondego já adiantado a chegar ao mar. Tentou, então, expulsar o seu irmão do leito, aumentando a sua fúria e espumando de raiva ao ver que o Mondego, impávido e sereno, se preparava para o engolir. O lugar onde esta luta se deu ficou para sempre conhecido como Raiva. Mas nos dias de hoje não há aqui mais tormenta, antes uma serenidade feita da união das forças da natureza.

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