“Ainda de noite, seguimos o caminho do Corvo, com o mar chocalhado, como se diz nos Açores. Este canal é amargo. Às cinco horas da manhã do dia 17 estamos à vista de duas manchas azuladas, Flores e Corvo, sob um céu velado e em águas revoltas. Uma hora depois distingo perfeitamente o cone de bronze truncado, com escorrências de verdete no alto, não se vê uma árvore naquele enorme pedregulho batido pelas vagas. É com apreensão que desembarco no sítio mais pobre e isolado do mundo.” – Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, 1926

Há muito que desejava não apenas conhecer a ilha do Corvo, território português mais afastado do continente, como também senti-la. Alcançá-la é quase uma epopeia: pelo menos um avião até uma das ilhas do arquipélago e, depois, ou novo avião ou barco até à mais pequena das ilhas dos Açores – de Lisboa, não é fácil chegar em apenas um dia. Posto isto, escolhemos lá passar duas noites não só para a melhor absorver como também para ter maiores chances de apanhar bom tempo. Aviso de spoiler: não a vimos, mas sentimo-la.

Para quem não gosta de barcos – o meu caso -, a chegada na carreira normal do Ariel (cerca de 50 minutos desde as Flores, dependendo do vento e ondulação, 10 euros) não trás senão alívio, o alívio de termos conseguido cruzar o canal com sucesso. Talvez num dia limpo traga igualmente júbilo. O certo é que mesmo não tendo a fortuna de admirar o rochedo para lá da pequena povoação de casinhas brancas que nos recebe no Porto da Casa, é uma felicidade poder pisar firme esta terra lendária.

Quando pensa no Corvo, qualquer pessoa perguntar-se-á como conseguem estas cerca de quatro centenas de indivíduos viver de forma permanente neste “penedo e vento na solidão tremenda do Atlântico”, como se lhe referiu Raul Brandão nas suas As Ilhas Desconhecidas. A minha questão é outra: como e porquê se insistiu na povoação de um rochedo tão distante e isolado à deriva no enorme Atlântico?

Corria talvez o ano de 1452 quando Diogo de Teive voltava da sua viagem de exploração à Terra Nova e por acaso deu com o Corvo e as Flores. Foram as últimas ilhas do arquipélago dos Açores a serem descobertas e o Corvo, míseros 17 kms2 plantados a 20 kms das Flores, foi durante muito tempo considerado um ilhéu desta última – falava-se então nas 7 ilhas dos Açores e nas 2 ilhas das Flores, as ilhas Floreiras. O povoamento não foi fácil e, após várias tentativas, só em 1548 um punhado de humanos conseguiu perseverar nesta terra.

De origem vulcânica, à semelhança das outras ilhas açorianas, o Corvo e as Flores estão perto da crista média do Atlântico, numa área onde convergem três placas litosféricas: a americana, euro-asiática e africana. Apesar de considerados os últimos territórios da Europa, estão ambos já na placa americana. Estão longe, muito longe. O mais curioso é que quando se pergunta aos corvinos se não sentem que lhes falta algo a reposta vem pronta: “aqui temos tudo e o que não há traz a internet”. Apanhar o barco e/ou avião para ir a uma consulta a São Miguel é, pensam eles, como ir de Lisboa ao Porto para nós, continentais. E o que há para fazer no mais afastado e pequeno território português? “Muita coisa”. À conta do mau tempo nesta verdadeira ilha de bruma pudemos perceber que sim, é verdade que há muito para fazer, assim se deseje. O Hotel Comodoro, por exemplo, tem uma série de excelentes livros sobre a ilha, sua história e seus costumes, reunidos pelo seu proprietário, o recentemente malogrado Senhor Manuel Rita, ele próprio uma instituição corvina. Tivemos tempo para lê-los. E o Ecomuseu – Casa do Tempo e o Centro de Interpretação de Aves Selvagens do Corvo são dois preciosos e surpreendentes espaços museológicos que despertam a nossa curiosidade e aumentam o nosso conhecimento pelos modos de vida e património local. Não os perdemos. A história da ilha é para lá de interessante e a forma como foi ocupada é brilhante. Senão, vejamos.

