A Conquista do Inútil é um livro de Werner Herzog, mais conhecido pela sua obra enquanto cineasta.
E foi precisamente o filme que o alemão se propôs rodar na Amazónia peruana, sobre a empreitada do delirante Fitzcarraldo, que levou a que editasse, em 2004 (editado em Portugal em 2017), este género de diário sobre as peripécias que rodearam a filmagem.
A verdade é que o seu filme Fitzcarraldo acabou mesmo por ser rodado e estreado em 1982 e o seu livro “A Conquista do Inútil” dá-nos uma imagem poderosa da vida na selva entre Junho de 1979 a Novembro de 1981. São, como escreve Herzog, “paisagens interiores nascidas do delírio da selva”.
Antes de continuarmos com o livro, apenas uma breve informação sobre a personagem central do filme, para nos situarmos. Inspirado num real barão da borracha, o peruano Carlos Fermín Fitzcarrald, o ficcional irlandês Brian Sweeney Fitzgerald – Fitzcarraldo na pronúncia dos locais – é também um homem em busca da árvore da borracha que se propõe a transportar um navio a vapor por águas inóspitas rio acima e fazer passá-lo pela montanha, atravessando-a, em busca dum filão inexplorado de borracha.
Mais irreal ainda, a sua saga para romper e atravessar estas águas, onde teve que enfrentar tribos índias que lhe eram hostis, fauna idem e doenças terríveis, toda esta empreitada era motivada por um sonho: construir uma ópera em Iquitos e inaugura-lá com o seu ídolo Enrico Caruso. Aqui a inspiração só pode ser a (real) ópera de Manaus.
Começando o livro pelo seu final, Herzog, o cineasta, teve muitas dificuldades em fazer o seu navio flutuar (quanto mais fazê-lo atravessar a montanha). Quando conseguiu finalmente erguer o barco escreveu “ não houve dor ou alegria, nem arrebatamento ou alívio, nem um sentimento de felicidade, nem um som, nem um suspiro de alívio. Houve apenas o reconhecimento de uma grande inutilidade, ou melhor, de ter penetrado apenas mais profundamente num reino misterioso. (…) Tudo o que há para relatar é o seguinte: estive lá.”.
Esta conquista de algo inútil no espectáculo da selva, a selva que engana os sentido, é cheia de mentiras, ilusões e demónios (palavras do capitão do navio no filme), teve ainda como acréscimo as tensões da guerra com o Equador na fronteira, da insegurança provocada pelos narcotraficantes, das más relações com o actor principal, Klaus Kinski (“estrelas que amuam por figurantes índios terem, por vezes, mais importância”), acusações de maus tratos a populações indígenas, boatos vários, a tal ponto que Herzog escreve, admitindo, não se lembrar de ter trabalhado sob tanta pressão.
A selva é, no entanto, a personagem principal e incontestada deste livro. A selva e seus personagens.
Passado entre as cidades de Iquitos e Camisea (rios Amazonas ou Ucayali e seu afluente Urubamba), a natureza em estado puro e bruto é acompanhada pelos seus habitantes no mesmo estado. Uma mulher que chega com o filho morto no ventre e só tem ajuda muito longe; outra mulher desesperada por ouvir dizer que o marido tinha sido morto e comido pelos índios; uma mulher dá de mamar à vista de todos; outra mulher, avistada pelo autor no mercado de Belém, tão bela, que o assustou.
O medo acompanha a viagem. Não tanto dos bichos vários, que se tornam rotineiros, “tenho de novo uma cobra no telhado”, macacos que roubam garfos, rãs a saírem das calças, mais piranhas e jacarés e apostas de pescaria de peixes de pelo menos um metro.
“A selva é pérfida e letal”, houve até quem tivesse feito um testamento porque ia trabalhar na selva, ou, noutra passagem, “a vileza obscena, explícita, da selva”. “De noite, tive primeiro a sensação e depois a certeza de me encontrar num tempo arcaico e emergente, sem linguagem, sem tempo.”
Os sons, o cheiro e as cores da selva são arrebatadores.
As árvores gritam connosco, os insectos e os animais produzem sons atormentados e “a natureza voltou a si, só a floresta permanece, terrível, imóvel. Silencioso, o rio revolve-se, o mostro. A noite cai muito rápida, os últimos pássaros insultam, como sempre a esta hora, o fim da tarde. Grasnar rouco, sons agoirentos; sob eles, regular, o canto das primeiras cigarras.”
“Depois da chuva, o cheiro da terra foi tão intenso que tive vertigens. A ocidente, com o sobrevir da escuridão, o céu adquire, num ponto sem nuvens, uma luminosidade irreal, e baloiça como as vagas do mar.”
É, enfim, a natureza indomável mas cândida.
“Começou a chover. O rio flui, castanho esverdeado, prudente e baixo. As bananeiras à esquerda da minha cabana crescem insufladas, indecentemente sexuais. Na tranquilidade da chuva, a paisagem pratica a devoção. Um ofegar profundo atravessa a floresta, tudo permanece imóvel”.
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