
De Lamego saímos pela EN2 despedindo-nos da sua bela avenida central com a Nossa Senhora dos Remédios no alto do monte de Santo Estêvão. Pela estrada fora, os campos de vinhas terminaram, mas os montes e vales continuam presentes. Assim como as curvas. Com cuidado, ultrapassamos um homem a cavalo na Estrada, embora não haja grande trânsito. Reconhecemos castanheiros para além da berma e reparamos que para aqui não há nem pinheiros nem eucaliptos.
A grande piada da etapa de hoje vai ser o desfile de nomes inenarráveis de povoações. À Matancinha segue-se a Matança e à Magueijinha segue-se a Magueija. Mas, logo depois, as povoações terminam e a paisagem fica bruta, selvagem até. Cruzamos o rio Balsemão e empreendemos um curto desvio até Lazarim, no final de uma descida quase a pique. Lembro que as “Terras do Demo” de Aquilino não ficam distantes e lembro sobretudo a história que Paulo Moura contou em “Longe do Mar”, o seu livro com reportagens da sua viagem pela EN2. Li e nunca mais esqueci. Decidi que haveria de querer visitar Antas de Mazes. Mas agora que continuo ainda a descer para Lazarim e vejo Mazes lá bem em cima e imagino que a desolada Antas fique para lá dela… titubeio. Este cenário assusta-me e nem consigo explicar porquê. A culpa será do Aquilino e do Paulo, que tão aterradora e misteriosamente o descreveram, deixando inconscientemente marcas em mim.

Lazarim, primeiro. A aldeia fica numa cova, mas o que a distingue é o facto de ser o lugar de um dos entrudos com mais tradição no nosso país. Aqui visitamos o Centro Interpretativo da Máscara Ibérica e ficamos a conhecer melhor a tradição associada aos caretos. Instalado num edifício moderno construído para o efeito, o espaço museológico está acompanhado de uma série de citações de escritores, como aquela que nos recebe, de Clarice Lispector: “escolher a própria máscara é o primeiro gesto humano e solitário”. A presença da máscara na Península Ibérica encontra-se sobretudo no nordeste transmontano e só de Coimbra para cima, no caso de Portugal, mas em Espanha, para além de todo o norte, podemos encontrar exemplos também na Extremadura e na Andaluzia.

A tradição em Lazarim é as máscaras serem feitas – artesanalmente – com madeira de amieiro, por ser mais fácil de trabalhar. Mas o Centro não apresenta apenas exemplos locais. É bonita a variedade de máscaras, representando diferentes tradições, quase sempre acompanhada de trajes tradicionais originais. As máscaras possuem quase sempre características zoomórficas, e a tradição resulta num apelo à fertilidade e fecundidade dos campos agrícolas para que traga um bom ano. Há uma combinação de ritos pagãos e cristãos, o sagrado e o profano, e festas em várias épocas do ano e não apenas no entrudo. Confesso que não achava muita piada àquelas imagens do Carnaval de Podence e outros que tais, onde os caretos saem loucos a chocalhar as mulheres, prestando-se a todos os abusos debaixo de uma máscara a pretexto de uma época festiva. Mas agora, conhecendo a origem desta tradição, percebo um pouco melhor a efusividade tresloucada da festa, uma dança entre a ordem e o caos, onde nessa altura tudo é permitido ao mascarado, o careto.
Dava jeito colocar uma máscara e ganhar coragem para subir a Mazes e a Antas, mas afinal parece que o caminho de carro não anda fácil e mesmo o trilho a pé está coberto com mato. Deu jeito acreditar que sim e voltei à EN2.
Mas aqui uma opção mais se colocou: o desvio de Lazarim a Ucanha, meros 12 kms de distância. Para quem não conhece esta fantástica aldeia vinhateira no vale do Varosa, única em Portugal pela sua ponte fortificada com torre, este desvio é obrigatório – pode ler mais sobre ela aqui.


A EN2 em direcção a Castro Daire oferece-nos algumas rectas e como não há povoações à beira da Estrada dá para acelerar um pouco. Mas sem nunca nos distrairmos com os raros nomes que as placas anunciam: Colo de Pito, Moura Morta… Que imaginação.

A Estrada atravessa o centro de Castro Daire, com o devido marco a comprová-lo. Nesta que se auto-denomina a “última terra de transumância“ e onde se pode provar o “bolo podre”, visitamos a igreja matriz, espreitamos algumas capelas do Calvário, bem como alguns edifícios interessantes com uma parte inferior comum mas pisos superiores bem diferentes do que estamos acostumados.