A única povoação da ilha é a Vila do Corvo. Está instalada no único lugar possível, numa fajã lávica que possui o único acesso ao mar e constitui, ao mesmo tempo, um local de abrigo. Em 1589 já o historiador Gaspar Frutuoso referia que na comunidade viviam “vinte vizinhos, rendeiros e negros do senhorio” – escravos trazidos pelo mesmo donatário da ilha de Santo Antão, em Cabo Verde. A oeste da povoação estabeleceram os terrenos de cultivo, para terem o que comer. Trouxeram gado ovino, para com a lã terem o que vestir. Com o avançar dos anos e o aumento da população, começaram a cultivar também os terrenos mais elevados, introduzindo o gado bovino que ainda hoje nos deliciamos a ver pastar pelos baldios rochedo acima. Montanhosa e rochosa, a ilha só tem uma parte baixa, junto ao mar, a da Vila do Corvo e mais nenhuma. De resto, levanta-se de rompante montanha afora, só parando no Caldeirão, o vulcão que deu origem ao Corvo. Ou seja, a sua paisagem é tripla: um núcleo urbano, uma área agrícola e um caldeirão.

Deixemos o Caldeirão para futuro post e deambulemos por agora pela Vila do Corvo e suas imediações.

É curiosa a história da Vila do Corvo no que à sua relação com os piratas diz respeito. Dada a sua posição geográfica, na rota das embarcações que vinham do Brasil para a Terceira e, depois, Lisboa, os piratas e corsários esperavam no mar ao redor do rochedo do Corvo pela passagem dos barcos carregados de mercadorias para os atacar. Mas, não contentes, atacavam igualmente a povoação em busca de carne, água e lenha. O mais lendário destes ataques, pela reacção heróica dos corvinos, deu-se em 1632 face a uma incursão berbere. Com o auxílio da imagem de Nossa Senhora do Rosário (entretanto tornada padroeira do Corvo e designada Nossa Senhora dos Milagres) conseguiram vencer os piratas e o milagre é até hoje recordado e celebrado. É por isso que num cantinho com uma vista privilegiada da Vila debruçada sobre o Atlântico, no lugar onde foi instalado um painel de azulejos alusivo ao facto, podemos deitar o olhar ao mar e surpreender pouco mais abaixo a imagem de Nossa Senhora ainda hoje vigilante.

Foi também para defesa dos ataques dos piratas que o núcleo antigo da Vila do Corvo foi construído sob a forma de ruinhas estreitas e labirínticas. Dizia Raul Brandão que eram “meia dúzia de ruelas fétidas, algumas com meio metro de largura”, “tudo tão humilde, tão feio, tão só, que me mete medo”. Esta descrição do autor na década de 20 do século passado foi incompreendida e marcou fundo a alma corvina. Certamente injusta, uma vez que a Vila do Corvo não seria muito diferente da maioria das aldeias continentais de então. E, nisso, evoluímos todos enquanto país uno, ainda que com umas aldeias mais distantes e isoladas do que outras. A verdade é que os adjectivos negativos não se aplicam já, pudemos confirmar; restam apenas as humildes ruelas com meio metro de largura. As típicas canadas, muitas delas com vista para o oceano. O coração da urbe tem muitas casas em ruína, mas a maioria está bem conservada e mantém-se como um belo testemunho da especificidade arquitectónica corvina. As suas casas estão concentradas, junto ao Porto, protegidas do vento, em terrenos que seriam menos favoráveis à agricultura, e a sua frente está virada para trás, orientada para sul – há quem goste de pensar que é para combater o isolamento e dar algum consolo, ficando os corvinos com vista para o único território nas “imediações”, a ilha das Flores. A casa vernácula do Corvo é uma casa rural, rectângular ou em L, com dois pisos e cozinha no térreo (uma singularidade no arquipélago). Com telhados de duas águas, as paredes são em alvenaria de pedra vulcânica local, com as mais antigas com a pedra escura à mostra e as mais recentes caiadas, e as janelas de guilhotina. Ainda que tradicionais, estamos longe das primitivas “casas palhaças”, por cobertas de palha, apontadas por Gaspar Frutuoso no século XVI. A sua fechadura de madeira é única e, a par da barreta azul corvina, uma peça de artesanato exclusiva da ilha. Não é difícil encontrar um montão destes exemplares enquanto caminhamos pelas ruas e espreitamos pelas canadas. O que não é fácil é evitar o encontro com um dos muitos gatos que por lá também vagueiam: vêm ao nosso encontro e enroscam-se dóceis aos nossos pés. Uns oferecidos, estes gatos corvinos.


