Os espigueiros fazem parte da paisagem do norte do nosso país. Andamos por montes e vales e nem precisamos de entrar numa povoação para encontrarmos um exemplar à beira da estrada. Eles vão-se sucedendo, uns maiores do que outros, mas quase sempre elegantes.
Chamemos-lhes espigueiros ou canastros, estes elementos de arquitectura popular são na sua maioria de forma rectangular (mas também os há quadrados ou redondos), elevados no solo, de madeira ou de pedra, com cobertura de telha ou de palha e de ornamentação variada. Só a sua função parece não variar: pequenos celeiros para guardar o milho e protegê-lo das intempéries e dos roedores.
Em lugar nenhum do nosso país podemos vê-los em tão grande número e tão concentrados como no Soajo e no Lindoso, em pleno Parque Natural Peneda-Gerês.
Comecemos por uma paragem no Soajo.
Já foi vila, passou a aldeia e desde 2009 voltou a ter a distinção de vila. Instalada na Serra do Soajo, cujo cume mede 1416 metros de altitude, esta povoação feita ainda de muitos edifícios de granito, ruas estreitas e inclinadas, abre-se altaneira para o recorte dos montes que a rodeiam, onde não faltam os terrenos dispostos em socalcos. À entrada um monumento erguido ao Cão Sabujo da Serra do Soajo faz-nos saber que “daqui partiram, todos os anos, para os reis de Portugal cinco grandes e valentes cães do Soajo. Por tal, nos séculos da monarquia, os soajeiros beneficiaram da isenção de impostos e de outros admiráveis privilégios”. Igualmente, abaixo de um brasão numa das casas da vila, com elementos como o dito cão e outros animais e uma árvore, está inscrito “Serra do Soajo, Parque Natural d’ el Rei”. A vila ganhou foral em 1514 e o orgulho dos seus habitantes pelo seu papel na história do país é manifesto.
Ainda que não restem já edifícios dessa remota era, alguns dos seus edifícios mais típicos seguem de pé e são bons testemunhos de arquitectura tradicional.
A praça principal é disso exemplo. Aqui ficam a oitocentista Casa da Câmara, os antigos paços municipais, a quinhentista Casa do Largo de Eiró (o nome da dita praça principal), o seiscentista Pelourinho e a Igreja Paroquial com o seu estreito campanário a que se acede por uma escadaria.
Quase sempre em granito, as casas são normalmente de um ou dois pisos, e o superior pode conter um alpendre em madeira ou balcão em pedra a que se acede por uma escadaria. A Casa do Largo é distinta pela sua arcaria e gárgulas de canhão.
O Pelourinho é muito curioso. Não é certa nem a sua origem nem o seu significado, mas o rosto sorridente e solar lá está, a encimar a coluna.
Vale a pena passar para lá da Igreja e caminhar pelas ruelas irregulares da vila antes de seguir para a Eira Comunitária do Soajo, o lugar que lhe dá a fama e que chama a maior parte dos seus visitantes.
Sobre um afloramento de granito ergue-se um conjunto de 24 espigueiros, todos eles em pedra. Alguns destes espigueiros são ainda hoje utilizados pela população e o mais antigo deles data de 1782.
Estas estruturas seculares de arquitectura agrícola, dispostas desordenadamente no cimo deste penedo cheio de desníveis e com uma vista fabulosa para os montes e vales que formam a Serra do Soajo, representam ainda assim um conjunto harmonioso. Possuem uma forma rectangular, são estreitos e inteiramente de granito, incluindo a sua cobertura, e apenas a sua porta é de madeira. São elevados para permitir uma melhor secagem dos cereais e assentes numa espécie de pés também eles feitos de lajes de granito. As suas paredes têm umas fendas verticais. Estas frestas pequenas servem para arejar o cereal no interior do espigueiro, ao mesmo tempo que o poupam dos estragos quer do clima quer dos animais. As suas portas estavam fechadas e não dava para perceber o que estes espigueiros guardavam por esta altura do ano, mas o vento que soprava forte e entrava por ali adentro fazia o seu interior ganhar vida, remexido pelo ar e pelas portas a ranger. Este ambiente levemente agreste condiz com a rudeza destas construções vernáculas.
A sua ornamentação basta-se com as cruzes dispostas na frente ou na traseira, ou em ambas, do telhado do espigueiro. A cruz é o símbolo de proteção contra a maldição e, ao mesmo tempo, abençoa o milho. Ou seja, ao contrário do que um olhar menos atento poderia julgar, não se tratam de estruturas funerárias, pelo contrário, representam a vida, o sustento das famílias.
