É pelo Caldeirão que a maioria dos viajantes vem até ao Corvo. Em trânsito das Flores, numa viagem de um dia, chegam de barco ao Porto da Casa e vão directo ao miradouro do Monte Gordo. Alguns têm a sorte que não tivemos em dois dias e conseguem admirá-lo em toda a sua majestade e esplendor. Ainda assim, insistimos em tentar apreciá-lo e caminhámos a toda a sua volta, quase 5 kms em 3h 30m de pura bruma.

O Corvo é a verdadeira ilha de bruma, a nublosa. E o Caldeirão sob bruma o lugar ideal para deixar a imaginação fluir. Não havendo sol, haverá mistério.

Ao contrário das demais ilhas do arquipélago dos Açores, o Corvo é o resultado de um único vulcão que, por sua vez, se transformou na caldeira (cratera) de abatimento que agora visitamos. A ilha tem um comprimento de 6,3 kms por 4 kms, numa superfície total de 17 kms2. Mas já foi maior. Dada a erosão pelo vento, chuva e mar as falésias recuaram e crê-se que na sua origem a ilha fosse 30% maior. E estava coberta de mata, a Laurissilva. Gaspar Frutuoso, o cronista das ilhas, escrevia no século XVI sobre o Corvo: “É terra muito alta, e no mais alto dela tem uma profunda caldeira, dentro da qual haverá dois moios de terra, de espessíssimo mato, donde tiram muita madeira de cedro. Dentro, nesta caldeira, está uma grande alagoa de água doce, onde estão sete ilhéus pequenos, arrumados aos ventos, de maneira que estão sete ilhas dos Açores apartadas daquelas duas das Flores e do Corvo, arremedando e assemelhando cada uma sua (sic), ao rumo a que particularmente está arrumada.”.


Nesta descrição já lá estava tudo, a morfologia, a paisagem e a lenda. Uma caldeira de profundidade máxima de 305 metros e, hoje, não uma mas duas grandes lagoas com diversos cones vulcânicos no meio delas. Cones estes que, gostam os açorianos de acreditar, representam cada uma das 9 ilhas do arquipélago. Frutuoso só esqueceu a lenda que nos conta que nestas lagoas repousam dragões verdes. Pode ser que sim, que a imaginação brumosa dá para tudo, quem sabe se D. Sebastião também não se esconda por ali.

Desde o miradouro do Monte Gordo, a 550 metros de altitude, descemos e fomos à descoberta do que estava para lá do pano, sempre na expectativa de que o tempo melhorasse e pudéssemos confirmar a morfologia, a paisagem e a(s) lenda(s). Estávamos sozinhas, claro. O clima de mistério adensava-se a cada passo, para muito contribuindo o gorar das expectativas. Ao longo de todo o trilho – muito óbvio, não fora o nevoeiro cerrado em algumas momentos – pelo interior da caldeira exultávamos a cada parca nesga que o céu nos oferecia. Ainda assim, a cada vislumbre das lagoas uma felicidade enorme inundava-nos. Sim, este cenário há de ser um dos mais épicos de todos os Açores. Imaginamos os seus contornos.

A parte este está mais bem preservada, por estar mais abrigada dos ventos, daí que as arribas não passem dos 300 metros. Mas a norte e oeste elas chegam a atingir os 700 metros, com a parte mais alta da ilha a estar no bordo sul da caldeira, o Morro dos Homens, com 718 metros de altitude – assim designado porque era para aqui que os corvinos fugiam para se esconder dos ataques piratas. Porém, acredita-se que antes do abatimento o cone do vulcão tivesse cerca de 1500 metros de altitude. Caminhando pelo interior da caldeira, não chegámos a perceber os seus contornos, ainda que uma aberta o tivesse prometido.

O vendaval que se fazia sentir acima, no miradouro do Monte Gordo, ia amainando a cada passo da descida ao fundo da cratera. Já não tinha o poder de nos derrubar de forma literal, mas a cada momento em que nos víamos mais e mais envolvidas no ambiente o conformismo instalava-se e valorizávamos o que nos era permitido perceber.

As vacas a pastar pela cratera fora, terra de baldio, são um mimo. Tanto as vemos em terrenos mais planos como inclinadas nas paredes da cratera, elas que certamente também gostam de a subir para apreciar o Atlântico logo ali à beira. Não vimos os cavalos residentes. E já cá não há ovelhas, elas que já foram maioria na ilha e que por elas, para as proteger do vento, levantaram-se os muros em pedra que ainda vemos, as abrigadas.

As cores, mesmo sob nevoeiro – talvez até por ele adensadas -, são mágicas. Diversas tonalidades de verde, de tal forma irreais que daqui surge uma nova cor, o verde-amarelo. São as turfeiras, vulgo musgão, que dão esta cor e que tornam o cenário místico. As da ilha do Corvo (juntamente com as da ilha das Flores) são as maiores e mais antigas do nosso país. Dá gosto sentir estes tufos fofos.

Ainda conseguimos perceber o Poço da Velha, encharcando os ténis na terra alagada ao seu redor. Melhor, antes de iniciarmos a subida de volta ao miradouro, uma promessa de aberta mais uma vez não totalmente concretizada deu-nos um vislumbre da segunda lagoa e dos rendilhados na sua margem, como se de uma pintura se tratasse.


As vacas seguiam pastando tranquilamente mesmo junto ao caminho por nós tomado. O silêncio imperava no Caldeirão e, aceitando o dia que nos calhou em sorte, sentámo-nos junto a elas e envolvidas pela bruma deixámo-nos estar ali a escutar o chilrear melodioso dos melros, únicos capazes de romper a melancolia.