O Largo do Outeiro era onde ficavam os poderes civis, religiosos, sociais, económicos e políticos da povoação – com edifícios como a Câmara, Cadeia e Casa do Espírito Santo. Aqui se festejava a festa do Divino Espírito Santo, a qual remonta aos primórdios do povoamento da ilha, tradicionalmente realizada no sétimo domingo após dia de Páscoa, mas a partir década 1980 comemorada no segundo domingo do mês de Julho, de forma a contar com os emigrantes que aqui retornam.


A vila foi crescendo e hoje distingue-se a vila antiga da vila nova. Nesta encontramos a Câmara Municipal, o Centro de Saúde, a Creche, a Escola (actualmente até ao 12° ano, diz que com cerca de 50 alunos e 20 professores), o Centro de Dia, dois (!) bancos, os Bombeiros, dois restaurantes e dois cafés. Esqueci certamente de algum equipamento, mas este rol chega para perceber que o Corvo tem tudo o que é essencial. Até movimento nas ruas, seja pedonal ou automóvel. De manhã, é um corrupio de carros para lá e para cá e gosto de imaginar que aquela motorista do carro azul que andava de um lado para o outro estava atarefada em levar o pequenito para a creche, o mais velho para a secundária e o pai para o centro de dia, tudo isto enquanto tentava não chegar atrasada ao seu emprego na câmara – diga-se que para tal terá percorrido uns 200 metros sob rodas. Também recordo com um sorriso a chegada a arfar da senhora do artesanato, que só abre ao almoço, depois de ter caminhado do seu emprego até casa / loja extenuantes quê?, 200 metros?

Mas o mais fascinante destas duas noites no Corvo foram os cagarros. Ter a experiência de os ter ouvido (quase) compensa não ter visto o Caldeirão. Na primeira noite, já deitada, pergunto para as companheiras de viagem que vídeo estão a ver. Que nada, que os seus aparelhos electrónicos estavam em silêncio. Sigo ouvindo qualquer coisa e desabafo que serão os vizinhos. Que nada, que não há vizinhos por ali. Mas havia: entre Março e Outubro dezenas de milhar de cagarros vem até ao Corvo nidificar nas suas falésias à beira mar, seguindo depois para sul para passar o Inverno. O som que produzem é ao mesmo tempo estrepitoso e uma alegre sinfonia, como se estivessem entretidos “numa conversa de velhas esganiçadas”, como sentiu Raul Brandão. O cagarro é a ave marinha mais abundante nos Açores e a sua população no Corvo uma das maiores desta espécie no mundo, cerca de 70 mil. Ainda assim, é uma espécie protegida e os corvinos estão muito sensibilizados para a sua preservação. Para se ter uma ideia, a campanha SOS Cagarro levou a que a iluminação pública durante a noite fosse desligada, uma vez que a luz artificial desorienta as crias, que ainda não dominam o voo, e as leva a cair. Vai daí, os corvinos saem à rua para as recolher e as ajudarem a voltar ao seu voo. A sua captura é hoje proibida por lei, mas em tempos o cagarro chegou a ser um recurso importante para os habitantes da ilha, proporcionando-lhes carne, penas, óleo e ovos. Foi isto, e muito mais, que aprendemos no Centro de Interpretação de Aves Selvagens do Corvo. E, sobretudo, o facto de a ilha do Corvo estar cheia desta e de outras aves e ser um bom local para a sua observação, graças à sua reduzida dimensão, poucas árvores, vegetação rasteira e lagoas do Caldeirão. Na nossa viagem de barco das Flores para o Corvo vimos os castiços cagarros pousados no Atlântico e/ou a bailar sobre o mar, aguardando o fim do dia para seguirem até aos seus ninhos. Mal sabíamos ainda que nos encantariam a noite.



