Junto a Arouca uma excelente sugestão de dormida é a Quinta do Toutuço, em Lourosa do Campo. O lugar é pura ruralidade, com vistas lindíssimas para o verde da serra, um recanto de pacatez. Se não houvesse tanto para conhecer pela região não seriam mal passados uns dias de dolce far niente na Quinta, à conversa com os seus simpáticos proprietários e demais hóspedes dos apenas quatro quartos. Imperdível, no entanto, um passeio pelos jardins da Quinta, não apenas para ver uma das inúmeras árvores de fruto, mas sobretudo para apreciar a maior canastra do nosso país.
A manhã do segundo dia pela Serra da Freita começou com a visita aos Passadiços do Paiva, o ponto alto de qualquer passeio pela região (em breve um post sobre esta caminhada).
A minha caminhada de oito quilómetros foi demorada, como acabam por ser quase todos os meus passeios. Muita paragem para observar qualquer coisa, com interesse ou não só o sei depois, leva a que o plano do dia tenha de sofrer alterações e se tenham de fazer opções. Por exemplo, a ideia era almoçar uma das carnes típicas em Alvarenga, mas como já não eram bem horas de almoço e muito quilómetro havia ainda para percorrer, esta refeição ficou para trás.
Do Areinho, uma das entradas dos Passadiços, seguimos até à ponte onde cai a Garganta do Paiva, lugar onde quem se propõe fazer os Passadiços tem de superar a única dificuldade do percurso, uma longa subida por uma épica escadaria. Mas de carro podemos seguir até Paradinha, uma estrada que termina na sua praia fluvial e passa à entrada dos Icnofósseis de Cabanas Longas, outra das paragens com interesse geológico no Geopark de Arouca. Não há lugares para estacionar, por isso não sei bem como se pretende que possamos visitar o sítio. Aliás, não há sequer lugar para dois carros se cruzarem na estrada. Esta estrada é terrivelmente perigosa, estreita e sem visibilidade, curva contra curva monte afora a deixar ver um vale imensamente fundo. A rezar constantemente para não me cruzar com mais nenhum carro. Fui atendida.
E esta estrada é também terrivelmente bela. As formas que os monte tomam, o intenso verde e o isolamento que se pressente faz com que a viagem seja uma verdadeira aventura.
O lugar de Paradinha é um exemplo de tudo isto. Antiga aldeia de casas de xisto, foi totalmente recuperada e hoje não vive lá ninguém em permanência. O ambiente que se sente é misto. Não se vê vida, mas como refúgio parece ideal. Perdida na natureza, mas com arte espalhada pelas suas ruas e casas.
Como tinha dito, a estrada termina em Paradinha e daí há que voltar pela estrada terrível, mas agora felizmente na parte interior junto ao monte. Se tiver que desviar o carro pelo menos bato, não caio. O próximo destino é Janarde, a dois quilómetros de Paradinha em linha recta no mapa e a 22 quilómetros por estrada. O que vale é que a paisagem compensa a distância e a demora.
Pelo meio uma paragem em Meitriz. Faz lembrar Chãs de Égua, no Piodão, até pelo ambiente de abandono. Núcleo minúsculo de casas de xisto com a companhia de umas videiras, esse abandono só faz adensar o clima de mistério.
Em Janarde, um pouco adiante e acima, já vi duas pessoas. Neste ponto perdido no mapa não é apenas o xisto e o clima de mistério que prendem a nossa atenção, é antes a paisagem fabulosa. Pretendia fazer o percurso a pé até à Livraria do Paiva, fenómeno semelhante à mais acessível Livraria do Mondego, riscas nas paredes rochosas que parecem estantes de livros. Mas estes são literalmente caminhos menos batidos e as silvas a roçarem nas pernas ao léu venceram-me pelo cansaço ao fim de pouco tempo.
O pior foi quando tentei seguir de Janarde para Regoufe. O GPS deu-me uma estrada estreita e a subir em terra batida que só a inconsciência me levou a tentar iniciá-la sem um 4×4. Depois do susto, a volta à estrada de asfalto terrível mas bonita fez-me relativizar a coisa e já nem o cruzar com outros carros me atormentava.
Regoufe tem bem mais vida que as anteriores Paradinha, Meitriz e Janarde. E tem também outra história e dimensão.
A aldeia de Regoufe tem um localização geográfica belíssima, na cova de um monte com paredes enormes ora preenchidas do verde da vegetação ora de plantações de milho. Há ainda alguma vida aqui. E a aldeia acaba por ser um museu dos hábitos de vida tradicionais. As ruas tanto são das pessoas como dos cães, bois e galinhas. O cheiro a bosta faz aqui sentido.
Mas Regoufe, cujo significado é “rei dos lobos”, não é apenas aldeia de agricultura e pastorícia. Em tempos foi ainda lugar de umas minas de volfrâmio. As Minas de Regoufe ou Poça da Cadela começaram a sua exploração em 1915 e foram inicialmente concedidas a um francês. Em 1941 os ingleses tomaram a administração das minas e a eles se deveram vários melhoramentos não só no espaço mineiro mas também nos acessos à região. É curioso que em plena II Grande Guerra Mundial os ingleses tinham aqui esta mina de Regoufe e não muito longe os alemães administravam a de Rio de Frades, também dedicada à exploração do “ouro negro”, do qual fabricavam depois armas e munições. O complexo mineiro de Regoufe chegou a empregar mais de 1000 pessoas e apenas cessou a sua actividade na década de 1970. Hoje visitam-se as ruínas dos seus edifícios em granito, como as zonas residenciais, escritórios e oficinas. Vê-se até alguma maquinaria. E por ali afora abre-se um vale e a paisagem dá ainda mais encanto a este lugar abandonado. Não falta sequer um campo de futebol pelado ainda com balizas e redes roídas. Ao mesmo tempo, parece que a mina foi abandonada ontem mesmo.
E é na aldeia de Regoufe que se inicia aquele que deve ser um dos mais incríveis percursos pedestres do nosso país. A caminhada até Drave, a aldeia fantasma perdida nas profundezas da terra que os escoteiros fazem por manter ligada ao mundo, ficou adiada mas não será esquecida.
Ainda tinha esperança que a sua silhueta se pudesse ver de algum ponto da estrada à volta do seu vale, mas nada.
De qualquer forma, a estrada que passa pelo Portal do Inferno e da Garra (que nome inspirado) é certamente uma das mais fantásticas do nosso país. O vale de Drave para um lado, o vale de Covas do Monte para o outro. Não é apenas beleza, é muito mais do que isso e só aqui fincando os pés conseguimos sentir todo o poder da região.
O último capítulo desta viagem pela Serra da Freita e companhia antes de voltarmos para Arouca transporta-nos ainda até ao Santuário de São Macário, no alto da serra de mesmo nome, após atravessarmos um planalto. Não falta sequer uma lenda a este sítio, segundo a qual um homem que acidentalmente matou o seu pai se refugiou aqui até ao fim dos seus dias, alimentando-se de ervas e gafanhotos como penitência. Ficou santo, uma ermida foi construída neste lugar em sua honra e a romaria de São Macário é celebrada até hoje.
Aqui estamos no topo do nosso mundo, a 1054 metros de altitude, e o dia começa a deixar-nos. O vento forte tenta perturbar o momento, mas é impossível desviar a atenção da paisagem majestosa destas Montanhas Mágicas.