Antes de deixarmos a vila do Soajo não o podemos fazer sem uma visita – ou, se o clima o permitir, um mergulho – ao Poço das Mantas e, especialmente, ao Poço Negro, um recanto travestido de piscina natural no caminho do rio Adrão, o qual há-de desaguar no rio Lima um pouco mais adiante.
Do Soajo para Lindoso são cerca de 15 kms. Há um caminho mais directo, mas optámos por seguir pelo lugar de Ermelo, pequeno ponto no mapa mas ainda assim terra de um Monumento Nacional na figura do seu Mosteiro do tempo do Românico, à beira do rio Lima. E é também à beira deste rio que a dado passo na estrada vemos despenhar-se com surpresa uma queda de água do alto de um monte.
Porque as surpresas nesta região não param de acontecer, vale a pena estarmos atentos ao caminho para que antes da entrada em Parada do Lindoso possamos desviar à direita para o Poço da Gola. Estacionamos o carro e vemos cá de cima o rio a vencer os desníveis e a romper as pedras pelo meio da vegetação. Continuamos mais um pouco a pé, procurando acompanhar o seu curso, e aí a surpresa é total. A uma antiga casinha de pedra em ruínas segue-se uma ponte de madeira e, cereja no topo do bolo, mais uma piscina natural de água claríssima, num conjunto verde perfeito.
O Lindoso, por fim.
Diz a lenda que D. Dinis, ao ver o castelo, “tão alegre e primoroso o achou, que logo lindoso o chamou”. O Castelo do Lindoso foi, no entanto, construído pelo seu antecessor, D. Afonso III, no século XIII. A sua implantação é primorosa, no alto de um pequeno penedo rochoso sobranceiro ao rio Lima, a 468 metros de altitude, em plena Serra Amarela. Espanha está a apenas 4 kms, daí que o objectivo primeiro da sua construção tenha sido o de defesa e vigia da fronteira. Mais tarde, o Castelo do Lindoso viria a desempenhar também um papel importante nas Guerras da Restauração, mais uma vez como linha de defesa contra o vizinho espanhol. O seu uso foi sempre estritamente militar, nunca tendo servido de residência.
No século XVII, curiosamente, foi construído um forte a envolver o castelo, que ocupa a praça interior. Hoje restam a torre de menagem, baluartes e canhoneiras. Mas o ambiente é já totalmente tranquilo no que a guerras, invasões e disputas diz respeito. A rudeza queda-se pelo isolamento da região e pelo cinzento do granito que nos cerca. O granito do terreno, o granito do castelo e o granito dos espigueiros.
Mesmo junto ao castelo fica a eira comunitária com cerca de 64 espigueiros (no total da freguesia serão mais de 120, o que faz dela a possuidora do maior aglomerado de espigueiros da Península Ibérica). É também esta a beleza deste Castelo do Lindoso, o facto da sua localização ser estratégica e paisagísticamente imaculada e ter como vizinhos imediatos um dos maiores expoentes da arquitectura rural do Minho: os espigueiros.
À semelhança do que acontece no Soajo, e em muitas das povoações do distante e montanhoso norte de Portugal, o espírito comunitário tem aqui uma forte presença. E também à semelhança dos espigueiros do Soajo, os do Lindoso são estreitos e rectangulares, em pedra, com acabamentos nas cantarias muito perfeitos e, mais uma vez, ornamentados apenas com um cruz no seu telhado. Alguns deles têm inscrita a data da sua criação e o mais antigo data, tal como o do Soajo, do século XVIII.
Vale a pena circular pelo espaço da eira, com os espigueiros distribuídos ao acaso, mas quase sempre com o topo traseiro virado a sudoeste, pensando na orientação do sentido da chuva, rodeando-os e apreciando-os de perto. Eles são aqui largos e de pouca altura, quase sempre de mesmas dimensões, e estas características comuns indiciam um equilíbrio na distribuição da propriedade agrícola na região.
A atestar a importância dos espigueiros enquanto símbolo etnográfico, a Imprensa Nacional Casa da Moeda lançou em 2018 uma moeda comemorativa (Espigueiros do Noroeste) com a imagem dos espigueiros do Soajo e do Lindoso, enaltecendo o património e a cultura identitária dos seus povos.
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