
Em pleno Parque Natural da Arrábida fica o Convento de Santa Maria da Arrábida, aquele conjunto de construções brancas que nos habituámos a ver ao longe em harmónico contraste entre o verde da serra e o azul do oceano. Totalmente envolvido pela vegetação da serra, espécie de protecção natural que ao mesmo tempo atrai e afasta os curiosos, este Convento hoje propriedade da Fundação Oriente pode – e deve – ser visitado (apenas visitas guiadas mediante agendamento prévio).

As origens deste Convento têm de ser buscadas muito antes da sua fundação em 1542 e, como toda a estória que se preze, tem uma lenda associada. Conta-se que por volta de 1250 o mercador inglês Hildebrant navegava por ali noite cerrada quando uma tempestade fez com que o seu barco se perdesse no mar e ficasse exposto a todos os perigos. Devoto de Nossa Senhora, com cuja imagem sempre viajava, o mercador reza-lhe e pede-lhe ajuda para guiar a tripulação. Atendido, uma luz alumia-os e a tempestade esmorece, conseguindo navegar até terra firme. Vão então serra acima em busca do lugar de onde tinham visto a salvadora luz surgir e aí descobrem a imagem de Nossa Senhora que sempre acompanhava Hildebrant. Em agradecimento pelo milagre, o inglês constrói uma ermida nesse lugar e torna-se o primeiro dos monges ermitas da Arrábida.

A Ermida da Memória é, pois, a antecedente do Convento da Arrábida. Três séculos mais tarde, em 1539, numa peregrinação encontraram-se D. João de Lencastre (1° Duque de Aveiro, proprietário das terras da Serra da Arrábida) e Frei Martinho de Santa Maria e daí surgiu a ocupação do que hoje conhecemos como Convento Velho. Frei Martinho de Santa Maria, um franciscano espanhol de ascendência nobre, pretendia uma experiência de vida religiosa mais radical materializada numa vida ermita mística. A convite do Duque veio, assim, para a Serra da Arrábida em busca de despojamento para uma vida de contemplação. A sua primeira impressão é elucidativa do cenário que encontrou (e que ainda encontramos todos nós), tendo soltado a expressão “se não estou no Céu, estou nos seus arrabaldes”. Este primeiro Convento Velho, no lugar da tal Ermida da Memória, mais não era do que as capelas, de que restam hoje as guaritas de veneração que vemos espreitar no alto da Serra, e as celas escavadas nas rochas onde os ermitas sobreviviam. O mote era muita penitência e muita austeridade, uma abnegação total que resultava numa vida duríssima.

Como essa vivência de isolamento era muito radical, em 1542 o Duque de Aveiro manda construir o Convento Novo, na encosta da Serra no lugar que hoje visitamos, e convida Frei Pedro de Alcântara, igualmente espanhol, para criar as bases desta comunidade e atrair outros frades a ela. Não se julgue, porém, que aqui os frades vivessem em luxo. Nada disso, a austeridade continuava a palavra de ordem e o único luxo era mesmo a paisagem que se propunham contemplar.

Apesar da construção do Convento Novo, Frei Martinho de Santa Maria é o fundador indisputado deste movimento de capuchos arrábidos no seio dos franciscanos que aqui marcaram presença entre os séculos XVI e XIX, até à extinção das ordens religiosas em 1834. É a imagem dele que constitui o primeiro grande momento da nossa visita. Passamos os muros do Convento pelo portão de entrada, descendo uma longa estrada que nos deixa no edifício hoje transformado em recepção, uma série de casinhas brancas com apontamentos decorativos simples como a natureza que as envolve. E, para lá do que parece uma fonte rosa decorada com pedrinhas e encimada por uma cruz, entramos no adro da igreja.

Na sua fachada, uma estátua do Frei Martinho de Santa Maria. A sua representação é incrível. Numa postura de crucificado, tem na mão direita uma vela, sinal da fé, e na mão esquerda um cilício, sinal da disciplina; a boca cosida e os olhos vendados, sinal de que os sentidos de quem entra para aqui estão encerrados para o mundo, restando apenas o silêncio; o seu coração possui um cadeado, igualmente sinal de que está fechado para o mundo e o seu caminho é apenas interior; está descalço e veste o hábito dos capuchos, incluindo o característico capucho piramidal típico dos capuchinhos da Arrábida; ergue-se em cima de uma serpente, esmagando o demónio, e de um globo.
O interior da igreja é simples. As missas eram abertas a elementos fora da comunidade e os frades participavam apartados dos demais no coro alto, onde se dedicavam a leituras.

Saindo da igreja percebemos a bela decoração das paredes com recurso a azulejos e revestimento de pedrinhas que no seu conjunto formam diversos elementos geométricos e símbolos. Tudo muito singelo. A extinção das ordens religiosas em 1834 e o consequente abandono da comunidade levou a que o lugar fosse pilhado. A Casa de Palmela adquiriu o Convento em 1863 e fez grandes alterações no conjunto, mas a dado momento pouco pode fazer para evitar que o tempo continuasse a produzir estragos. Em 1990 a família decidiu vender o Convento à Fundação Oriente e ainda que de forma lenta têm vindo a ser levadas a efeito diversas acções de salvaguarda deste património conventual. Daí que vejamos algumas decorações restauradas e outras que tardam a sê-lo.




De qualquer forma, o que visitamos já é excessivamente inspirador. Pequenos edifícios brancos com telha ocre, fontes, capelas, pátios, a serra, o mar. Ai, aquele mar. Tão luzidio que às vezes parece que estamos numa ilha grega, uma daquelas que a tantos serviu igualmente de inspiração.


De um dos pátios com vista para as hortas e pomares vemos ainda algumas das sete ermidas que se alinham serra acima, aquelas que constituíam o Convento Velho.


Já na meia encosta em que estamos, no Convento Novo, é altura de visitar algumas das celas dos frades. O despojamento é completo. Cada espaço é exíguo, limitado aos metros suficientes para acomodar um indivíduo, não há cama – apenas um pedaço de cortiça onde deitar -, talvez um minúsculo assento e um crucifixo. Mas para os nossos tempos há um luxo, uma pequena janela que deixa ver o imenso mar. Talvez não saibamos é fazer o mesmo grandioso uso deste cenário, avessos que somos hoje à contemplação.

Seguimos pelas escadarias e pátios apertados e visitamos então o refeitório, deslumbrando-nos antes com o seu terraço com uma esplanada soberba sobre o mar. À entrada um pequeno martelo em cortiça (marca distintiva da pobreza como escolha), usado silenciosamente para a chamada para a refeição. O silêncio, sempre o silêncio. Havia apenas uma refeição diária, usavam-se conchas como pratos, a carne estava ausente e os períodos de jejum e abstinência eram longos. No mais, os frades andavam sempre descalços, independentemente das condições climatéricas e do piso, mais um exemplo da austeridade e penitência em que vivia a comunidade. No final da nossa visita, um lamento, porém: que pena é não podermos estar neste belíssimo lugar mais tempo para além da hora que dura a visita guiada.