Deitar com a música dos cagarros e acordar com a de outros passarinhos é rotina no Corvo, mesmo em dias nublados. Lá seguimos a caminhar até onde o espesso nevoeiro permitiu. Pouco depois da bomba de gasolina com vista para a imensidão do Atlântico esperam-nos três resistentes moinhos de vento (os outros 3 foram destruídos para a construção da pista do aeroporto, que fica logo ali) instalados acima do Porto do Boqueirão, num miradouro natural para o canal que separa as ilhas do Corvo e das Flores. É por aqui, também, a curta distância de terra, que encontramos o Caneiro dos Meros. A abundância de meros e o facto deste ser um dos melhores lugares para mergulho de todo o arquipélago levaram a que em 1999 pescadores e mergulhadores unissem vontades e esforços e criassem esta que é a única Reserva Voluntária dos Açores (para saber mais é ver este episódio do “Mar”.


Pouco mais adiante, após um trilho junto ao mar, chegamos à Praia da Areia, de areia escura e boa para um mergulho não fossem as inúmeras caravelas portuguesas que aí reinavam imperiais nesta altura do ano (meados de Junho). E, quase escondida, aparece a Poça da Barroca, certamente o melhor spot para banhos na ilha.


A Ponta do Topo fica acima e o mar algo revolto a bater na rocha escura dá um cheirinho do que será (sobre)viver nos dias de temporal no Corvo.

Mais no interior da ilha, acima da Vila, seguimos em direcção ao miradouro da Cara do Índio, rocha de basalto que foi sendo esculpida pela erosão até tomar uma forma que com imaginação se vislumbra a cara de um índio. A rocha há de ficar na costa no seguimento a norte da Ponta do Topo, mas o miradouro tem um trilho próprio. O vento e o nevoeiro cerrado impediram que pudéssemos descobrir a figura. Mas fomos até onde nos deixaram, o suficiente para darmos com uma das melhores vistas para a Vila, um lugar que tem até um banquinho para nos deixarmos estar a contemplar o que nos calhou em sorte.



Não é preciso subir muito rochedo adentro para entrarmos num outro mundo, o da ruralidade – que, aliás, já se vai vendo nos quintais da vila. A estrada até ao Caldeirão tem logo ao início uma série de palheiros, onde os pastores guardavam as suas ferramentas, junto aos terrenos de cultivo e de pastoreio, divididos por característicos muros de pedra. Antes cultivava-se sobretudo trigo, hoje batata doce, batata, hortaliças, milho e feijão. Antes havia sobretudo pastos de gado ovino, hoje gado bovino. Eram tantas as ovelhas que estava instituído o “dia da lã”, o dia em que, em conjunto, os homens da ilha saiam a reunir todo o gado ovino para procederem à sua tosquia. Um dia de festa, pois. Agora são as vacas que pontuam a ilha, espalhadas maioritariamente pelo baldio que preenche 50% ilha, incluindo o Caldeirão.

Descemos do Caldeirão por aí abaixo até à Vila, 5 kms a calcorrear a estrada desde o miradouro do Monte Gordo ao Miradouro do Sítio do Portão. Não chovia, mas ficámos completamente molhadas, tal a humidade. Nada percebemos, nem sequer o mar que não anda longe dali, falésias abaixo. Restou-nos, por fim, mais um demorado abraço à Vila do Corvo desde o Miradouro do Portão, a vila que em compensação pela bruma nos recebe tão bem.
Um lugar fantástico e lindo, especialmente sem nevoeiro!
Já estive na ilha do Corvo por duas vezes. Na primeira vi o Caldeirão com algum nevoeiro, mas estava sempre a mudar a paisagem, como um filme que passava no nosso olhar.
E da segunda, o céu estava totalmente limpo. Magnífico e simplesmente inesquecível!
Belo post!
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Que bom ver a ilha do Corvo com céu azul. Mas mesmo com nevoeiro o ambiente do Corvo é incrível. A voltar, certamente.
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