Na saída de Castro Daire descemos pela Estrada e voltam as curvas, com a vegetação carregada de verde. Mas logo desaparece. A EN2 estava cortada por uns quilómetros logo após passar a ponte do rio Paiva e tivemos que desviar para Ribolhos. Já estávamos preparados para perder alguns dos seus troços menos óbvios, mas nunca imaginámos tê-la cortada ainda que a espaços. Enfim, com o desvio para Ribolhos acabámos por ganhar um miradouro para Castro Daire que mostra na perfeição a sua localização geográfica.

Depois de Ribolhos, logo de volta à Estrada aparece, claro, Ribolhinhos. A Estrada aqui não tem grande graça, as curvas tornam-se mais espaçadas e não há povoações, apenas uma placa a indicar um nome e poucos metros adiante outra placa a sinalizar o fim dessa povoação sem que quase nada se tenha visto – habitações ou gente. Pensávamos que à aproximação de Viseu as povoações se tornassem mais presentes, mas nem isso. O que surge sim, são as rotundas, as famosas rotundas de Viseu. Algumas ridículas, só com duas entradas, impedindo a lógica da recta. É impossível evitá-las, assim como não podemos deixar de mencioná-las, faz já parte do anedotário nacional.
Viseu merece uma visita demorada a quem não a conheça. O seu centro histórico possui um edificado bonito e agradável para se passear e o Largo da Sé é monumental. É aqui que fica o imprescindível Museu Nacional Grão Vasco. Como o ano passado nos demorámos na cidade – pode confirmar aqui -, desta vez optámos por atravessá-la, relembrando o seu Rossio, por onde passa a EN2.


As povoações de média dimensão começam a suceder-se Beira Alta adentro. De Tondela retivemos a sua fonte monumental e em Santa Comba Dão decidimos parar, algo que estranhamente nunca tinha acontecido, apesar de ficar perto da aldeia das minhas raízes paternas. E o veredicto é que Santa Comba Dão é bem bonita, uma das mais bonitas povoações de toda a nossa viagem. O centro histórico tem poucas ruas, mas tudo está arranjado e composto, incluindo a ribeira local, ladeada de flores. E o largo dos Paços do Concelho, com pelourinho, é uma delícia. Em busca do miradouro do Outerinho que dá para o rio Dão passamos pelo edifício da sede local do PS e sorrimos. Não há como evitar mencioná-lo, Santa Comba Dão é a terra natal de Salazar. E a EN2, cuja criação foi uma decisão do seu Estado Novo, passa mesmo à porta da sua casa, no Vimieiro, com a singela placa a informar que ali nasceu “um senhor que governou e nada roubou” 🙄.

Deixando Santa Comba chega o momento de ter muita atenção se queremos rolar o máximo possível pelo asfalto da EN2. É que aqui esta passa a ter a forte concorrência do IP3, com ele se confundindo durante quilómetros. Felizmente, uma placa avisa-nos para desviar à direita e seguir paralelos ao IP3 se queremos insistir na EN2. Antes disso, porém, vale a pena uma espreitadela à praia fluvial da Ribeira, na Albufeira da Aguiera, aquela cuja construção implicou o afundamento da antiga aldeia de Foz do Dão. De volta à EN2, a sensação com que se fica é que neste troço esta mais se parece com uma estrada de vão de escada, com muito pouca dignidade. Bem tentámos seguir sempre sobre ela, mas com o IP3 em obras acabou por ser uma confusão e penso termos perdido alguns quilómetros, só voltando à Estrada no desvio para Porto da Raiva.

Aqui o rio Alva desagua no Mondego e uns 2 kms à frente encontramos a Livraria do Mondego, um monumento natural que é uma parede rochosa quartzítica com cortes rasgados verticalmente, como se fossem livros numa estante.

Estamos a chegar ao fim desta etapa e está difícil encontrar um castelo para visitar. Vamos ter de improvisar e em Penacova deixamos por breves instantes a EN2 para atravessar a ponte sobre o Mondego e subir ao Penedo de Castro. Não é um castelo, mas a ver pela sua implantação extraordinária e rochas a fazer de muralhas bem que podia ser. Tem até uma bandeira de Portugal hasteada ao alto. Anteriormente conhecido por Penedo da Cheira, o lugar foi renomeado em 1908 em homenagem a Augusto Mendes Simões Castro, o grande divulgador das belezas naturais da região. E esta é, efectivamente, uma das suas belezas. Um miradouro no topo de um bloco granítico que se abre a uma enorme panorâmica sobre o vale do Mondego, com Penacova logo abaixo e serras a toda a volta.


E o mergulho do dia acontece logo a seguir, precisamente no Mondego junto a Penacova, na praia fluvial do Reconquinho, ao quilómetro 238 da EN2. A água é fresca, exactamente o que precisávamos para relaxar do dia quente, e o lugar tranquilo e belo. A apenas 10 kms de Vila Nova de Poiares, a última paragem da etapa, estendemos a toalha e deixamo-nos estar, já a imaginar o dia seguinte de volta à Estrada.